terça-feira, 25 de abril de 2017

P904: "Ó TEMPOS! Ó COSTUMES" (CÍCERO)

TABANCA DE AFRICANO NÃO CAI…

Manuel Frazão Vieira
Ainda não tenho memória curta. Mas, mesmo que tivesse, ela chegava para abarcar as imagens que ainda retenho do aeroporto de Bissalanca, dos aquartelamentos do Cumeré,  Aldeia Formosa,  Bolama e Chamarra.

Por aquelas cinco localidades da Guiné por onde passei, lidei e sonhei, contactando gentes, ouvindo-as, registando e observando usos, costumes e culturas ancestrais, porventura, enigmáticas para um jovem ocidental, a aproximar-se dos 23 anos, acabado de chegar a um novo mundo, a uma nova terra que sabia existir, apenas, pela tradição oral e conhecimento livresco paginado a partir das cartilhas do ensino primário.

Fui um curioso expectante em deixar levar-me ao conhecimento das formas e desenvolvimento social, costumário, hierárquico e cultural daquelas gentes de quem eu apenas sabia fazerem parte de um povo multirracial, um povo soberano, de uma nação única e indivisível espalhada do Minho a Timor.

Por onde passei e vivi, registei histórias indeléveis e acontecimentos marcantes num sucedâneo de circunstâncias e exigências próprias de um cenário de guerra de características e operacionalidade "sui generis". 

Cheguei à Chamarra pelas 18H00 do dia 28 de Maio de 1973, onde fui substituir o ex-Alferes Ribeiro, em final de comissão, no comando do PEL CAÇ NAT 55. Tratava-se de um destacamento muito pequeno que dependia do Comando do Batalhão de Aldeia Formosa. O destacamento da Chamarra estava situado a sul, a uma distância de 10 Kms de Aldeia Formosa, funcionando como posto avançado desta, muito próximo de Porto Balana / Gandembel, mais ou menos a 40 Kms de Guileje. 

A Chamarra era temível, tenho provas disso, mas... entre o "terror" de Cumbijã e a paz aparente e calculada da Chamarra, preferi esta, considerando um privilégio ter podido optar, em missão de guerra, perante uma situação, apesar de incerta e dúbia, onde tudo poderia acontecer. 

Nessa altura, já andava a CCAV 8351 independente, a minha companhia de origem, sediada em Aldeia Formosa,  comandada pelo meu bom amigo ex-Cap. Vasco da Gama, de malas às costas a caminho do "inferno" e do "atoleiro" de Nhacobá e Cumbijã que as NT abandonaram, em 1968/69, por tanta "pancadaria", decidindo o Comando de Bissau o seu abandono.

Na Chamarra, no PEL CAÇ NAT 55, tudo era novidade para mim. Uma população civil, constituída à base de mulheres, muitas crianças e jovens famintos de tudo. O pelotão nativo mantinha a sua missão com patrulhamentos diários ao nível de Secção comandada por um Furriel. Tinha 3 Furriéis no destacamento. A minha integração de responsável e líder naquele pequeno meio militar, ao nível de destacamento, na protecção, defesa e segurança da população ia-se solidando, paulatinamente, conquistando a confiança da população e militares nativos.

Tudo corria bem. Só que, ao meu 4.º dia de Chamarra, no PEL CAÇ NAT 55, a seguir ao almoço do dia 01 de Junho de 1973 fiquei sem "casa", sem "moradia", sem "tabanca". E, agora? Coração ao alto! Eu explico.

Estávamos a iniciar a "estação das chuvas", que, como bem se lembram ocorre no período de Maio a Novembro. Este período das chuvas funciona, também, como uma marca cultural e social interessante e, se calhar desconhecido de muitos, que é o seguinte: é pelas chuvas, pela "estação das chuvas" que passaram, viveram que aquela gente africana sabia, aproximadamente, a sua idade.

Aconteceu, a seguir ao almoço do dia 1 de Junho de 1973, uma mudança radical do estado do tempo. Num ápice, a mãe-natureza surpreendeu-nos a todos transformando o espaço atmosférico límpido num acastelar medonho de nuvens de cor negra chumbada, com um vento a soprar sem piedade, desafiando uma forte trovoada que se prolongou e alongou por toda a tarde e noite desse dia.

Antes da descarga provocada pelo choque eléctrico das nuvens, eu conversava com o meu velho "chefe de tabanca" (a fazer "psico", dizia-se) alertando-o para os perigos iminentes daquele momento, provocados pela forte ventania que já se fazia sentir.

O velho, sereno, de semblante patriarcal, afagando a sua pensativa barbicha cuidada e branca, exclamou: "Alfero, tabanca de africano não cai, a de branco vai no chão..." 

Pouco depois, voavam pelos ares chapas, ramos e paus, enquanto, tento sem grande sucesso, apanhar as chapas de zinco que cobriam o meu quarto, rolando pelo solo contra tudo e contra todos. Conforme profecia, a "tabanca " do meu simpático interlocutor mantinha-se de pé, segura, como se estivéssemos em tempo da "estação seca". 

Passem bem.
Abraços
Manuel Frazão Vieira


3 comentários:

Anónimo disse...

Quero deixar um grande abraço de amizade ao meu Camarada Manuel Frazão Vieira e dizer-lhe que o convívio da C.Cav. 8351 é neste sábado, dia 29 do corrente mês de Abril.
"Dei ordens" para que te contactassem e sei que o nosso Camarada Paulo Covas o tentou fazer, sempre sem sucesso, nas diversas vezes que o fez. Terás mudado de telefone, mas apesar das inscrições estarem fechadas, há sempre lugar para ti e para a tua família basta para isso contactares o "Capitão" que tudo se arranja.
Estamos inscritos, militares e famílias, cerca de 120 pessoas e o organizador até pertenceu ao teu pelotão.
Eu , bem amparado, lá estarei presente.

Vasco A. R. da Gama

Manuel Reis disse...


Olá Manuel Vieira!

Que belo texto. É muito agradável ler o que escreves, mesmo tratando-se de uma pequena história, em que consegues prender o leitor.

Um grande abraço.

Manuel Reis

joaquim disse...

Claro que quem vive nas terras sabe bem mais de quem por lá passa!

Bela história!

A Tabanca fica ... a casa vai!!!!

Grande abraço