sábado, 8 de fevereiro de 2014

P441: A PROPÓSITO DA TERTÚLIA SOBRE A ÍNDIA

ÍNDIA - COMBATER DO OUTRO LADO DO MUNDO

Aproveitando a realização de uma sessão das "Tertúlias dos Combatentes" no mesmo dia do 33º convívio da Tabanca do Centro, um pequeno grupo de camarigos de Lisboa/Setúbel optou por ficar por Leiria e assistir à referida sessão, que tinha como tema a Índia. Esta sessão tinha particular interesse para a Maria Arminda Santos, ainda hoje com fortes recordações dos episódios que viveu nessa época quando da invasão daquele território pelas forças indianas.
A Maria Arminda foi em 1961 uma das enfermeiras paraquedistas nomeadas para o acompanhamento de mulheres e crianças, famílias de militares a prestar serviço nesse território, que estavam a ser retiradas de Goa através de uma ponte aérea que era assegurada pelos TAIP, sendo esse pessoal posteriormente evacuado para Lisboa em aviões da TAP.
Lembrava-se ainda do facto de então ter escapado por pouco de ser feita prisioneira pelas forças invasoras.
A sessão, que decorreu nas instalações da Livraria Arquivo, foi moderada pelo Cap. Lourenço Faria e contou com os depoimentos de Jaime Antunes Pereira Reis e António Borges da Cunha, relatando um a experiência traumatizante de um militar apanhado em plena invasão, o outro focando aspectos da vida interessante passada nos territórios da Índia Portuguesa antes daqueles acontecimentos e, posteriormente, os contactos retomados com os amigos que ali tinham sido deixados.
Da Tabanca do Centro, correndo o risco de esquecermos algum nome, estavam: Maria Arminda Santos, Giselda e Miguel Pessoa, José Seara, Vitor Caseiro, Agostinho Gaspar, Carlos Santos, Paulo Moreno e, claro, o Mário Ley Garcia, da Liga de Combatentes.
No período de perguntas/respostas no final, teve a Maria Arminda a oportunidade de resumidamente descrever alguns dos aspectos que tinham rodeado a sua missão. Lembrámo-nos então de em Outubro de 2011 ter sido publicado no blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" um texto bastante completo em que a nossa camariga Maria Arminda relatava pormenorizadamente a sua experiência de então.
É esse texto que vamos agora recuperar para publicação neste blogue, com a devida vénia à autora e à Tabanca Grande, que o publicou originalmente.
Embora extenso, optámos por não dividir o texto em partes pois poderia prejudicar a sua leitura.


Os editores   

MISSÃO À ÍNDIA


Foi no dia 18 de Dezembro, de 1961 que a Índia foi invadida pelas tropas da União Indiana no governo do seu primeiro-ministro, o Pandita Nehru, como à data se dizia.
Hoje vou recuar no tempo e relembrar porque tal facto fez parte da minha vivência cheia de emoções, que não se apagaram da minha memória.
Prestava serviço em Angola, Luanda, como enfermeira pára-quedista, onde tinha sido colocada; tinha ali chegado a 12 de Outubro de 1961 na companhia das minhas colegas, Maria da Nazaré e Maria Zulmira – já falecidas - chegando a Maria de Lourdes, também apelidada de Lurdinhas, pelo seu aspecto físico mais franzino, cerca de duas semanas depois.
Terá sido entre os dias catorze a dezasseis de Dezembro que nos soou que se encontrava de prevenção uma companhia de pára-quedistas para a hipótese de ser necessário enviá-la para o Estado da Índia Portuguesa; havia notícias de uma possível invasão daquele território por parte dos Indianos, que estavam a concentrar as suas tropas nas nossas fronteiras. A 2ª companhia, comandada à época, pelo Cap.  pára-quedista  Heitor Almendra, a que estava destinada essa missão, partiria por via aérea até à Beira, através do canal de Moçambique, por ser geograficamente mais próximo desse nosso território e haver habitualmente uma ligação entre Goa e Moçambique assegurada pelos TAIP (Transportes Aéreos da Índia Portuguesa).
Dissemos que se fosse necessário também nos oferecíamos para ir; tínhamos a consciência de que por certo não poderíamos ir todas, dado o trabalho a desenvolver em Luanda. Trabalhávamos nos postos de socorros das companhias, íamos em missões de vacinação às tropas estacionadas na Base Aérea do Negage e outros locais, dávamos apoio ao bloco operatório do hospital militar e na Direcção do serviço de Saúde da Força Aérea, onde também eram tratadas as famílias dos militares e pessoal civil. Acresce ainda que assegurávamos o acompanhamento de feridos e doentes, nas denominadas “Evacuações Aéreas” entre Luanda e Lisboa.
Nessa manhã tratámos da esposa do Senhor Cor. Magro, que a acompanhava, e com quem desabafámos sobre a hipótese da nossa ida à Índia, ao que o mesmo respondeu com ar de troça: “Falam assim mas sabem que não vão, porque se tivessem que ir, se calhar não quereriam”. É claro que estava a brincar connosco pois, além de conhecer o nosso empenho, era acima de tudo nosso amigo. A conversa ficou por ali e combinou-se que à noite, eles viriam a nossa casa, para fazermos o tratamento à senhora.
O dia passou-se tranquilamente e não mais se ouviu falar da saída dos Páras, nem do seu embarque. Após o jantar a Nazaré e eu fomos chamadas à 2ª companhia (sedeada em Belo Horizonte), a mesma que estava de prevenção, onde alguns militares apresentavam sintomas de paludismo.
Um avião DC-6 da Força Aérea estava a essa hora prestes a partir para Lisboa, com passageiros sem feridos ou doentes, pelo que nenhuma de nós previa viajar nesse voo. Acontece que um rádio chegado pouco tempo antes ao comando da Região Aérea, tinha entretanto dado instruções para embarcarmos com urgência nesse transporte a Nazaré e eu, ficando atrasada a hora de saída do DC-6 até ao nosso embarque.
O capitão pára-quedista Jerónimo Gonçalves dirigiu-se a nossa casa e tendo encontrado a Zulmira e a Lurdinhas, disse-lhes que “tínhamos que embarcar imediatamente no avião que aguardava a nossa chegada para partir” e informou-as de que “iríamos para a Índia”. Como ainda não tínhamos chegado o oficial saiu ao nosso encontro, enquanto as duas preparavam as nossas bagagens com algumas peças de roupa, umas a mais e outras a menos.
Daí a pouco chegámos nós nas calmas, muito longe de imaginar o que se estava a passar; ao vermos a Zulmira, excitadíssima, gritar-nos do alto da janela da pensão da dona Maximina, onde habitávamos, “despachem-se e subam depressa que têm que ir para a Índia”. Começámos a rir, pensando que elas nos estavam a pregar uma partida. Perante as malas de viagem prontas e as palavras do oficial é que ficámos convencidas e, tal como estávamos vestidas, despedimo-nos apressadamente sem tempo sequer para ver as roupas que nos tinham emalado, para um clima que não conhecíamos.
Na saída deparámo-nos com o senhor Coronel Magro, que vinha com a esposa levar a injecção; vendo todo aquele aparato e a nossa pressa interpelou-nos, acabando por saber naquele momento o nosso destino. Escusado será dizer que o senhor ficou perplexo, visto ser um dos comandantes da Região Aérea, mas como o rádio tinha chegado fora do horário normal, não tinha dele conhecimento. Despediu-se de nós, desejando-nos que a missão decorresse bem e ainda brincou acerca da conversa que tínhamos tido de manhã.
A pressa foi tanta que, chegadas à placa, entregámos as malas ao oficial responsável pela carga de embarque de passageiros e muito lestas nos vimos dentro do avião, sem que o restante pessoal se apercebesse. Foi o capº. Jerónimo Gonçalves quem comunicou ao Senhor General Resende que já estávamos a bordo, a aguardar pelos restantes passageiros; O Gen. Resende era o responsável máximo da Força Aérea em Angola e possivelmente teria recebido a comunicação directa de Lisboa, tendo-se deslocado propositadamente ao aeroporto, para se despedir de nós. Pedimos desculpa pelo lapso e despedimo-nos do Senhor General, com certa estranheza, dado o insólito da situação.
No decurso da viagem para Lisboa comentámos entre nós, que não levávamos nenhum dinheiro nem roupa quente. Íamos com um vestido leve e de manga curta, dado que naquela data em Angola era verão e na metrópole inverno. Depois de quase vinte horas de viagem, com escalas em S. Tomé e na Guiné, chegámos ao aeroporto da Portela cerca das dezassete horas, com um dia gélido, de apenas quatro graus, segundo nos disseram.
Esperavam-nos o Senhor Coronel Kaúlza de Arriaga, Secretário de Estado da Aeronáutica e esposa a Senhora Dona Mª do Carmo Arriaga. Acompanhavam-no o seu chefe de gabinete, Tenente-coronel Troni e um dos oficiais às ordens, o Alferes Francisco Pinto Balsemão; o outro era o Alferes Francisco Vanzeller, que nós também já conhecíamos.  
Pensávamos que teríamos tempo de arranjar alguma roupa mais apropriada, mas enganámo-nos. Fomos de imediato com o alferes Balsemão à Embaixada do Paquistão, para tratar do passaporte e do visto, sendo entretanto informadas de que iríamos para Carachi.
Um funcionário da Embaixada pediu-me mesmo se eu não me importava de levar uma encomenda com um relógio de pulso, um presente para a mulher - que se encontrava na parte oriental do Paquistão – a quem eu podia enviar a encomenda directamente do aeroporto de Carachi. Aceitei fazer esse favor ao senhor e fiquei com a encomenda.
Terminadas estas formalidades o alferes levou-nos de seguida para o local onde íamos jantar e entregou-me um envelope com dólares, para as nossas despesas, com a recomendação de que não levássemos nada que nos pudesse identificar como militares e que estivéssemos de novo no aeroporto às vinte e uma horas, para seguirmos viagem a bordo de um avião da TAP (um Super Constellation).
Após essas diligências dirigimo-nos ao Lar das enfermeiras do Hospital de Santa Maria, onde tínhamos trabalhado, e de onde tínhamos saído poucos meses antes. Ali jantámos, revemos colegas, arranjámos roupa adequada para a época e aproveitámos para telefonar à família, sem lhes darmos conta do porquê da nossa vinda e do destino seguinte. Inventámos para todos, que tínhamos vindo trazer doentes, mas por sermos poucas e haver necessidade de voltar, partiríamos de novo após o jantar, não dando tempo para uma visita. A minha família vivia em Setúbal mas, morando a da Nazaré na capital, mesmo assim ela não os foi visitar, tal “o secretismo”.
Todos acreditaram, mas umas amigas mais próximas fizeram questão de nos levar ao aeroporto e aí se despedirem. Esperava-nos o Ten-coronel Troni, que ao ver as acompanhantes disse “que já não embarcávamos, mas que tínhamos que ir com ele”. Não percebemos na altura essa mudança brusca de procedimento. Afinal fomos para ali ao lado, ao aeroporto militar de Figo Maduro. Foi a maneira das nossas amigas regressaram sem nós, não tendo desconfiado de nada.
Fomos então informadas do conteúdo da missão. Íamos para o Paquistão Ocidental para a cidade de Carachi, onde já se encontravam há alguns dias as nossas colegas a Mª do Céu e Mª Ivone, que estavam muito cansadas; nós íamos revezá-las no seu trabalho, como reforço, no acompanhamento de mulheres e crianças, famílias de militares a prestar serviço nesse território, que estavam a ser retiradas, de Goa, através da ponte aérea assegurada pelos TAIP e posteriormente evacuadas para Lisboa pelos aviões da TAP. Estavam nessa missão o chefe da mesma, um representante do nosso Ministério do Ultramar, o Dr. Espinheira, o Major médico da Força Aérea, Dr. Fernandes Tender e o sº. Rodrigues, Relações Públicas da TAP.
O Aeródromo Base nº1 de Figo Maduro, estava em silêncio e pouco iluminado, o que estranhámos; o avião da TAP mantinha-se ali, imobilizado, parecendo que esperava por algo para ser posto em marcha e rolar para a pista. Pouco depois apareceu o Chefe do Estado Maior da Força Aérea, General Mira Delgado, que nos veio desejar boa viagem; ficámos um pouco curiosas e apreensivas perante tanta despedida e votos para que tudo corresse pelo melhor.
Colocaram-nos na zona da 1ª classe do avião, comunicando-nos que qualquer pergunta do pessoal de bordo sobre a nossa presença deveria ser remetida para o piloto, comandante Magro (que viemos a saber posteriormente ser irmão do Coronel que estava em Luanda). Fomos informadas de que só sairíamos, definitivamente, em Carachi.
Passado pouco tempo sentaram-se atrás de nós cinco ou seis homens trajando à civil; soubemos mais tarde tratar-se de oficiais e sargentos do nosso exército, da arma de engenharia, enviados à pressa nessa missão. Ouvimos o ruído de um carro, que pude divisar da janela do avião, um carro grande, com capota de lona vi encostar ao avião, não tendo conseguido detectar mais pormenores. Passado pouco tempo arrancámos para a placa do estacionamento do aeroporto, para a entrada do pessoal de cabine, duas hospedeiras e um comissário de bordo que, penso eu, só nesse momento souberam para onde iam voar, porque nos perguntaram pelos bilhetes; respondi-lhes que perguntassem ao comandante o avião.
Por volta das onze da noite locais descolámos rumo ao nosso destino. Nessa altura, disse à Nazaré: “Com todo este aparato, achas que nos vai acontecer alguma coisa? Uma das hospedeiras deu-nos cobertores para nos taparmos e dois banquinhos para descanso das pernas, pois a viagem ia ser longa e nós, poucas horas antes, tínhamos chegado dum local bem distante. Dormimos tranquilamente algum tempo, até porque estávamos muito cansadas e havia que recuperar forças para o que viesse.
Recordo-me que quando acordei para não mais dormir até à chegada no outro dia já de noite, talvez por volta das vinte horas locais, ter sobrevoado as costas da Itália, Grécia, Turquia, as Ilhas de Rodes e Chipre, até fazermos a primeira paragem no Líbano, na cidade de Beirute, onde almoçámos e o avião foi reabastecido.
Toda aquela vista aérea me encantou, pois foi feita com condições atmosféricas favoráveis e o mar mediterrâneo por baixo de nós, de tons de verde e azul, fascinou-me. A aproximação ao Líbano mostrava-nos uma cidade que me parecia ser linda. Não deu na ida para a apreciarmos, mas na vinda pudemos visitá-la. Ao sairmos para o restaurante reparámos então no avião seguiam umas dezenas de rapazes, que tinham em comum peças de vestuário iguais: nuns, eram as camisas, noutros as gravatas, ou sapatos e até as meias. Não nos foi difícil de adivinhar que se tratava de militares.
A vida é um misto de acasos e emoções. Aconteceu que na nossa mesa se sentou, entre outros, um jovem que na minha frente me olhava, parecendo rebuscar na sua memória a minha fisionomia, para chegar à conclusão de onde me conhecia. Porém, eu com a minha memória de elefante, que afirmam que tenho, reconheci-o de imediato. Comíamos em silêncio, quando o rapaz mete conversa e me diz conhecer-me, embora não se lembre donde. Sorri nessa altura e perguntei-lhe se não tinha uma cicatriz, por cima do ombro direito, respondendo-me afirmativamente, muito espantado. De repente, exclama “Srª enfermeira Lopes Pereira, o que faz aqui no meio de nós?” ao que lhe respondi, que ia no mesmo passeio turístico que ele. Ficou espantado e de repente começou a falar do que os jornais tinham noticiado sobre as primeiras mulheres pára-quedistas e eu pedi-lhe que se calasse. Tinha estado internado no meu serviço no Hospital de Santa Maria, meses antes de ir para a tropa e por esse facto, estava muito presente na minha memória.
Despedi-me dele em Carachi; continuou viagem para Goa, ficou prisioneiro e nunca mais o vi. Prestes a chegarmos ao Paquistão o comandante mandou avisar-me que possivelmente teria que seguir directamente para Goa e assim sendo, não nos deixava em Carachi. Eu como mais antiga, era a interlocutora, respondendo que as ordens que recebera eram para ficar ali e não noutro lado.
Não sabíamos o que se estava a passar mas o comandante, via rádio, sabia que o assalto ao aeroporto podia estar eminente. A invasão já tinha começado e o avião dos TAIP, que deveria estar em Carachi, para fazer o transporte do material de guerra e os militares para Goa, que connosco tinham viajado, não tinha conseguido sair, pelo que o nosso avião fez uma paragem técnica. O pessoal saiu para comer e voltar para continuar a viagem. Nós ficámos em Carachi e, talvez por volta da meia-noite, soubemos que o aeroporto em Goa tinha sido bombardeado; desconhecíamos o que acontecera ao avião e a todos os que iam a bordo, incluindo a tripulação.
Na viagem até Carachi fomos muito bem tratadas pelo pessoal de cabine, de cujos nomes tenho pena de não me recordar. O comissário de bordo, ao conversar connosco, contou-nos que era casado e que esperava ser pai do primeiro filho, pois a mulher estava grávida de seis meses. Quando se soube que o bombardeamento tinha sido no desembarque em Goa, as palavras do comissário não me saíam do pensamento, embora estivesse preocupada com todos os que iam naquele avião, com menos sorte que nós.
Ninguém no grupo sabia da missão, que aquele avião ia chegar e o que transportava. Carachi era uma cidade de espionagem intensa e estava em guerra há anos com a União Indiana, por integração do território de Caxemira, cuja posse ambos reivindicavam. Se o governo indiano soubesse desta missão, da ajuda e das facilidades de manobra que o governo paquistanês nos tinha concedido, por certo nos teriam abatido, daí todo o grande secretismo à volta deste voo.
A Mª do Céu quando viu chegar o avião e este se imobilizou, disse ao Dr. Tender: “parece a Mª Arminda que vem ali à janela, mas não pode ser, porque ela está, em Angola”. Foi um espanto para todos a nossa chegada - os homens pareciam pertencer a grupos desportivos, até transportavam alguns sacos de rede com bolas, o que eu e a Nazaré não tínhamos visto, na paragem em Beirute e ficámos espantadas e convictas de que se tratava de uma missão secreta.
Aquela noite foi um pesadelo, não nos deitámos, apesar do alojamento disponibilizado ser nas instalações do aeroporto, num piso térreo, que as várias companhias estrangeiras que nele operavam tinham para descanso das tripulações. O nosso era da Companhia da KLM. Apesar de muito cansadas permanecemos por ali a fim de sabermos mais algumas informações através dos paquistaneses, porque de Lisboa ainda menos se sabia e de Goa, nem pensar. Mais nada se soube e foi com forte angústia que por ali fomos ficando, em alerta a novos acontecimentos.
Entretanto encontrava-se ali estacionado outro avião da TAP que iria transportar algumas crianças e as últimas mulheres e que aguardava partida para Lisboa; entre elas estava uma grávida, em fim de gestação. Foi decidido que seguiriam nesse voo a Céu e a Ivone e que ficaríamos nós, Nazaré e eu. com os restantes elementos da missão, até chegarem ordens de Lisboa. A ansiedade que nos tomou, também tomou a parturiente, que começou a dar sinais evidentes de que o parto podia ocorrer a qualquer momento - o que teria acontecido, se o avião tivesse ido para o ar. Foi de imediato acompanhada pela Mª do Céu e internada numa clínica obstétrica local, tendo nascido uma menina. O pai, um sargento enfermeiro do exército, foi, como todos os outros militares, feito prisioneiro e só veio a conhecê-la, meses depois, quando da sua libertação.
No dia seguinte continuávamos sem notícias, nem de Goa nem de Lisboa. Nessa tarde o Dr. Tender foi confrontado com telefonemas anónimos, em que o interlocutor perguntava se ele era militar, bem como o restante grupo. Essa ocorrência deixou-nos a todos um pouco apreensivos, pois tínhamos sabido que algum tempo antes uma hospedeira da TWA tinha sido assassinada. Quando o avião estava prestes a sair, o comandante foi avisado de que deveria aguardar, porque estavam a caminho dois aviões, que conseguiram descolar de Goa, em condições muito desfavoráveis e escapar ao controle dos radares indianos.
Foi com grande alegria que vimos chegar a tripulação, com o avião que nos transportara, bem como o dos TAIP, que não tinha podido anteriormente descolar de Goa, trazendo o pessoal civil que trabalhava no aeroporto e o director da Emissora de Goa. Com os novos acontecimentos ficámos todos em Carachi, até a senhora ter alta; no dia vinte à tardinha, o avião dos TAIP (ainda com marcas dos estilhaços de bombas) iniciou a viagem de regresso, transportando-nos a nós e a todas as pessoas que tinham conseguido fugir, as restantes mulheres e crianças e a nossa nova passageira recém-nascida.
O avião da TAP ficou no aeroporto, para reparação, tinha sofrido mais estilhaços que o nosso. O que nos trouxe, pilotado pelo comandante Solano de Almeida, era um DC4, muito mais lento, um quadrimotor a hélice, enquanto a primeira aeronave era turbo-hélice e mais rápido. Soubemos de imediato, que seria uma viagem muito mais demorada e com escalas pelo meio. Preocupava-nos além dos condicionalismos existentes, o bem-estar de todos os que estavam a bordo, até porque alguns dos passageiros estavam psicologicamente abalados. Tinham embarcado à pressa, apenas com a roupa que traziam na altura vestida. Acima de tudo preocupava-nos a recém-nascida e a sua mãe. Passámos desde então a assumir o papel de enfermeiras hospedeiras, o que teve a virtude de nos trazer distraídas e ocupadas.
Saímos na noite do dia vinte e a primeira paragem foi na Síria, em Damasco, apenas para reabastecimento; daí seguimos para o Líbano rumo à cidade de Beirute, onde pernoitámos, sobretudo para descanso da tripulação, que era única para toda a viagem. Este percurso, segundo o que os pilotos nos disseram, foi mais demorado porque o avião tinha que subir lentamente acima dos montes da cordilheira do Líbano, que separa este país da Síria, não sendo as condições as mais favoráveis, pelo que teve que subir em espiral até atingir a altitude de segurança.
No dia seguinte, vinte e um à noite, descolámos para mais um percurso; mas a paragem na cidade de Beirute tinha-me permitido visitá-la, pois era linda e com duas zonas distintas: uma parte mais antiga, no centro, e outra, nova, de enormes edifícios, que lhe valeu pela sua imponência a designação da “Riviera do Oriente”.
Aterrámos em Beirute já era escuro, com mau tempo e chuva intensa; e foi debaixo desta, que a Nazaré e eu deixámos o hotel onde estávamos alojados e procurámos uma farmácia próxima para comprar, material de penso a fim de tratarmos o cordão umbilical da bebé, que ainda não tinha caído. Escusado será dizer que sem qualquer protecção e a água a entrar no pescoço e a sair nos calcanhares, nos deixou molhadas até aos ossos, mas foi por uma boa causa.
Aproximava-se o Natal e a cidade com enfeites alusivos ao mesmo, com cedros e pinheiros de montanha, fascinou-me. Actualmente e com o grau de destruição que caiu sobre a mesma, a paisagem deve ser muito diferente e alguns daqueles imponentes edifícios da zona moderna, penso que foram em parte destruídos nos conflitos mais recentes, a avaliar palas imagens televisivas que nos têm sido mostradas nos últimos anos.
Na permanência em Carachi, também fui, mas sozinha, ao centro da cidade, tendo utilizado um riquechó, tipo lambreta com capota de lona, onde o dono levava uma esteira. Era cerca do meio-dia e para meu desespero, chegou a um local onde se encontravam vários veículos iguais, mandou-me descer e apontou-me a zona para onde eu me deveria deslocar a pé. Dito isto, puxa pela esteira e virou-se ao que julguei ser para Meca e com os outros, ficou a fazer as suas orações.
Eu ficara num local onde se situavam os Bancos e assim vestida à ocidental a cruzar-me com os naturais, as mulheres de saris e lenços na cabeça, os homens de calças largas e de turbantes, fizeram-me ter algum receio, até porque me veio ao pensamento a história da hospedeira raptada e assassinada, anteriormente à nossa chegada.
Achei a cidade suja; uns vendedores ambulantes nuns carros do tipo dos da venda de castanhas em Portugal, comercializavam um caldo espécie de sopa, ao mesmo tempo que mascavam uma pasta encarnada, que muitas vezes cuspiam para o chão, o que me enojou fortemente e me fez retardar a saciação da fome, que começava a sentir. O trânsito era caótico, com carros sempre a apitar no meio de veículos motorizados, onde também passavam como meio de transporte, vacas e camelos. Uma verdadeira babilónia, que gostei de apreciar, pela sua excentricidade.
A Nazaré aproveitou o dia para visitar uma religiosa sua amiga, que se encontrava num convento no deserto, a uns quilómetros de distância, tendo feito também só, o percurso num táxi que alugou no aeroporto. Finda a visita, a religiosa com outras Irmãs, veio trazê-la na sua viatura por receio e porque era preciso chamar da cidade, um novo transporte.
 Na véspera à tarde ela e eu já tínhamos andado num táxi da marca Gogomobil, que era pequeníssimo, conduzido por um homem, muito alto e com um mau aspecto, que dizia saber onde ficava o convento, mas na realidade não sabia. Quando o vimos sair da estrada e meter para um bairro da periferia quase sem luz, onde os homens nas soleiras das portas e fumando os seus cachimbos, descansavam acompanhados de alguns camelos, começamos a ter receio de prosseguir a viagem. Estava prestes a anoitecer e o condutor por informação que outro lhe dera, dizia-nos que esse convento ficava no meio do deserto. Pedimos-lhe então a conta e apanhamos outro carro, que ali estava e regressámos ao aeroporto, felizmente sem mais incidentes. Esta missão foi um misto de aventuras e emoções, mas ainda não tinha terminado.
Descolámos então de Beirute, no dia vinte e um de manhã, desejosos de chegar a Lisboa; nesse percurso apanhámos tanta turbulência que julgávamos que o avião ia cair. Alguns passageiros começaram a ficar assustados e o nosso médico, o Dr. Tender, quase que desmaiou. O susto por que passámos foi tão grande, que resolvemos fazer o baptismo da menina, “sob condição”, fórmula existente na Igreja Católica para situações de urgência, como morte iminente, não invalidando um baptismo, a posteriori, por um sacerdote. A menina a partir daquele momento foi por nós, considerada nossa afilhada.
Após muitas horas de voo, aterrámos debaixo de chuva intensa em Palma de Maiorca, conscientes do perigo que tínhamos corrido, sabendo dos buracos feitos pelos estilhaços na fuselagem do avião na sequência do bombardeamento do aeroporto de Goa. Na viagem um dos tripulantes de nome Vinhas, com quem mais tarde viemos a contactar de perto e com quem voámos muitas vezes, porque era um navegador da Força Aérea, mostrou-nos um estilhaço de uma das bombas lançadas, que tinha apanhado antes de fugir.
 Nessa noite pernoitámos na ilha, de onde saímos no dia seguinte, vinte e dois, com um sol radioso, que nos permitiu desfrutar a linda vista aérea e nos animou o espírito. Lisboa estava mais próxima e até já sentíamos o cheiro do Natal.
No final desse dia, avistámos a nossa capital e todos nos animámos; porém, ao sairmos do avião fiquei impressionada com o mar de gente que aguardava a nossa chegada, na ânsia de saberem mais notícias dos acontecimentos e de familiares que tinham sido feitos prisioneiros. A televisão mostrou no noticiário essa chegada e a minha família viu-me aparecer na saída e desfez as dúvidas com que tinha ficado na semana anterior.
Quando em Portugal se soube da invasão dos nossos territórios na Índia, a minha cunhada, tinha dito para o meu irmão: “A tua irmã não voltou para Angola, foi de certeza para a Índia”. E tinha razão, foi por um acaso que não fui lá parar, porque talvez não tivesse tido a sorte de regressar.
Também em Angola, quando se soube do sucedido e o que acontecera ao nosso avião, a Zulmira e Lurdinhas, foram nessa tarde à igreja do Carmo mandar rezar uma missa pelas nossas almas, convencidas que tínhamos morrido nessa ocasião. Contaram-nos depois que a Zulmira dizia para a Lurdinhas, ”Como é que vai ser agora, que grande responsabilidade só ficámos as duas e ainda por cima perdemos as nossas grandes amigas”, respondendo a outra que haveriam de se arranjar; e choravam ambas copiosamente, até que o Dr. Varela - que as acompanhara - lhes disse que ia procurar saber mais notícias, para as tranquilizar; não era fácil, pois as notícias não chegavam a Luanda tão rapidamente, só pela comunicação oficial, por meio dos chamados “Rádios”.
  Graças a Deus que cheguei a esta data para recordar todas as emoções vividas nessa missão, tendo todas nós sido condecoradas, pelo então Ministro do Ultramar, Professor Adriano Moreira, com o Grau de Cavaleiro de Benemerência. No dia seguinte depois de cumpridas as formalidades militares, fui à Baixa comprar um casaco por causa do frio, mas tinha dificuldade em caminhar a direito, parecia embriagada por efeito de tantas horas de voo.
No dia vinte e quatro passei no barco para o outro lado do Tejo e com a chuva a cair, vi partir a última camioneta que me levaria para Setúbal. Não podia ali ficar parada mais tempo naquele lamaçal, isto porque o cais de embarque de Cacilhas, era de terra batida. Felizmente apareceu um conterrâneo que estava nas mesmas condições, alugámos um táxi e dividimos a meias a despesa e cheguei a casa. Foi o melhor presente que tive: bater à porta dizer que era eu e não, o Pai Natal, abraçar os meus irmãos e festejar essa quadra com a minha família. Depois do Ano Novo, apanhei com a Nazaré outro avião, de regresso a Luanda.
Esta missão estava cumprida e foram muitas as que realizei ao longo de quase dez anos de vida militar, a maioria nos ex-territórios ultramarinos, de Angola, Guiné e Moçambique, entre outros.
Passados meses sobre a nossa missão, em Maio dá-se início ao repatriamento dos prisioneiros, tendo sido para eles uma eternidade o período em que ficaram privados da liberdade. Foram então nomeadas para essa nova missão, a Mª Zulmira, e a Mª Ivone que rumaram para Carachi. Porém, foi à Ivone que coube o papel de ir ao campo de prisioneiros, como hospedeira da companhia francesa da UAT e acompanhar, entre outros, o General Vassalo e Silva no seu regresso.
Começava outro capítulo da Nossa História Colonial. Tínhamos perdido os territórios do Estado da Índia, a nossa “Jóia do Império”, que tantas tormentas tinham dado aos nossos valorosos navegadores. Confesso que tive pena, nós ficámos mais pobres, sentimentalmente e culturalmente, foi uma perda que a muitos de nós deixou marcas, mas todos sabemos, não ter sido possível, pelas armas, virar os acontecimentos, a nosso favor.
“FOI O COMEÇO DO FIM, DA NOSSA EXPANSÃO ULTRAMARINA, NO ORIENTE E EM ÁFRICA E DO FIM DO NOSSO IMPÉRIO COLONIAL”.
Todos os anos, quando chega o dezoito de Dezembro, recordo e revivo esta missão sem nunca ter esquecido aquela criança, que hoje tem quarenta e nove anos. Algumas vezes perguntei à Ivone por ela e manifestei vontade, de a procurar. Por parte da Ivone tinha havido um contacto entre ambas, mas posteriormente, perdera-se. Nesta data, através de felizes acasos, a minha amiga e colega enfermeira pára-quedista Rosa Serra conseguiu o seu contacto e deu-mo. Finalmente sabia do seu paradeiro. Pude por isso falar-lhe, dar-lhe os parabéns, por mais este aniversário, saber que se chama Ivone Cruz, que é casada, tem uma filha e um filho e vive no Caramulo. A sua mãe já faleceu, mas o seu pai embora idoso, ainda vive.
Assim como eu sempre digo,” A VIDA É OS DIAS QUE NOS LEMBRAMOS”.
Espero que Deus me permita por mais alguns, lembrar-me desta data, que para muitos, foi dolorosa e lhe possa continuar a dar os parabéns.

Maria Arminda Santos     
 Ex: Tenente Enf. Pára-Quedista

Créditos: 
Aeroportos da Portela e de Goa - "Restos de colecção"
DC-6 - "Pássaro de Ferro"
(Com a devida vénia)

7 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Este texto tem que ter comentários.

Revi/revivi, em escrita, o Caso da Índia. Este texto não só é um texto de antologia, mas uma página brilhante das nossas Enfermeiras Paraquedistas que, apesar de militares, sempre foram "pau para toda a obra". Bem merecem o título de ANJOS.

Por outro lado é curioso que, dalgum tempo a esta parte, "vêm a lume" nomes e locais onde esses nomes prestaram o seu serviço militar.

Sem desprimor para os respectivos Ramos, quase sempre, cairam na Marinha ou ba Força Aérea, e, no caso do Exército, em especialidades não "mobilizaveis".

Que têm de estranho esses nomes, já que muitos militares não foram mobilizados, é que, na actualidade recente, eram/são os "democratas" que, tentando livrar o povo do facismo que existiu, foram por eles "abençoados e acarinhados".

Anónimo disse...

Não conhecia este texto da nossa Camariga Maria Arminda, ilustre frequentadora da Tabanca do Centro, que em boa hora aqui é publicado.

O meu comentário vai apenas no sentido de lhe agradecer a lição que me acaba de dar, pois ao ler a sua narrativa fiquei a conhecer episódios dos quais não fazia a menor ideia.

Mais uma palavra para dar os parabéns a quem apelidou de ANJOS, as nossas enfermeiras paraquedistas. Que bem se lhes cola tal epíteto!

Com estima, amizade e consideração

Vasco A. R. da Gama

joaquim disse...

Minha querida amiga Maria Arminda
Permita-me que te, (o tratamento por tu é voluntário, ambos somos combatentes), trate assim tão familiarmente, ou tão “intimamente” como quisermos pensar.
O teu relato é um manancial de ternura, de dedicação, de história.
Nele se respira o ser Português!
Poderia escrever aqui, palavras e mais palavras, sentidas sem dúvida, mas que nada acrescentariam ao que te quero dizer com uma palavra tão simples: OBRIGADO!
Obrigado por seres quem és, obrigado por fazeres parte das nossas vidas, obrigado pela entrega da tua vida aos combatentes, obrigado por outra palavra, essa apenas e só portuguesa a que aqui nos conduzes: SAUDADE!
E depois, é um testemunho “carregado” de fé, carregado de confiança, carregado de esperança.
Que bela a referência ao Baptismo «in articulo mortis» daquela criança!
Não, não precisava de ser novamente baptizada, nem o podia ser, pois já o tinha sido! E o Baptismo só é celebrado uma única vez. Mas apenas que o Baptismo fosse confirmado formalmente pela “entidade” eclesiástica.
Fico-me por aqui, e dou graças a Deus, por me ter dado a conhecer gente como tu.
Um enorme abraço, ou melhor, um beijo de amigo sincero, admirado, orgulhoso desta amizade.
Joaquim Mexia Alves

joaquim disse...

Meu caro amigo José Marcelino Martins

Compreendo-te.

Mas aqui, neste blogue, nesta Tabanca do Centro não "cabem" palavras como "democratas entre aspas", nem fascismo, nem outros "ismos", sejam eles de que lado forem.

Sei que me compreendes.

Um abraço amigo do
Joaquim Mexia Alves

Anónimo disse...

Passou recentemente na RTP2, há menos de um mês, em dois ou três episódios toda a história da invasão indiana. Por sinal um trabalho com muita qualidade.

Para a Mª Arminda o meu obrigado por esta história de vida contada na 1ª pessoa.
BS

Anónimo disse...

Amigos, matam-me do coração com os vossos comentários. Já se passaram 52 anos e aquela viagem, vem sempre à minha lembrança, quando se fala da India, Carachi ou Líbano. Obrigado ao amigo Mexia Alves, por relembrar e corrigir a confirmação do Batismo, "in articulo mortis". Mais tarde foi confirmado e foi a Ivone a madrinha. O amigo Miguel Pessoa, fez-me esta partida. Olhe que o Carnaval ainda não está à porta. Agradeço o tratamento especial que aqui me dedica, como se não tivesse outros afazeres!.. Um abraço para todos. Mª Arminda

manuel maia disse...

CARA MARIA ARMINDA,


FIQUEI SIDERADO COM A QUALIDADE DO TEXTO AQUI INSERTO PRENHE DE REFERÊNCIAS E RICAMENTE PORMENORIZADO,ONDE O TRABALHO DAS ENFERMEIRAS PÁRA-QUEDISTAS NOS DÁ UMA VERDADEIRA NOÇÃO DO QUE FOI ESSE ESFORÇO A QUE TANTAS MULHERES DERAM CORPO.
O MEU AGRADECIMENTO POR TUDO,PELO SEU TRABALHO DESENVOLVIDO COMO MULHER/MILITAR E POR ESTE QUALIFICADÍSSIMO ESCRITO QUE ME FOI DADO LER,
ABRAÇO