Mais uma história do nosso camarigo Juvenal Amado...
A PEQUENA E ADORÁVEL MARIAMA
Abriu os olhos de espanto e de medo ao ver a minha Berliet, que entrava pela aldeia levantando nuvens de pó. Virou costas e correu no sentido contrário, abrigando-se nas pernas da mãe que, com alguma curiosidade, nos observava junto da sua cabana destruída.
Mariama era uma bajuda de palmo e meio. Tinha um tom de pele café com leite escuro, os olhos grandes e castanhos. O cabelo todo entrançado com amuletos nas pontas. Vestia uma blusa sem mangas e um pano fula enrolado à cintura. Um ronco, num dos tornozelos dos seus pés descalços, completava a vestimenta.
Parei a viatura, saltei dela com a minha arma e disse-lhe adeus, ao que ela respondeu escondendo-se, ainda mais, na roupa da mãe.
Bangacia após o ataque - 1 |
Assim, quando reconstruímos, fizemos algumas benfeitorias, entre as quais, casas mais espaçosas e telhados de zinco, em vez dos de capim (que tinham que ser mudados de vez em quando), posto médico e escola.
As alterações eram nitidamente do agrado da população. Fizeram-se vários grupos de construção. Sapadores, alguns elementos do Pel.Rec. que tinham conhecimentos de pedreiro e carpinteiro. Também vieram camaradas das Companhias Operacionais, onde pontuava o Saltinho como grupo mais numeroso.
Cada chefe de família tinha que produzir blocos de barro para utilizar na construção da nova casa, para a sua família. Assim, amassavam o barro de cor cinzenta com palha misturada, enchiam um molde e os blocos daí resultantes iam sucessivamente ficando ao sol, até se tornarem duros.
Eu e os outros condutores de Berliet acarretávamos os blocos para o local escolhido pelos seus donos. Escusado será dizer que era preciso pôr ordem nos carregamentos, pois todos queriam ser os primeiros. Assim sempre que não tinha coluna para qualquer lado, lá estava eu logo de manhã a transportar os tijolos de barro, hora para uns, hora para outros.
Bangacia após o ataque - 2 |
Como tinha sempre doce da ração de combate, passei a levar-lhe. Mas pouco e pouco as outras crianças, que andavam sempre à nossa volta, foram-na trazendo mais para perto.
Passado algum tempo, mal eu chegava, vinha a correr dar-me mão. Levava-me ao pé da mãe, mulher de talvez vinte e poucos anos, com dois filhos e a nossa heroína.
A idade dela era difícil de descobrir, tendo em conta os filhos e a vida dura das mulheres da Guiné que rapidamente perdiam a sua juventude. O pai era mais velho e tinha outras mulheres, como era costume. A riqueza de um Homem Grande media-se pelo número de mulheres e cabeças de gado.
O nome por que eu era conhecido, fazia-lhes confusão uma vez que Amado era
muito parecido com Amadu ou Mamadu. Quando eu o mencionava, os Homens Grandes
faziam uma expressão de gozo, metiam a mão à frente da cara – “Heeeeeiiiiiiiiiiiiii
nosso cabo é manga de calabanta!” (1). Pensavam que eu estava a gozar com eles.
Junto a um monte de tijolos utilizados na reconstrução de Bangacia |
Sempre que se atingia uma fase, assistia-se a estranhas negociações. Os Homens Grandes ofereciam galinhas para serem os primeiros a terem as casas prontas, mas à medida que viam a mesma a ficar concluída, começavam a esquecer-se das promessas.
Os Islamitas são bons negociadores. Então os camaradas diziam que não lhes acabavam a casa e mais, furavam-lhe os tectos todos. Com gestos simulavam um chuveiro, onde eles passariam a tomar banho. Com grande alarido as negociações começavam em cinco galinhas, mas por fim o Homem Grande só dava uma. E levava tempo a negociar.
Nós riamos pois para nós, naquele caso, era tudo uma brincadeira. Entretanto passei a ser recebido na casa da Mariama. Ela pedia-me tudo o que lhe diziam para pedir: “Almadu parte (2) peso”, “Almadu parte lata”, etc, etc... Na medida do possível lá lhe comprei uns chinelos coloridos, que ela nem para dormir os tirava.
A mãe torrava-me mancarra (3) numa panela de ferro e foi ali que provei a bianda (4) com molho da polpa que envolve a amêndoa da palmeira.
Um dia a mãe disse-me, mais por gestos que por fala, se eu queria “levar a Mariama no Lisboa”. Eu ri-me, fiquei embaraçado e disse-lhe que não era possível.
A idade, para além das dores nas pernas e nas costas, traz também por vezes alguma sabedoria e hoje, quando penso neste episódio, vejo com clareza a mensagem daquela mãe.
Trazer a pequenita comigo era livrá-la da mutilação (5), da miséria, do analfabetismo e de uma esperança de vida que não ultrapassa os quarenta anos. A Mariama terá, se chegou à pré-adolescência, passado por essa prova cruel do Fanado, terá sido vendida por dois sacos de mancarra e um de cola, para ser a 2ª ou 3ª mulher de um homem bem mais velho.
A mãe não terá tido consciência do alcance total do seu pedido. Mas estava no seu instinto de mulher tentar um futuro diferente para a filha.
A reconstrução de Bangacia ficou pronta. Foi um prazer ver aquelas casas alinhadas, com arruamentos largos, os telhados brilhando ao sol.
Passei a ir menos vezes à povoação, embora lá fosse sempre que ia às Duas Fontes. Levava latas de conservas e pão, que trocava com os garotos por laranjas e mangas. Guardava sempre o melhor para a pequenina Mariama.
Um dia também me apareceu no quartel...
No momento que escrevo estas linhas, peço para que o destino lhe tenha reservado um futuro diferente dos milhões de Mariamas que na Guiné sofrem com a pobreza e possivelmente não acreditam que possa haver cura para os seus males.
Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro 1972/74
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro 1972/74
Notas do autor:
(1) Malandro.
(2) Dá-me um escudo
(3) Amendoim.
(4) Arroz.
(5) “Fanado”: trata-se de uma prática horrível, onde se mutilam as meninas
nos órgãos genitais. Por todo o Mundo Islâmico é praticado. Há no entanto algumas
vozes de mulheres africanas, que fazem uma campanha muito corajosa contra esta
prática, que as limita como mulheres inteiras, no pleno direito e uso, de todas
as suas capacidades.
2 comentários:
Caro Juvenal "Almadu"...
Um relato simples mas cheio de conteúdo.
Pelo menos para quem se interessar pelos temas.
Olhando para traz, e sabendo agora melhor como são as coisas, terá sido uma pena não teres podido proporcionar um (talvez) melhor futuro para a Mariema. Isso nunca seria fácil e provavelmente até impossível mas....
Falas aqui da "aproximação" cautelosa de modo a captar a atenção da garota.
É interessante o relato de como isso se foi processando.
É interessante a interacção com a família e a "estreia" da "bianda" no caldo de amendoim.
É interessante o relato das "discussões" para ver quem construía ou ocupava primeiro as moranças.
É muito interessante e didáctica a chamada de atenção para a grande questão da mutilação genital feminina.
E estas recordações vão-nos acompanhando e mesmo que as novas gerações olhem com desconfiança para elas, aqui ficam como registos e depois não podem dizer que "não sabiam, ninguém lhes disse nada".
Hélder Sousa
Muito interessante esta história que o amigo Juvenal aqui nos conta e que muitos puderam confirmar com a permanência naquela paragem distante, mas muito presente nos nossos corações.
Penso também algumas vezes nos miúdos que conheci na Guiné e é para mim um facto que muito me entristece, o horror a que as miúdas sofrem por uma prática ancestral dos seus anteparados a “mutilação genital”. Gostaria de acreditar que um dia será erradicada de vez!...
Um abraço amigo.
M Arminda
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