sexta-feira, 18 de outubro de 2019

P1173: VELHAS HISTÓRIAS DO JUVENAL AMADO / 2

Mais uma história do nosso camarigo Juvenal Amado...

A PEQUENA E ADORÁVEL MARIAMA

Abriu os olhos de espanto e de medo ao ver a minha Berliet, que entrava pela aldeia levantando nuvens de pó. Virou costas e correu no sentido contrário, abrigando-se nas pernas da mãe que, com alguma curiosidade, nos observava junto da sua cabana destruída.

Mariama era uma bajuda de palmo e meio. Tinha um tom de pele café com leite escuro, os olhos grandes e castanhos. O cabelo todo entrançado com amuletos nas pontas. Vestia uma blusa sem mangas e um pano fula enrolado à cintura. Um ronco, num dos tornozelos dos seus pés descalços, completava a vestimenta.

Parei a viatura, saltei dela com a minha arma e disse-lhe adeus, ao que ela respondeu escondendo-se, ainda mais, na roupa da mãe.


Bangacia após o ataque - 1
Íamos começar a reconstrução de Bangacia, que tinha sido destruída pelos guerrilheiros algum tempo atrás. Sempre achei que aquilo tinha sido um ataque por encomenda.

Assim, quando reconstruímos, fizemos algumas benfeitorias, entre as quais, casas mais espaçosas e telhados de zinco, em vez dos de capim (que tinham que ser mudados de vez em quando), posto médico e escola.

As alterações eram nitidamente do agrado da população. Fizeram-se vários grupos de construção. Sapadores, alguns elementos do Pel.Rec. que tinham conhecimentos de pedreiro e carpinteiro. Também vieram camaradas das Companhias Operacionais, onde pontuava o Saltinho como grupo mais numeroso.

Cada chefe de família tinha que produzir blocos de barro para utilizar na construção da nova casa, para a sua família. Assim, amassavam o barro de cor cinzenta com palha misturada, enchiam um molde e os blocos daí resultantes iam sucessivamente ficando ao sol, até se tornarem duros.

Eu e os outros condutores de Berliet acarretávamos os blocos para o local escolhido pelos seus donos. Escusado será dizer que era preciso pôr ordem nos carregamentos, pois todos queriam ser os primeiros. Assim sempre que não tinha coluna para qualquer lado, lá estava eu logo de manhã a transportar os tijolos de barro, hora para uns, hora para outros.


Bangacia após o ataque - 2
A Mariama espreitava sempre de longe. Eu acenava-lhe e, à hora do lanche, que fazíamos às 10 horas da manhã, oferecia-lhe com um gesto um pouco de pão. Acabava alguém por vir buscar para ela, mas ela nunca vinha.

Como tinha sempre doce da ração de combate, passei a levar-lhe. Mas pouco e pouco as outras crianças, que andavam sempre à nossa volta, foram-na trazendo mais para perto.

Passado algum tempo, mal eu chegava, vinha a correr dar-me mão. Levava-me ao pé da mãe, mulher de talvez vinte e poucos anos, com dois filhos e a nossa heroína.

A idade dela era difícil de descobrir, tendo em conta os filhos e a vida dura das mulheres da Guiné que rapidamente perdiam a sua juventude. O pai era mais velho e tinha outras mulheres, como era costume. A riqueza de um Homem Grande media-se pelo número de mulheres e cabeças de gado.

O nome por que eu era conhecido, fazia-lhes confusão uma vez que Amado era muito parecido com Amadu ou Mamadu. Quando eu o mencionava, os Homens Grandes faziam uma expressão de gozo, metiam a mão à frente da cara – “Heeeeeiiiiiiiiiiiiii nosso cabo é manga de calabanta!” (1). Pensavam que eu estava a gozar com eles.

Mas a Mariana, mal eu chegava, ouvia logo a vozita dela a chamar, “Almadu…. Almadu”, ainda complicou mais o nome. Vinha à procura das guloseimas que no fundo se resumiam a pão, latas de cavala e sardinha. Todo o dia andava comigo para cima e para baixo, em cima da viatura mandando nos outros garotos. Era a mais pequenita de todos.

Junto a um monte de tijolos utilizados
na reconstrução de Bangacia
A reconstrução seguia em bom ritmo. Faziam-se as paredes exteriores dividia-se por dentro em quatro salas iguais, punha-se o vigamento e por último o telhado.

Sempre que se atingia uma fase, assistia-se a estranhas negociações. Os Homens Grandes ofereciam galinhas para serem os primeiros a terem as casas prontas, mas à medida que viam a mesma a ficar concluída, começavam a esquecer-se das promessas.

Os Islamitas são bons negociadores. Então os camaradas diziam que não lhes acabavam a casa e mais, furavam-lhe os tectos todos. Com gestos simulavam um chuveiro, onde eles passariam a tomar banho. Com grande alarido as negociações começavam em cinco galinhas, mas por fim o Homem Grande só dava uma. E levava tempo a negociar.

Nós riamos pois para nós, naquele caso, era tudo uma brincadeira. Entretanto passei a ser recebido na casa da Mariama. Ela pedia-me tudo o que lhe diziam para pedir: “Almadu parte (2) peso”, “Almadu parte lata”, etc, etc... Na medida do possível lá lhe comprei uns chinelos coloridos, que ela nem para dormir os tirava.

A mãe torrava-me mancarra (3) numa panela de ferro e foi ali que provei a bianda (4) com molho da polpa que envolve a amêndoa da palmeira.

Um dia a mãe disse-me, mais por gestos que por fala, se eu queria “levar a Mariama no Lisboa”.  Eu ri-me, fiquei embaraçado e disse-lhe que não era possível.

A idade, para além das dores nas pernas e nas costas, traz também por vezes alguma sabedoria e hoje, quando penso neste episódio, vejo com clareza a mensagem daquela mãe.

Trazer a pequenita comigo era livrá-la da mutilação (5), da miséria, do analfabetismo e de uma esperança de vida que não ultrapassa os quarenta anos. A Mariama terá, se chegou à pré-adolescência, passado por essa prova cruel do Fanado, terá sido vendida por dois sacos de mancarra e um de cola, para ser a 2ª ou 3ª mulher de um homem bem mais velho.

A mãe não terá tido consciência do alcance total do seu pedido. Mas estava no seu instinto de mulher tentar um futuro diferente para a filha.

A reconstrução de Bangacia ficou pronta. Foi um prazer ver aquelas casas alinhadas, com arruamentos largos, os telhados brilhando ao sol.

Passei a ir menos vezes à povoação, embora lá fosse sempre que ia às Duas Fontes. Levava latas de conservas e pão, que trocava com os garotos por laranjas e mangas. Guardava sempre o melhor para a pequenina Mariama.

Um dia também me apareceu no quartel...

No momento que escrevo estas linhas, peço para que o destino lhe tenha reservado um futuro diferente dos milhões de Mariamas que na Guiné sofrem com a pobreza e possivelmente não acreditam que possa haver cura para os seus males.

Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro 1972/74

Notas do autor:

(1) Malandro.
(2) Dá-me um escudo
(3) Amendoim.
(4) Arroz.
(5) “Fanado”: trata-se de uma prática horrível, onde se mutilam as meninas nos órgãos genitais. Por todo o Mundo Islâmico é praticado. Há no entanto algumas vozes de mulheres africanas, que fazem uma campanha muito corajosa contra esta prática, que as limita como mulheres inteiras, no pleno direito e uso, de todas as suas capacidades.


2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Juvenal "Almadu"...

Um relato simples mas cheio de conteúdo.
Pelo menos para quem se interessar pelos temas.
Olhando para traz, e sabendo agora melhor como são as coisas, terá sido uma pena não teres podido proporcionar um (talvez) melhor futuro para a Mariema. Isso nunca seria fácil e provavelmente até impossível mas....

Falas aqui da "aproximação" cautelosa de modo a captar a atenção da garota.
É interessante o relato de como isso se foi processando.
É interessante a interacção com a família e a "estreia" da "bianda" no caldo de amendoim.
É interessante o relato das "discussões" para ver quem construía ou ocupava primeiro as moranças.
É muito interessante e didáctica a chamada de atenção para a grande questão da mutilação genital feminina.

E estas recordações vão-nos acompanhando e mesmo que as novas gerações olhem com desconfiança para elas, aqui ficam como registos e depois não podem dizer que "não sabiam, ninguém lhes disse nada".

Hélder Sousa

Anónimo disse...

Muito interessante esta história que o amigo Juvenal aqui nos conta e que muitos puderam confirmar com a permanência naquela paragem distante, mas muito presente nos nossos corações.
Penso também algumas vezes nos miúdos que conheci na Guiné e é para mim um facto que muito me entristece, o horror a que as miúdas sofrem por uma prática ancestral dos seus anteparados a “mutilação genital”. Gostaria de acreditar que um dia será erradicada de vez!...

Um abraço amigo.

M Arminda