sábado, 31 de março de 2012

P210: UMA MEMÓRIA VIVIDA

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Os homens da família

Lentamente, dia-a-dia, vai-se desapegando de mim a recordação do corpo, da existência física.
Vai-se esbatendo a imagem da “tenda” que dá forma física ao espírito e à alma.

Essa recordação vai dando lugar a algo mais perene, mais para sempre, mais eterno.

Talvez não me recorde do corpo, da voz, mas recordo fortemente o espírito, aquele espírito que comandava a vontade e o fazia estar sempre disponível para os outros.

Vejo claramente também a imagem da semente, que nos é dada em ensinamento por Jesus Cristo.

Sentados naquele sofá, naquela tarde, esperançosos de uma cura milagrosa, falava-lhe dessa semente que os nossos pais nos plantaram na vida, no coração, que por vezes não regávamos, nem deixávamos germinar.

E ele olhava-me, com aqueles olhos vivos, tentando ver em mim algo para além de mim e dizia-me numa voz firme e muito doce: «Não te preocupes, meu mano, é Ele quem me tem ajudado.»

Mas eu não ficava descansado e insistia, o mais delicadamente que me era possível, com medo de estragar aquele momento tão sentido, tão vivido: «Mas Zézinho, eu conheço um padre muito boa pessoa e que sei tu gostarias dele e vive aqui na cidade.»

E lá veio a resposta, cheio da paciência, ele que era tão impaciente, como todos nós, aliás:
«Não te preocupes, meu mano, já falei com um Franciscano meu amigo. Está tudo tratado.»

Repousei, deixei-me ficar assim calado, pois algo em mim me dizia que a paz estava com ele, tal era a serenidade com que comigo falava.

E depois … depois Deus é grande e é amor perfeito e por isso reconhece o amor naqueles que amam.

E o Zézinho, (que tinha as suas “coisas” como todos nós temos), nunca dizia que não a um pedido de ajuda.
Se ele conseguisse deslocar-se com a velocidade da luz, acredito que no momento em que lhe disséssemos pelo telefone, «Zézinho preciso de ti», ele se “materializaria” junto de nós.

Conseguia coisas que ninguém conseguia, com aquele seu jeito descontraído de fazer de cada pessoa que encontrava, um conhecido, um amigo.
Para ele não havia portas fechadas, havia sim portas que ainda não tinham sido abertas.

Havia nele uma ternura, um modo de se dar, que por vezes nos confundia, até porque não tinha medo dos gestos, (cumprimentávamo-nos de beijo na cara), das palavras, (chamava-me muitas vezes à frente fosse de quem fosse, meu mano querido), não que eu fosse especial, mas porque era assim que sentia os seus irmãos.

Se tinha defeitos?
Claro que tinha! Não os temos todos nós?

Mas a força da sua entrega aos que dele precisavam, o seu desprendimento do pouco ou muito que tinha, a sua ânsia de ajudar, de ser útil, acabavam por prevalecer sobre os defeitos, ou melhor as fraquezas, que deixavam de ter importância, até pela alegria que ele colocava na sua vida.

Por isso não me importo nada que a recordação do corpo, da forma física, da “tenda”, se esbata na minha memória, (o corpo, a existência física, é efémero), porque ao assim acontecer torna muito mais viva a recordação do espírito, da alma, que eternamente, pela graça de Deus, vive a paz e a felicidade que tanto perseguiu, e agora alcançou.

Até logo, Zézinho, como dizemos em Monte Real, mesmo que o logo possa ser ainda distante.


Monte Real, 30 de Março de 2012
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7 comentários:

Juvenal Amado disse...

Um abraço Joaquim

Anónimo disse...

Fez muito bem amigo,em ter publicado este texto história de vida, um "falar de alma", que para mim está excelente e demonstra bem como era o seu irmão e a amizade que os unia. Mas foi só um afastamento porque um dia se reencontrarão!.Muita força e um abraço, porque a lembrança dos que nos são queridos não se apaga da nossa facilmente da nossa memória. Só se a perdermos!.Mª Arminda

Anónimo disse...

Tinha lido este texto noutro local onde deixei o comentário que agora reproduzo na Tabanca do Centro, ponto de encontro pleno de amizade.

Eu, filho único, perdido na busca, mas buscando, só posso dizer: "Como é bom ter irmãos assim"!
Obrigado, Joaquim, pela beleza da expressão da essência do sentimento que aqui nos deixas.
Um abraço fraterno do,
Vasco

P.S. Aqui, na Tabanca do Centro, espero ler e apreciar outras contribuições de outros camaradas versando os mais variados temas para que desta forma nos conheçamos melhor uns aos outros!
Vasco da Gama

Manuel Reis disse...

Camarigo Joaquim:

Não é fácil arranjar as palavras adequadas nestes momentos. Foi bom escreveres este texto, onde te libertas um pouco do sofrimento físico, porque sabes que o teu irmão está em Paz.

Por outro lado essa libertação transmite-te uma tranquilidade que é perceptível no texto.

Um abração, amigo.

Manuel Reis

paulo santiago disse...

Joaquim
Como eu te acompanho.
Tinha uma única irmã,Fátima,mais nova dois anos.Quando tinha quatro
anos,teve polomielite profunda,ficou
deficiente física,mas era imbuída
de uma tenaz força de vontade.Entrou
para a Universidade quando eu estava
na Guiné.Licenciou-se em Direito,
tirou carta de condução,veículo
adaptado,e fez carreira como
Conservadora do Registo Civil.Um
Sábado,em Novembro de 2003,entrou
em coma.Onze dias nos Cuidados
Intensivos,e os médicos perguntavam-me:"como foi possível
esta senhora andar até hoje,com
tantos problemas,sem ter vindo a
um hospital".Veio para casa,cheia
de vontade e Fé em 6/01/2004.
Infelizmente,apanhara uma bactéria,
nos 11 dias nos C.I.voltando a entrar em coma e a morrer no Sábado
28 de Fevereiro de 2004.Sepultada
a 29,um dia "estranho",e talvez por
isso,mais doloroso.Em 29/02/2008,
estava em Bissau em casa de um
colega da Escola Agrícola,tinha
chegado na véspera,e as saudades
que senti da minha irmã arrasaram-me,e no 29/02 deste ano
voltei a sentir imensas saudades.
Nestes dias,por serem únicos,são
mais dolorosos,mas em todos os
outros,sinto a presença espiritual
da minha irmã Fátima...está ali numa foto a sorrir-se para mim.

Recebe um abraço

Hélder Valério disse...

Caríssimo amigo Joaquim

Escreveste tu que foi por insistência do Miguel que foi publicado este texto, aqui neste espaço.
E o Miguel fez muito bem!
É, mais uma vez, um belo pedaço de prosa, em que revelas os teus sentimentos e que, ao mesmo tempo, nos dá a indicação da serenidade que te invadiu após o falecimento do teu irmão.
É, também, talvez, uma forma de nos dar 'pistas', de nos 'ajudar a ajudar' nos momentos semelhantes que certamente também teremos que enfrentar.
Por tudo, deixo-te um forte abraço.

Hélder Sousa

Anónimo disse...

Joaquim um abraço amigo

Mário Fitas