sexta-feira, 4 de outubro de 2019

P1169: UMA HISTÓRIA SURREAL...

ALCUNHAS DO TEMPO DA VIDA MILITAR 
QUE NÃO ESQUECEM / 5

O “ALCOBAÇA”

JERO

Memória de uma longa conversa com o meu conterrâneo José Peça, um “rapaz” do meu tempo!

Foi no dia 5 de Junho de 1963. Passava pouco do meio-dia. À distância do tempo recorda esse dia… ao minuto. Era Soldado Condutor (condutor auto rodas) da CCS do Batalhão 400 (BART 400). Pediram nessa altura “voluntários” para ir ajudar uma coluna do "392", de Baca, que estava a ser atacada quando vinha a meio caminho em direção a Bessa Monteiro.

O José Peça ficou no quartel sentindo-se na obrigação de me explicar que “na tropa aprendeu cedo que não se devia ser voluntário” para nada. Saiu uma coluna comandada pelo Capitão Moura Borges para "ir dar uma mão" à tropa do "392", ajuda que tinha sido pedida por rádio.
Por volta das 3 da tarde soube o que tinha acontecido.

A cerca de 12 kms. de Bessa Monteiro, num local em que a “picada” estreitava devido a uma “garganta” da montanha a segunda viatura da coluna da CCS rebentou uma mina anticarro, não tendo conseguido chegar ao local da emboscada da "392". Tinham-se registado diversos mortos e feridos.

Lembra-se de os mortos terem chegado “feitos em bocados”. Havia a lamentar 3 mortos da CCS, entre os quais o Capitão Borges. E também havia mortos em Baca da CART 392. Constava que eram 4.

O “Alcobaça” - como era conhecido e tratado na sua companhia - ajudou no que lhe foi possível e, ainda assarapantado pela confusão do momento, lembra-se de passado algum tempo ter sido chamado pelo Comandante de Batalhão, Tenente-Coronel Alberto Ferreira de Freitas Costa.

“Alcobaça”, vai jantar e depois levas os mortos a Ambrizete”.
Nesta parte da narrativa o Zé Peça esclarece-me de algumas dúvidas.
Destino Ambrizete porquê?
Ambrizete ficava a 200 kms. mas tinha cemitério e uma Igreja onde se podiam fazer os funerais. Teria que fazer o percurso onde tinha ocorrido o rebentamento da mina e passar por Baca para transportar para o mesmo destino os outros mortos.

Entre diversos pormenores macabros em relação aos mortos da CCS o Zé Peça lembra-se ainda do que comeu na altura: “bacalhau com batatas”! Porque se lembra deste pormenor ?
Porque que era um "prato" de que muito gostava e não tinha conseguido "tocar na comida".
Algum tempo depois apresentou-se com a sua “GMC” junto ao Comando e carregaram-lhe, em maca, os 3 mortos.

O Tenente-Coronel entregou-lhe os galões do Capitão Borges e disse-lhe em voz baixa que os voltasse a colocar no corpo do Oficial quando tivesse chegado ao seu destino.

- “E quem vai comigo, meu Comandante?”

- “Ninguém. Vais sozinho pois já chegam os mortos que tivemos. Se houver outra mina só teremos mais uma baixa e não duas.”

O José Peça, que sabia que o Comandante de Batalhão tinha estima por si, sentiu um aperto "mitral" mas nada disse e subiu para a viatura. Pôs o motor a trabalhar e arrancou, seguido por duas viaturas com 2 secções. Lembra-se que uma das secções era comandada pelo Furriel Tavares. 

Eram umas seis da tarde. Ainda havia luz de dia mas pouco depois começou a escurecer. 
O “Alcobaça” não acendeu os faróis mas ligou os “olhos de gato” da “JMC”. Em marcha lenta, pois nalguns troços da “picada” os homens do Furriel Tavares seguiam apeados, chegaram ao local onde tinha rebentado a mina.

Foi muito difícil ultrapassar o "buracão", dificuldades que pouco depois aumentaram quando encontraram duas árvores abatidas na "zona de morte" da emboscada que a malta do "392" tinha sofrido.

Os “abatises” tiverem que ser serrados e removidos para a berma para a pequena coluna continuar o seu caminho. Foram horas de angústia que se prolongaram pela noite dentro.

Chegaram a Baca por volta das 4 da manhã. Aí o Zé Peça lembra-se de ter comido alguma coisa. Uma espécie de pequeno almoço. Tinham sido precisas cerca de 10 horas para percorrer 22 quilómetros!

Foram carregados os mortos da “392”- eram 3 e não 4 -  e a coluna “funerária” seguiu a caminho de Ambrizete.

Só, na sua cabine, nem uma vez o Zé Peça olhou para trás, para a sua ”carga”. Sentia um cheiro a morte e um zumbido de moscas… Foram horas e mais horas até Ambrizete. Só, com os seus pensamentos, o Zé Peça olhava para a “picada” atento a qualquer coisa… As sombras da noite foram clareando e quando o amanhecer chegou o seu ânimo melhorou um pouco…

Eram 5 da tarde quando chegou a Ambrizete. Tinham passado cerca de 23 horas desde que tinha saído de Bessa Monteiro! Os corpos começaram a ser descarregados e o “Alcobaça” apressou-se a pôr os galões no cadáver que lhe pareceu ser o do Capitão Borges. Os corpos estavam inchados, cobertos de pó, de moscas e… irreconhecíveis. O Zé Peça teve dúvidas mas… não conseguia olhar mais tempo os mortos.

Perguntei-lhe se os corpos estavam identificados, se tinham as chapas metálicas de identificação que todos os militares traziam ao peito. Em consciência não se lembra… nem sabe responder.

O "Alcobaça"
Tinha que sair dali bem depressa e foi para a “Pensão do Moço”. Conhecia o dono e lembra-se que foi para a cama bem cedo. Caiu na cama mas não conseguiu dormir nada de jeito. Teve pesadelos e viu, vezes sem conta, os “seus” mortos numa noite longa… que parecia não ter fim.

 
No dia seguinte atestaram-lhe a sua GMC com géneros. Carregou sacos de arroz, feijão, grão, batatas, conservas e barris de vinho. O Zé Peça lembra-se que sentia algum “conforto” com a carga que ia transportar. Carregava a tonelagem máxima e se “encontrasse” uma mina anticarro talvez não saltasse muito!

Não houve problemas no regresso a Bessa Monteiro. Quando chegou ao aquartelamento pensava que ia encontrar a malta toda em lágrimas. Foi recebido com gritos de satisfação – “Olha o “Alcobaça”!
 
Num grupo tocava-se acordeão e dançava-se… Parecia que nada de anormal se tinha passado dois dias antes… O “Alcobaça” percebeu que a guerra é mesmo assim. Ai dos que partem! Quem fica… come, bebe, brinca... convencido que a acontecer alguma coisa de mau acontecerá aos outros.

Fez o relatório verbal ao seu Comandante  e não ocultou as dúvidas que teve quando colocou os galões do Capitão… num corpo que poderia não ser o “certo”. O seu Tenente-Coronel não o recriminou e explicou-lhe as razões da tal ordem cruel: «Segues sozinho porque já me chegam os mortos que tivemos.» O Zé Peça compreendeu e seguiu para a sua vida no quartel.

O nosso camarada termina a sua história com a voz rouca.
Peço-lhe algumas fotografias do seu tempo de Angola que, com a ajuda da sua mulher, encontra passado algum tempo.
Passar uma noite a conduzir… A morte marcou-lhe a vida!

JERO


4 comentários:

Carlos Pinheiro disse...

A guerra existiu e este poste é mais uma prova disso. Mas ainda há muita gente que ignora porque quer...

Juvenal Amado disse...

A guerra as suas agruras com umas ordens um tanto ou quanto assim assim. O Peça se não estou em erro era primo direito do meu sogro embora mais novo. Mas as alcunhas eram uma constante na tropa e não só. Muitos como Peça assumiram como alcunha o nome da sua terra mas no meu 3972 o cabo do rancho era o Santarém o engraçado eu ter pensado que era assim tratado por ser de Santarém. Aqui á uns anos organizei o almoço da minha companhia e só naquela altura fiquei a saber que era do pé do Fundão e Santarém era mesmo o nome dele.
Um abraço

Hélder Valério disse...

Amigo Jero, só agora li.

É mais um relato de "coisas que aconteceram".
Isso, sabemos nós.
Para as novas gerações "talvez não tenha sido bem assim", podia lá ser!
Mas a verdade é que foi mesmo!

Quem se conseguir colocar na "pele do outro" que experimente "viver" essas horas (que foram o somatório de vários momentos) de angústia, de incerteza e de convívio com a morte.

A constatação que o "Alcobaça" fez de que no quartel a vida decorria como se não tivesse ocorrido nada pouco tempo antes, também a podemos encontrar naquela expressão que bem conhecemos de "rei morto, rei posto" significando a dor, o luto pelo rei que se finou e a alegria e a esperança pelo novo rei que se sucedia, ou então também num dos poemas de Manuel Alegre em que ele escreve, perante os medos e sofrimentos vividos em África "em Lisboa, na mesma, isto é, a vida corre" mostrando assim que "longe da vista longe do coração".

Pois é Jero, recordar é viver mas, às vezes, há recordações que ainda doem.

Abraço
Hélder Sousa



Anónimo disse...

Diz o amigo Helder “...que às vezes, há recordações que aida doem...” e eu acrescento, que nos acompanharão para a vida inteira.

Foi e é o que eu presenciei com o acidente do avião DC4 da FAP, que caiu e m Novembro de 1961, no sul de Angola-Chitado, matando todos os seus ocupantes,.. O que vi, ficou-me gravado na memória e coração.
Um abraço para os três, JERO, Alcobaça e Miguel, que nos deram a conhecer, mais uma estória da guerra, que muitos viveram e que outros, não acreditam que tivesse sido assim.
M Arminda