1968 - BISSAU
Carlos Pinheiro |
Era dia de Todos os Santos. Era dia 1 de Novembro de
1968. Estava no meu terceiro dia de Guiné. Tinha chegado no UÍGE em 28 de
Outubro. Estava “adido” nos Adidos, em Brá, porque tinha ido em rendição
individual e o meu Batalhão, o 1911, regressaria no mesmo barco onde eu tinha
ido. Coisas da tropa. Só que, mesmo depois da comissão terminada e o barco ao
largo à espera, mesmo assim, o 1911 estava numa operação especial no Sul. E o
UÍGE lá esperou mais de uma semana.
Por tudo isto, estava “adido” nos Adidos, um quartel
de passagem onde as condições, ou a falta delas, eram inimagináveis. Uma cama?
O que era isso para os “periquitos” (1)? Comida? Tenham calma. Podem lá ir fora
e andar “desenfiados” que ninguém dá pela vossa falta. Devem ainda trazer algum
“patacão”(2) da Metrópole no bolso. Desenrasquem-se, era a ordem - e assim
íamos fazendo, conforme podíamos.
Tudo ali estava de passagem, à espera de um destino.
Para os que chegavam, era a espera da guia de marcha para o destino. Para os
outros, os que já tinham terminado a comissão, era a espera do regresso
desejado. Portanto, como não havia tanta coisa, camas era o que mais faltava.
Não havia mesmo. A malta desenrascava-se a dormir em cima daquelas caixas da
tropa que na Metrópole serviam para guardarmos, debaixo da cama, as nossas
coisas e especialmente o farnel de casa e as botas de sair, as botas
engraxadas. Ali, não. Ali serviam mesmo de cama.
A primeira noite foi horrível. Os
mosquitos, aos milhares, dada a falta de higiene e de qualquer tipo de limpeza
mais que evidente, e ainda por cima com as “bolanhas”(3)) ali à volta, sabiam
escolher o sangue novo acabado de chegar. No outro dia ainda não havia feridas,
mas tínhamos o corpo todo picado. Parecia que tínhamos rubéola. Havia portanto
que arranjar um sítio para dormir e eu, à boa maneira portuguesa, acabei por
ter sorte.
Ainda no cais, no dia anterior quando desembarquei, encontrei um
conterrâneo, já “velhote” naquelas coisas da guerra. Era condutor na Companhia
de Transportes. Tinha sido ele, e os seus camaradas que nos tinham transportado,
na véspera, naquelas velhas GMC da 2.ª Grande Guerra, para os nossos destinos.
Foi ele que no dia seguinte me procurou para me dizer que, provisoriamente, me
arranjava uma cama, com mosquiteiro, na sua Companhia, no Quartel-General, em
Santa Luzia. Foi uma pequena felicidade, já que a maior parte dos companheiros
de viagem só muito mais tarde é que teve a tal cama com mosquiteiro. Sim, esta
coisa do mosquiteiro era um pormenor mais que importante, porque assim os
mosquitos não nos chegavam ao pelo.
Talvez por isso, talvez porque não conhecia ainda mais
ninguém naquelas paragens, mas também com sentimento de agradecimento, convidei
o meu amigo para um petisco nesse dia de Todos os Santos.
Foi ele que escolheu o sítio. Aliás, eu ainda não
conhecia nada. E assim, lá fomos até Safim, nos arredores de Bissau, onde se
comiam umas ostras que eu ainda não sabia apreciar, mas também se comia um
bocado de leitão e se bebiam umas “bazookas” da Metrópole ou até mesmo de
Angola, a Cuca ou a Nocal, ou de Moçambique, a 2M, salvo erro.
A páginas tantas, como soe dizer-se, a meio do
repasto, começa a passar por cima de nós uma série de helicópteros, movimentos
esses a que eu não estava habituado e certamente por isso perguntei a que se
devia tal bailado. E o meu amigo não se fez rogado:
- Havia “ronco”(4). Mas o que era “ronco”?
E ele lá me explicou. Havia “porrada” de certeza.
Mas nós lá fomos cumprindo a obrigação que nos tinha
levado aquele sítio. A temperatura era elevada, a humidade era ainda maior.
Havia portanto que refrescar o corpo com as bebidas frescas sem que notássemos
que a mente ficava cada vez mais nublada.
Depois, lá voltámos ao quartel, a Santa Luzia, à
procura do local do descanso. Mas qual descanso? Quando lá chegámos, de certo
modo “alegres”, mandaram-nos calar porque a caserna estava cheia de feridos.
Feridos? Mas como? Foi como um balde água fria. O
“calor” passou-nos de imediato. Caímos de imediato em nós. O que é que se tinha
passado? Tinha sido só mais um caso. Dramático como muitos outros. Um
“periquito”, talvez duma Companhia que tinha ido comigo no barco, ao subir para
uma GMC na zona de Bula, a caminho do seu destino, deixou cair a sua bazuca
armada e aconteceu um mar de dor e de sangue.
Nunca cheguei a saber quantos morreram, mas alguns
acabaram ali a comissão que estavam a iniciar. Muitos feridos estilhaçados em
tudo que foi sitio. Nos braços, nas pernas, tronco, na cabeça, onde calhou. Daí
aquele bailado dos helicópteros.
No meio dos feridos, alguns eram condutores da
Companhia de Transportes. Por isso, o Hospital, o HM 241, o Hospital Militar de
Bissau onde se fizeram autênticos milagres durante toda a guerra, pediu aquela
Unidade para recrutar pessoal para ir dar sangue. Voluntários apareceram de
imediato, como era habitual.
O Unimog arrancou carregado, mas antes de chegar ao
Hospital, despistou-se junto ao Bairro da Ajuda, já muito perto do Hospital.
Mais feridos. Mais dor. Mais sangue. Mais sofrimento. Daí a razão de tantos
feridos na caserna aquela hora. Eram os que estavam menos-mal. O Hospital
estava cheio e teve que dar alta aos que inspiravam menos cuidados. Era a
guerra na verdadeira acepção da palavra.
Foi assim o meu primeiro dia de Todos os Santos que
passei na Guiné. Há dias que não se esquecem e aquele foi um deles.
Carlos Pinheiro
(1)
Militar recém-chegado
à Guiné.
(2)
Dinheiro.
(3)
Terrenos pantanosos.
(4)
“Festa”, pancada, algo
de anormal.
3 comentários:
Carlos tiveste um agitado e lamentavel primeiro contacto com Bissau. Estás tragédias eram recorrentes. A malta ia mal preparada e a sorte era escapar. Um abraço
Caro Carlos Pinheiro, sem dúvida que foi uma "estreia" e tanto.
Calculo que ficasses melhor preparado para os tempos que se seguiriam.
Foi duro, não foi?
Abraço
Hélder Sousa
Camarigo Carlos Pinheiro que história bem sofrida para começar a comissão!!!
Quem passou "por lá" entra facilmente na tua história, onde não faltam pormenores nem mosquitos.
Abraço e venham mais histórias.
JERO
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