TERTÚLIAS DOS COMBATENTES EM LEIRIA
Organizadas pelo Jornal de
Leiria e pela Livraria Arquivo, com a colaboração do Núcleo de Leiria da Liga
dos Combatentes estão a decorrer naquela cidade as Tertúlias dos Combatentes.
A sessão da tarde do
passado dia 25 de Outubro teve lugar em Leiria - numa sala da Livraria Arquivo,
no nº. 53 da Av. Combatentes da Grande Guerra – e foi dedicada à guerra da
Guiné.
Na mesa de honra estiveram
presentes e relataram as suas experiências Raul Castro, Presidente da Câmara
Municipal de Leiria e Joaquim Mexia Alves, ambos ex-combatentes da Guiné, sendo
moderador o Coronel Ismael Alves, do Núcleo de Leiria da Liga dos Combatentes.
O moderador começou por apresentar
o tema e referir as regras: Cada orador presente na mesa usaria da palavra 15 a
20 minutos; iniciar-se-ia depois o debate com a assistência, pretendendo-se que
cada intervenção fosse breve e objectiva.
O primeiro orador da tarde
foi o nosso Camarigo Joaquim Mexia Alves, que norteou a sua comunicação
por 3 tópicos e mais um:
A Guerra da Guiné;
As Companhias Africanas;
Efeitos colaterais
positivos, apesar da guerra e por causa da guerra (de que poucos falam)
O abandono dos
ex-combatentes.
JMAlves começou por referir a
sua chegada à Guerra, a um mundo diferente, a uma realidade que nada tinha a
ver com o que até então todos tinham vivido. Mas a África exerce um fascínio
que ele sentiu de imediato. Estava-se em 1971. Tinha 22 anos, o posto de
Alferes Mil. Op. Especiais e ia comandar o 1º Pelotão da CART 3492, a que se
seguiriam o Pelotão de Caçadores Nativos 52, e depois ainda a C.Caç. 15.
Sentiu especialmente essa
responsabilidade de comando no primeiro ataque que sofreu à Ponte dos Fulas. Daí
a necessidade que sentiu de “mostrar” aos seus homens que estava ali para o que
desse e viesse; resolveu levantar uma mina, numa segurança a uma coluna de
abastecimento, correndo um risco desnecessário. Enquanto o suor lhe corria pela
cara abaixo os minutos pareceram-lhe horas. E, mais tarde, veio a saber que
tinha “lá estado” apenas 10 minutos…
Referiu ainda o mito da
“guerra ganha”, justificando ser um mito com o tamanho da Guiné, (talvez
próximo do tamanho do Alentejo), e assim possibilitar os ataques e consequente
fuga pelas fronteiras.
Isto para além do facto de
que, os ataques mais mediáticos consistiam num esforço total do PAIGC junto dos
aquartelamentos de fronteira, deixando o resto da Guiné com ataques
esporádicos.
Sentiu a estranheza dos
primeiros contactos com os homens das Companhias africanas. Realmente, ao
comandar o Pel Caç Nat 52, com soldados de várias etnias diferentes, apercebeu-se
das enormes diferenças entre eles, o que tornava bem mais difícil a sua unidade
e integração. Mas bem depressa percebeu que lidava com bons combatentes, leais
e amigos. A ligação com os seus homens tornou-se profunda.
O seu regresso em
1973 foi uma “página” inesquecível da sua passagem pela Guiné. Não esquece os abraços
nem o brilho dos homens que deixou. Homens que, na sequência do 25 de Abril de
74, foram abandonados pelo País cuja bandeira tinham jurado defender.
Abandonados, perseguidos e mortos por fuzilamento.
No entanto apesar da guerra
e por causa da guerra muita coisa positiva aconteceu, junto das populações, e
tal deve ser recordado. As populações tinham assistência médica, com profilaxia
para doenças como as do sono e paludismo, acompanhada da distribuição de
alimentos. Conseguiu-se, através de furos e de tratamento adequados, uma
riqueza única para as populações: água potável.
Construíram-se estradas e pontes. E também muitos militares regressaram da guerra com diplomas escolares, depois de nos seus quartéis terem feito exames da 4ª.classe, para além do facto de que muitos militares se disponibilizavam para alfabetizar as populações jovens de guineenses. Ninguém de boa fé pode acusar o Exército Português de ter feito a guerra só pela guerra.
Construíram-se estradas e pontes. E também muitos militares regressaram da guerra com diplomas escolares, depois de nos seus quartéis terem feito exames da 4ª.classe, para além do facto de que muitos militares se disponibilizavam para alfabetizar as populações jovens de guineenses. Ninguém de boa fé pode acusar o Exército Português de ter feito a guerra só pela guerra.
Finalmente, um tema bem
triste e longe de estar resolvido. Há ex-combatentes a viver na rua – sem
trabalho e sem família – que vivem no limiar da pobreza e sem a dignidade a que
têm direito.
Felizmente que vão
aparecendo algumas luzes de esperança e é tempo de saudar a dinâmica da actual
direcção do Núcleo de Leiria da Liga dos Combatentes. O seu papel é positivo e
a nossa Tabanca do Centro está inteiramente ao seu lado no apoio a todos
ex-combatentes que dele precisem. Em todos os convívios das últimas 4ªs. feiras
do mês, em Monte Real têm sido recolhidos donativos que encaminhamos para a
Liga dos Combatentes de Leiria.
Joaquim Mexia Alves cumpriu
à letra os 20 minutos a que tinha direito (e resumir em 20 minutos 2 anos de
Guiné não é tarefa fácil…) e o moderador de serviço, depois de alguns
comentários adequados ao seu testemunho, passou a palavra ao outro “Homem
Grande” presente.
Falou depois Raul Castro, que começou por lembrar o seu azar (para não dizer “mala pata”) a uma
disciplina que nos seus velhos tempos de estudante o tinha “tramado”. Por causa
da Matemática do 7º.Ano não tinha “chegado” ao curso de Oficiais Milicianos, motivo pelo qual,
quando foi mobilizado, avançou para a Guiné como Furriel Miliciano.
Antes disso andou por
Vendas Novas e deu uma “especialidade” de Artilharia a um grupo de 15 alunos
universitários castigados quando da crise académica de Coimbra de 1969. Desse
grupo, entre outros, lembra-se de Barata Moura e Celso Cruzeiro.
Raul Castro cumpriu serviço militar
na Guiné no período de 1970-72 na CCART 2743, Batalhão 2920. Passou por
Babadinca/Bafatá, até se fixar em Geba, onde descobriu uma nova sensação,
chamada “medo”… À sua volta sentiu e constatou muita impreparação do pessoal.
Um Alferes da sua Companhia foi castigado e com isso teve a responsabilidade de
comandar um Pelotão.
Era uma zona de Fulas, e Raul Castro lembra-se de algumas tradições que hoje consegue recordar com um sorriso. Aos
olhos de um europeu um casamento parecia um funeral. E um funeral parecia um
casamento!
O ritual do lençol manchado
de sangue que, após a consumação do “acto ”era mostrado na tabanca, com algumas
vozes a dizer em voz baixa que era “sangue de galinha”…
Recordou a importância do
“dia do correio”, com a chegada da avioneta com a mala “cheia de notícias”, que
atenuavam algumas saudades. Recebia também o jornal “A Bola”.
Depois havia a guerra. Com
ataques e emboscadas. Em datas e circunstâncias estranhas. Muito estranhas. O
comandante da Companhia, o Capitão Miliciano Ilídio Moreira tinha sido na vida
civil engenheiro agrónomo e colega de curso de Amílcar Cabral. A sua mulher e a
do fundador do PAIGC eram amigas desde o tempo da Faculdade.
Lembra-se de algumas coincidências e circunstâncias
estranhas que se passavam no dia-a-dia. Quando o Capitão Ilídio Moreira estava
no quartel não havia ataques. A maior tragédia da CART 2743 aconteceu em Agosto
de 1970, quando sofreu
um ataque em Cantacunda, de que resultaram 7 mortos (um cabo e seis soldados). O
Comandante de Companhia estava de férias. Depois desse episódio o Alferes do
pelotão que foi emboscado entrou em depressão.
O segundo ano da sua
comissão foi muito complicado. Convenceu-se que não ia regressar e preparou a
sua mãe para o pior. Também levantou minas e podia ter lá ficado.
Noutra altura o quartel
foi atacado. Soube-se posteriormente que alguém estranho tinha estado no
quartel e deve ter dado informações ao inimigo.
Independentemente destas
“coincidências” também é verdade que houve muitos acidentes na Guiné, com
consequências fatais.
Para terminar, Raul Castro,
salientou que foi no perigo que se constroem os laços mais fortes da amizade,
que vai durar até ao resto da vida. Aqueles homens eram capazes de dar a vida uns
pelos outros.
Será que perdemos ou
ganhámos 2 anos de vida enquanto andámos na guerra? A guerra da Guiné foi
diferente de todas as outras e deixou laços fortes – com os outros que lá
estiveram connosco e com a população.
Tem uma grande nostalgia
desses tempos. Já voltou por quatro vezes à Guiné. Uma das vezes – há cerca de
20 anos – fez todo a viagem de jeep. As populações continuam a gostar dos
portugueses e perguntam vezes sem conta: ”Quando é que você voltam?”.
As elites não pensam
assim. O negócio da droga é altamente lucrativo para uma minoria, que tem
poder. E está no poder. As populações vivem
miseravelmente. E pagam a pesada “factura” destes novos tempos.
Depois da intervenção de
Raul Castro voltou a pedir a palavra Joaquim Mexia Alves para relatar que na
sua zona também tinham acontecido “coincidências”. A propósito contou a
história de um comerciante do Xitole, Jamil Nasser, com quem estabeleceu
amizade, que ao saber que ele ia fazer uma coluna em estradas altamente
perigosas o tentou dissuadir de fazer tal coluna. Não conseguindo demovê-lo do
intento, o Jamil apresentou-se com duas camionetes de mancarra para ir também
na coluna. O resultado foi que a coluna decorreu sem qualquer incidente.
Depois das duas
intervenções seguiu-se o período aberto ao debate. Apesar dos esforços do
moderador, este nem sempre correu da melhor maneira devido a intervenções
demoradas.
Foram focados os
fuzilamentos dos militares nativos que tinham combatido pela Bandeira de
Portugal e cujas famílias nunca receberam qualquer ajuda do Estado Português.
Um sargento do Quadro, que
fez 2 comissões da Guiné, falou longamente do sofrimento que passou durante
esses 4 longos anos da sua vida.
Outro testemunho de um
ex-militar de tropas especiais referiu a falta de preparação da “tropa macaca”,
e que não se orgulhava da sua passagem pela guerra. Da mesa Joaquim Mexia Alves
salientou que ninguém, até ali, tinha feito a apologia da guerra.
Um oficial presente, com
uma comissão em Catum (Mata do Cantanhez), também relatou a sua experiência
pessoal entre 1963 e 1965.
Muita coisa foi dita. E
muito mais terá ficado por dizer. Razão
teve Raul Castro quando disse que uma reunião deste tipo deveria começar às 9
da manhã e acabar às 9 da noite.
Uma noite dormida sobre a
tertúlia 25 de Outubro faz-me dizer que… não me saem da cabeça as
“coincidências” em teatros de operações de que falaram Raul Castro e Joaquim
Mexia Alves.
Se a “Intelligence”” portuguesa tivesse funcionado melhor muita coisa podia ter acontecido de maneira diferente. Ou não ter acontecido… A PIDE terá talvez andado demasiado “com o olho em cima” dos militares portugueses e não atentou à realidade local !!!
JERO
4 comentários:
Para quem não esteve presente, como é o meu caso, acho que este relato está bem completo.
Fica-se com uma ideia, fraca, na medida em que fica por se 'sentir o clima' mas fica-se a perceber como decorreu, o interesse que despertou.
O meu 'obrigado' aos repórteres.
Hélder Sousa
Obrigado ao Jero pela sua reportagem e ao Miguel que a editou e publicou.
Foi um fim de tarde muito bem passado!
Um abraço a todos
Joaquim Mexia Alves
Vejo pela reportagem do Gero,(muito elucidativa)e complementada com a intervenção do Miguel,que me permitiram reviver outros acontecimentos nessa terra que não esqueço. Constata-se pela descrição, que o tempo se torna curto para que os intervenientes possam expressar os seus sentimentos e as lembranças de um tempo que não se esbate nas suas memórias, após passados longos anos. A catarse é necessária e enriquecedora. Obrigado e um abraço para todos. Mª Arminda
Momentos úteis e bem passados, com gente valorosa e interessante que faz valer a pena lutar pela preservação da memória.
Neste apontamento é traçado um rigoroso registo do evento para os que não puderam estar presentes.
Bem hajam a todos os envolvidos.
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