ADEPTO DO AZUL, MAS
APAIXONADO PELO VERDE…
Soares de Pinho, como
o próprio gostava de pronunciar endireitando-se todo e sem nunca esquecer
o ‘de’ "ligador" dos dois nomes, era uma figura típica da minha terra
embora não fosse um Moreirense de nascimento mas aqui viera parar nas
deambulações que a vida aporta a todos.
Estamos a "vê-lo", gabardina
de cor indefinida mas que na sua génese terá sido bege, ao que se crê, com mais
nódoas do que espaço vago para novas manchas, desprovido de botões à excepção
do cimeiro, junto ao colarinho, que normalmente apertava...
Usava-a todo o ano, Verão e Inverno,
só a tirando à noite quando na padaria exercia (conforme podia...) a sua
profissão de padeiro/amassador.
Lembram-se da série policial
televisiva “Colombo” em que o protagonista se tornou conhecido por inspector
"côdeas" devido à nauseabunda gabardina que vestia sempre?
Soares de Pinho digamos que se lhe
assemelhava, não porque fisicamente pudesse ser confundido com o actor, mas
apenas porque a sua gabardina em termos de "bedum" ostentava um
visual similar à do astro cinematográfico...
Contavam as más línguas que Soares
de Pinho para tornar a massa do pão mais fluída lhe "aplicava" de
quando em vez umas cuspidelas, mas disso nunca houve "prova provada",
passe a redundância...
Ao que parece, era apenas e tão só,
a língua viperina dos seus detractores, "gente do copo", que
como ele percorria o circuito da pinga com paragens nos muitos
"santuários" que na altura faziam parte do roteiro báquico, onde
discutiam a qualidade do tinto ou a leveza do branco, ambos de garrafão, em
contraponto com o divinal carrascão de pipa de Felgueiras, ou então oriundo de
Ponte da Barca ou da Lixa, de que se ufanavam os tasqueiros onde se prestava o
culto àquela divindade anti lei seca americana...
Soares de Pinho era o que
poderíamos, sem rebuço, chamar de "expert" numa linguagem hodierna, e
era nessa qualidade que tinha sempre uma palavra de "consultor
técnico", convidado pelos tasqueiros a visitarem as adegas onde se
abasteciam...
Assim, e nos "santuários"
em que não fora chamado para debitar o seu conhecimento de apreciador
qualificado, aprumava-se e proferia discurso...
- Esse do garrafão,especialmente o
branco,não presta!
É feito de palha,ou não fosse
de Almeirim, a terra dela... Bastaria ter lido o rótulo...
O tinto é quase igual, navegando nas
mesmas águas do baptismo da partida...
Bom é este, o puro sangue de
Cristo... Coisa de estalo, o tinto da Lixa !
Já o branco, para mim, só o de Ponte
de Lima!
Após o discurso laudatório, saboreava
o tinto que tingia a alva porcelana da caneca,debitava:
- Isto sim. É vinho e do bô…
Mas se era ao tinto que destinava a
sua especial atenção e carinho (até porque dizia que o tinto deixava sempre
ficar a cor no corpo...) por vezes o branco também recebia os seus
rasgados elogios, especialmente quando o potencial pagador era
fervoroso "branquista"...
- Trinca-se pá, trinca-se, é uma
maravilha...
Estava ganha aquela caneca e a
seguinte ou pelo menos o copo ou "négus" que fosse...
No café Cerqueira, antigo Branco,
ali frente à parada dos bombeiros e onde alguns dos
"repentinos" (conforme apelidara os soldados da paz como critica à
sua morosidade na saída...) também dirimiam os seus argumentos de
apreciadores, Soares de Pinho tem esta tirada: - Baltasar (inquirindo o
irmão do proprietário que ali "deitava uma mãozinha"...) Tens
café quente ?
- Tenho!
- Então deixa-o esfriar e dá-me mas
é um bagaço amarelo...
Mãos nos bolsos, juntava os dois
panos da gabardina "unibotonal" e ria-se à gargalhada...
Na "Melindra" (Assim era
conhecida a tasca da D. Ermelinda...)
- Pinho,queres esta
sopinha quente ? Tu tens de comer "home", não pode ser só
beber...
- Quero,claro que quero!
É boa? Gostas?
- Ai que boa e que
quentinha...
Ai que quentinha e tão
boa...
E soltava uma sonora
gargalhada...
Acontecera já a
revolução de 74...
Surgiram as primeiras eleições (Constituinte...)
e com elas viria a necessidade do eleitor, sem hábitos deste tipo, ser obrigado
a confirmar se o seu nome constava nos cadernos eleitorais
verificando também o local de voto, que por cá se situou em duas escolas
primárias nos extremos da freguesia...
Daí que no Apolo (café) as pessoas
procurassem obter informações junto mesmo do dono do estabelecimento.
- Ó Pereira, onde será que voto ? Na
Guarda ou em Crestins ?
- Como é o teu nome todo?
- Fulano de tal...
- Não sei, mas creio que será
em Crestins...
Pouco passava das sete da matina
e já havia clientela sob o efeito dos etílicos
vapores... Um deles, solta esta pérola...
- Parece que é por ordem de
analfabetos...
- Sendo assim, por ordem de
analfabetos, remata o Soares de Pinho, tu serás o primeirinho a votar... És o
maior de todos...
Soares de Pinho era um indefectível
adepto dos azuis e brancos do Pedras (clube de futebol local) mas o
seu grande problema residia na falta de verba disponível para o tinto se acaso
fosse forçado a pagar o ingresso no campo de jogos...
O bar do clube situava-se logo à
entrada, aí a uns seis sete metros do lado esquerdo. e às vezes
conseguia convencer algum dirigente ou até mesmo o fiscal da associação, alegando
que se acaso o dispensassem do pagamento do bilhete, a maçaroca ficava logo ali
à entrada por troca com uns copos de tinto da Lixa, de Felgueiras ou
Ponte da Barca que eram esses sim, a sua perdição, ou então com
aguardente amarela de bagaços verdes que lhe escorregava melhor...
TINTO VERDE NA CANECA,
MAS AZUL NA CAMISOLA,
ÀS VEZES UMA "BEJECA"
MAS SÓ O TINTO ME CONSOLA...
Manuel Maia
5 comentários:
Um Portugal de nostalgias feito passeou por minha casa.
Obrigado ao Manuel Maia.
Engraçada a estória, Manuel Maia. Em cada terra há normalmente um sujeito típico e ao recordarmos determinadas figuras de tempos passados, assola-nos a nostalgia de que fala o camarigo Joseph.
Gostei de ler e para finalizar a quadra. Continue. Um abraço. Mª Arminda
Manel, Manelinho, para a prosa... também tens dedinho.
Será que esse De Pinho não pasasou pela Guiné? Alguns mais alquebrados pelo clima, arrimavam pela pinga, fizeram-se homens e, até, doutores.
Se não o trouxeres ao convívio, faz o favor de trazer as estórias, que tu contas soberana e deliciosamente.
Um abraço
JD
Os meus parabéns ao Manuel Maia que, não se fica pela poesia, também entra pela prosa.
Boa história. Estás a fazer concorrência ao JERO... Com tantas figuras ilustres dos nossos desgovernantes, que por certo não trariam qualquer mais valia à escrita, é bom haver alguém do povo a ser lembrado.
Um abraço,
BS
É um grande texto não é "um texto grande", daqueles chatos de ler. Eu que me considero "um contador de histórias" senti-me um júnior ao pé dum "jogador" consagrado!!! Vê-se a "personagem" do princípio ao fim e quando acaba o conto...custa não haver mais !Grande Manuel Maia. A partir de hoje quando ler uma das tuas quadras vou-me "pelar" para voltar a encontrar um dos teus contos. Obrigado Manel.JERO
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