NATAL
1969 EM BISSAU
Nesta época natalícia há recordações da Guerra que nos vêm mais à memória e o melhor, antes que seja tarde, é passá-las para o papel.
Era véspera de Natal de 1969 e, se bem que a guerra por vezes abrandasse,
nunca parava. Era talvez a noite do ano em que mais cautelas havia, em que quem
estava de serviço estava mesmo operacional, bem desperto, com os olhos e os
ouvidos bem abertos não fosse o diabo tecê-las. E havia sítios e posições que
nunca podiam ser descuradas.
Por exemplo, na minha guerra, no STM (1) do QG de Bissau, que comunicava com o
mato, com todos os COPs, todos os Agrupamentos, todos os Batalhões, todas as
Companhias e até muita outras subunidades, através das quatro redes de rádio
(grafia) existentes, que comunicava com a Metrópole, em grafia e em fonia e às
vezes até por teleimpressor, com o Batalhão de Telegrafistas na Graça, onde
era a Direcção Nacional do STM.
Aquele encaminhava depois as mensagens para os
destinos, comunicando com a Marinha e com a Força Aérea através de
teleimpressor (2) (quando funcionava, ou, na sua falta, pelos estafetas de serviço
que levavam as mensagens em mão, mediante protocolo, ao Oficial de Dia à Unidade
destinatária). A nossa guerra nunca podia parar. E as antenas colocadas ali bem
perto, na Antula, eram o suporte e a garantia de que as mensagens chegavam aos
seus destinos.
Também tínhamos já nessa altura o fac-simile, equipamento arcaico e nada
funcional mas, que mesmo assim, foi o precursor do fax que apareceu muitos anos
depois, e que só servia para fazer explorações esporádicas com o BT (3) em Lisboa.
Chegámos a ter, só para vista, na altura da visita do Director da Arma de
Transmissões à Guiné, um teleimpressor pretensamente “ligado” ao Batalhão de
Mansoa. Mas isso são contas de outro rosário.
Com o nosso macaquito, companheiro de todas as noites |
Essa noite de Natal, depois de um jantar mais que atribulado, chegou a meter
uma marcha até à messe de oficiais e ao "palácio das confusões"
(messe de sargentos) onde os senhores estavam numa grande janta e o pessoal de
serviço sem direito a nada. A CCS/QG (4), vá-se lá saber porquê, tinha-se esquecido
de nós...
Depois deste pequeno incidente se ter resolvido, e sem que a nossa guerra
tivesse alguma vez parado, nessa noite que devia ser de paz, recebemos uma
mensagem zulu, (relâmpago), duma unidade do mato de que já não me recordo, e
que tinha estado a ser flagelada, a pedir somente, vejam bem, um FRAPIL (5), porque
no ataque tinham ficado sem gerador e dentro em pouco ficariam sem comunicações
uma vez que as baterias de emergência não aguentariam muito.
Já era tarde, talvez mais de meia-noite, quando isto aconteceu. Eu era o
Chefe de Turno do Centro de Mensagens, como fui tantas vezes. Foi só chamar-se
o motorista, que estava encostado no Unimog (ainda me lembro, era o Mamadu
Djaló, que mais tarde foi motorista de táxi na cidade) e pormo-nos a caminho do
Batalhão do Serviço de Material, ali à Bolola, e entregar a mensagem ao Oficial
de Dia para providenciar no sentido de o material solicitado chegar ao seu destino logo de
manhã cedo.
E assim aconteceu. Bem cedinho, lá foi um Allouette III cumprir esta
missão importante. Pouco depois tivemos o reporte de que o FRAPIL estava instalado
e tinha começado a cumprir a sua missão recolocando o rádio no ar.
Situações idênticas à que acabo de relatar, e outras muitíssimo mais
graves, eram frequentes, sempre em resultado duma Guerra em que os dois lados
estavam empenhados. Mas esta, pelo simbolismo do dia, pela solidão da noite,
pela saudade de outros Natais, nunca foi esquecida.
Nessa noite, como era habitual, os rádios nunca pararam, mas este caso foi
de facto o mais relevante que aqui recordo com nostalgia.
Resta relembrar, quando havia noites calmas, e isso também acontecia por
vezes, mesmo assim os rádios nunca paravam, porque de vez em quando, o Posto
Director fazia os chamados QTRs (6), só para confirmar que os Postos estavam
permanentemente em escuta. E a CHERET (7) estava sempre de ouvido bem aberto.
Carlos Pinheiro
1º Cabo Op. Msgs.
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(1) STM - Serviço de Telecomunicações Militares
(2) Teleimpressor – Equipamento de transmissão de mensagens escritas com
teclado e rolo de papel acoplado, com gravador de fita, que foi o precursor do
Telex que entretanto caiu em desuso.
(3) BT - Batalhão de Telegrafistas
(4) CCS/QG - Companhia de Comando e Serviços do Quartel General
(5) FRAPIL - Carregador ligeiro de baterias
(6) QTR - Chamada geral do Posto Director para confirmar que toda a Rede estava à escuta e assim se acertava a hora do momento
(7) CHERET - Chefia do Serviço de Reconhecimento das Transmissões
4 comentários:
Também passei dois Natais na Guiné.
O de 1970 em Piche. O de 1971 em Bissau.
Vou ver o que consigo obter do "arquivo de memórias" para vos transmitir e poderem fazer comparações.
Hélder Sousa
Bom dia Helder. É bom apelarmos às nossas memórias mas é dificil fazerem-se comparações, porque cada caso é um caso. Mas os teus escritos são sempre bem vindos e demonstram sempre muita qualidade. Cá ficamos à espera. Bom Natal pata ti, para todos os teus e para todos os nossos camarigos que nos possam ler. E que o 2020 que aí vem nos traga muita saude. Um abração.
Olá amigo Pinheiro.
Há episódios na vida que jamais se esquecem, como foi o que descreve e tantos outros passados por cada um de nós.
Realmente nesses dias estava-se sempre muito de alerta, porque se sabia que o inimigo aproveitava os nossos dias festivos, para surpreender. Por vezes éramos chamadas nesses dias festivos e a mim e à Zulmira, aconteceu também num dia de Páscoa ter havido “manga” de guerra e largámos a correr o almoço, partindo em dois helicópteros, mas para locais diferentes.
Amigo. Felizmente que se encontra entre nós e pode e deve contar para o grupo, outros episódios, que também serve de catarse, para além e também, dos “convívios do cozido”.
Um abraço com Votos de Um Santo e Feliz Natal e que o Novo Ano, nos vá mantendo juntos.
M. Arminda
Camariga Arminda
Obrigado pelas suas palavras. Tenho feito alguns posts na Tabanca Grande e alguns até repetidos aqui na Tabanca do Centro. Forem 25 meses "preso" em Bissau, mas preso num sitio por onde passava tudo de mau e do pior. Lembro-me bem do acidente com o Heli com os Deputados e com o meu antigo Comandante de Santarém, o Capitão Carvalho Andrade, da morte dos tres Majores e do Alferes, do desastre do Cheche e de tantas e tantas desgraças que por lá aconteceram. É bom termos memória. Agradeço e retribuo os seus votos de Boas Festas com um grande abraço.
Carlos Pinheiro
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