terça-feira, 26 de novembro de 2019

P1186: 49 ANOS SE PASSARAM...


REGRESSO A CASA
Às primeiras horas do dia 21 de Novembro de 1970 estava eu, aliás estávamos todos, perfeitamente acordados a bordo do “CARVALHO ARAÚJO”, mais ou menos ao largo de Cascais, a prepararmo-nos para o assalto às casas de banho dos camarotes para, finalmente, tomarmos um banho após nove dias de mar alto, sem água doce para lavar um prato quanto mais para tomar banho, desde Bissau até Cascais. Imagine-se a necessidade de nos apresentarmos de manhã em Lisboa, de cara lavada perante as nossas famílias e os nossos amigos, e as voltas que tivemos que dar para que isso fosse finalmente possível. Um banho, como se fosse a melhor coisa do mundo, e naquela noite foi mesmo a melhor coisa, só suplantada com a chegada de manhã ao pé dos nossos familiares. 
Carvalho Araújo, N/M da Empresa Insulana de Navegação.  Tinha lotação para 354 passageiros. Foi abatido em 1973.
Imagem extraída de navios portugueses, com a devida vénia.

O “CARVALHO ARAÚJO”, apesar de já estar no seu fim de vida naquela altura - esta foi uma das suas últimas viagens - foi um grande navio, o melhor de todos, que nos trouxe de África depois de 25 meses de comissão naquele pedaço de terra e água, mas mais água do que terra, encravado entre o Senegal e a Guiné Conakri.

Falar desse tempo não vem agora aqui ao caso. Há tantos livros publicados que infelizmente pouca gente lê e por isso se sabe tão pouco daquele período de treze enormes anos que a juventude foi obrigada a cumprir lá longe, em África, e muitos nas piores condições, diria até em condições inimagináveis, para além daquela dezena de milhares cujos restos mortais por lá ficaram para sempre e dos muitos milhares de estropiados que focaram marcados no corpo e no espirito para sempre. 


Era a guerra, o maior flagelo da humanidade, que muitos por cá faziam por desconhecer, mas, convenhamos, ao fim de tantos anos a ignorância é cada vez maior, infelizmente. Quem não se esquece daqueles dois longos anos são aquelas centenas de milhares de jovens que para lá foram obrigados, bem como as suas famílias. O resto é o costume. Por vezes palavras bonitas, mas muitas vezes nem isso.

Tínhamos embarcado no dia 13 e logo alguns tripulantes nos avisavam que dado o mar picado do Golfo da Guiné, quando chegássemos ao mar da Madeira seria bem pior. Mas nós estávamos por tudo. Só queríamos que aqueles dias passassem depressa. No entanto quando chegámos ao mar da Madeira, tivemos um mar chão contra todas as previsões. Nem tudo podia ser mau…

Aqueles nove dias foram dias para esquecer. Não havia água disponível, o porão era talvez o sítio menos mau na medida em que o navio tinha andado muitos anos a transportar gado bovino dos Açores para o Continente e tinham-lhe adaptado um sistema de ar forçado nos porões para o gado não enjoar. Também foi bom para nós que nos contentávamos com pouco. Tinham-nos dado um prato à subida das escadas, para que tivéssemos direito à refeição que era comida onde era possível. Depois só tínhamos que lavar o dito prato, com água do mar, para a próxima refeição.

A comida era do pior que se pode imaginar. Mas após ter feito o primeiro reconhecimento ao único sitio onde se vendia alguma coisa, tinha constatado que só havia cerveja e Coca-Cola com fartura e também bolachas baunilha. Mais nada. Portanto, tudo o que foi aparecendo era comido, por vezes até com os olhos fechados, mas não havia alternativa. 

Houve, porém, uma excepção. No dia 19 o navio aportou ao Funchal, ao pôr-do-sol - um espectáculo inolvidável -, para meter água e nafta (que na Guiné não havia) e nesse dia, ao jantar, apresentaram-nos um peixe assado no forno com muito bom aspecto. Porém, fartos de comer mal, marcando também a nossa insatisfação pela comida que até aí nos tinha sido apresentada, nesse dia resolvemos ir jantar fora ao Funchal, com o resto do dinheiro que nos tinha sobrado da comissão.

Foi uma noite de festa porque já cheirava a Portugal e o degredo estava a acabar. Lembro-me perfeitamente do “CARVALHO ARAÚJO” atracado ao Cais do Funchal ao lado dum paquete de luxo, o CHUSAN, penso que inglês, parecia uma casca de noz ao lado do outro que parecia uma “cidade iluminada”. Mas não nos enganámos e à hora combinada lá estávamos de novo a bordo a caminho de casa.

A chegada a Lisboa foi de facto alegre, mas ao mesmo tempo arrepiante quando nos pudemos aproximar dos nossos familiares que não víamos há mais de dois anos. São momentos indescritíveis onde as palavras nos faltam.

Carlos Pinheiro
(Foto da época)
Depois foi embarcar numa camioneta para os Adidos, na Calçada da Ajuda e o espólio foi feito rapidamente.

Passado algum tempo já estava em casa da minha tia Cândida na Avenida 24 de Julho, mesmo em frente à Estação do Cais do Sodré, a voltar a admirar o Tejo de que também tinha muitas saudades.

A minha mãe estava a acabar o almoço - um cozido à portuguesa como deve ser, e o apetite era bastante, só suplantado pelas saudades que se iam matando aos poucos.

Primeiro a sopa do cozido como mandam as regras, depois o cozido propriamente dito. E lá vinha o respectivo arroz a acompanhar. Mas aí, quanto ao arroz, farto de tanta “vianda” da Guiné, disse que dispensava bem o arroz. Mas a minha mãe, com as palavras que só as mães saber dirigir aos filhos, lá me convenceu a provar o arroz e, de facto, estava tão bom que fiquei de novo freguês de arroz que eu pensava nunca mais comer dada a mistela que muitas vezes éramos obrigados a comer em Bissau.

Ainda fiquei uns dois dias em Lisboa a matar saudades e só depois é que viajei até à minha terra, Alcanena, para rever os amigos e outros familiares.

Nesse longínquo dia 21 de Novembro de 1970, o Almirante Américo Tomás foi a Alcanena, mais concretamente a Minde, inaugurar o Museu Roque Gameiro, acompanhado das mais altas entidades do país, da região e do concelho e, claro, de sua esposa, a D. Gertrudes.

Mas nesse dia também aconteceu a invasão de Conakry pelas Forças Armadas Portuguesas comandadas pelo Comandante Alpoim Calvão, a fim de libertar alguns militares portugueses presos naquele país. Foi uma operação secreta e de surpresa que não terá obtido o êxito planeado, mas mesmo assim conseguiram um dos objectivos - libertação dos militares portugueses que ali estavam presos.

Foi de facto um dia muito grande o dia 21 de Novembro de 1970.

Carlos Pinheiro

6 comentários:

Juvenal Amado disse...

Carlos diz que o Carvalho Araújo era o melhor navio do Mundo. Acredito pois para mim também o Niassa ainda hoje não paralelo :-). Compreende-se! Já na Madeira o Carlos teve mais sorte que eu pois não nos deixaram sair das duas vezes que lá passamos. Um abraço

Carlos Pinheiro disse...

Juvenal. Deixaram-nos sair porque já era habitual com aquele barco que demorava ali muito tempo para meter água e nafta que não havia em Bissau. Aliás na viagem para Bissau o CARVALHO ARAUJO também ia a S. Vicente (Cabo Verde) metar água e nafta porque não tinha autonomia e porque em Bissau não havia. Quanto ao resto, está tudo dito... mas os porões eram muito melhores, porque havia ar forçado por causa do gado que transportou durante anos e anos dos Açores para o continente. E quem fez as viagens nos porões dos outros barcos sabe do que estou a falar que é indiscritivel...eu pqara lá fui no UIGE... Um abraço.

Hélder Sousa disse...

Com que então mais um belíssimo cruzeiro....

Hoje, creio, já é possível olhar para trás com algum distanciamento e relativizar as coisas. Creio igualmente que essa paragem na Madeira também terá servido para descontrair e ir habituando a mente ao regresso à Metrópole.

Essa do "cozido à portuguesa" é mesmo sintomático da maneira de ser lusitana. Uma sopinha do cozido a fazer "cama", a preparar o estômago, certamente tão maltratado nos últimos meses, o cozido, com boas e saborosas carnes, as couvinhas, os enchidos, enfim, tudo muito saboroso (mesmo que assim não fosse) e o arrozinho onde se podia mistura a farinheira ou o chouriço de sangue. Pelo que li ainda te começaste a fazer esquisito mas lá te convenceram.
Olha, comigo, essa do arroz não causou mossa. Já "AG" (antes da Guiné) gostava de arroz e lá, fui comendo o que aparecia (arroz "vermelho" quando era, alegadamente, de tomate, arroz "amarelo" quando se assemelhava a caril, arroz "branco" quando não levava mais nada, arroz "verde" quando tinha alguma "verdura" misturada, etc.) e mais tarde "DG" (depois da Guiné) continuei a apreciar. A minha mãe dizia que eu era "arraçado de chinês". Pois, se calhar....
Quanto aos acontecimentos que relatas em relação à data, 21 de Novembro, pois essas serão as tuas referências, eu terei outras. Por esses dias estava eu com 12 dias de Guiné e muitos anos mais tarde seria a data do falecimento do meu pai.
Mas as datas são o que são e podemos sempre encontrar algumas efemérides com elas relacionadas.

Vai recordando mais, que isso também nos ajuda.

Hélder Sousa

Juvenal Amado disse...

Carlos eu para fui Angra do Heroísmo que era um belo paquete só com defeito que a viagem foi em sentido contrário.

Carlos Pinheiro disse...

Helder. Não gostas mais de arroz do que eu. Mas se fosses obrigado a comer arroz de polvo ao jantar de domingo no refeitório da CCS/QG, sempre a mesma coisa, virava-se o prato ao contrário e aquela coisa não caía. Também ficavas farto de arroz, mas depois daquele almoço, como disse fiquei de novo freguês do arroz. Eu até tenho vergonha de falar nisto porque sei que o pessoal do mato por vezes nem arroz tinha. Mas ao Domingo na CCS/QG era sempre aquela mistela e ainda por cima era só para o pessoal de serviço porque a maioria desenfiava-se para a cidade. Aquele refeitorio era porrreiro. Até ração de combate ali se comia, pelo menos, uma vez por mês....
Um abraço
CP

Anónimo disse...

Grato pela partilha Camarigo Carlos Pinheiro.
Datas inesquecíveis que nos marcam toda a vida.
Abraço fraterno de Alcobaça.
JERO