TABANCA DE AFRICANO NÃO CAI…
Manuel Frazão Vieira |
Ainda não tenho memória curta. Mas, mesmo que tivesse, ela chegava
para abarcar as imagens que ainda retenho do aeroporto de Bissalanca, dos
aquartelamentos do Cumeré, Aldeia Formosa, Bolama e Chamarra.
Por aquelas cinco localidades da Guiné por onde passei, lidei
e sonhei, contactando gentes, ouvindo-as, registando e observando
usos, costumes e culturas ancestrais, porventura, enigmáticas para um
jovem ocidental, a aproximar-se dos 23 anos, acabado de chegar a um novo
mundo, a uma nova terra que sabia existir, apenas, pela tradição oral e
conhecimento livresco paginado a partir das cartilhas do ensino primário.
Fui um curioso expectante em deixar levar-me ao
conhecimento das formas e desenvolvimento social, costumário, hierárquico e
cultural daquelas gentes de quem eu apenas sabia fazerem parte
de um povo multirracial, um povo soberano, de uma nação única
e indivisível espalhada do Minho a Timor.
Por onde passei e vivi, registei histórias indeléveis e
acontecimentos marcantes num sucedâneo de circunstâncias e
exigências próprias de um cenário de guerra de características e
operacionalidade "sui generis".
Cheguei à Chamarra pelas 18H00 do dia 28 de Maio de 1973, onde fui
substituir o ex-Alferes Ribeiro, em final de comissão, no comando do PEL CAÇ
NAT 55. Tratava-se de um destacamento muito pequeno que dependia
do Comando do Batalhão de Aldeia Formosa. O destacamento da Chamarra
estava situado a sul, a uma distância de 10 Kms de Aldeia
Formosa, funcionando como posto avançado desta, muito próximo de
Porto Balana / Gandembel, mais ou menos a 40 Kms de Guileje.
A Chamarra era temível, tenho provas disso, mas... entre o
"terror" de Cumbijã e a paz aparente e calculada da Chamarra, preferi
esta, considerando um privilégio ter podido optar, em missão de
guerra, perante uma situação, apesar de incerta e dúbia, onde tudo
poderia acontecer.
Nessa altura, já andava a CCAV 8351 independente, a minha
companhia de origem, sediada em Aldeia Formosa, comandada pelo meu
bom amigo ex-Cap. Vasco da Gama, de malas às costas a caminho do
"inferno" e do "atoleiro" de Nhacobá e Cumbijã que as NT
abandonaram, em 1968/69, por tanta "pancadaria", decidindo o Comando
de Bissau o seu abandono.
Na Chamarra, no PEL CAÇ NAT 55, tudo era novidade para mim. Uma
população civil, constituída à base de mulheres,
muitas crianças e jovens famintos de tudo. O pelotão nativo
mantinha a sua missão com patrulhamentos diários ao nível de Secção comandada
por um Furriel. Tinha 3 Furriéis no destacamento. A minha integração de
responsável e líder naquele pequeno meio militar, ao nível de
destacamento, na protecção, defesa e segurança da população ia-se solidando,
paulatinamente, conquistando a confiança da população e militares nativos.
Tudo corria bem. Só que, ao meu 4.º dia de Chamarra,
no PEL CAÇ NAT 55, a seguir ao almoço do dia 01 de Junho de
1973 fiquei sem "casa", sem "moradia",
sem "tabanca". E, agora? Coração ao alto! Eu explico.
Estávamos a iniciar a "estação das chuvas", que, como
bem se lembram ocorre no período de Maio a Novembro. Este período das
chuvas funciona, também, como uma marca cultural e social
interessante e, se calhar desconhecido de muitos, que é o seguinte: é pelas
chuvas, pela "estação das chuvas" que passaram, viveram que
aquela gente africana sabia, aproximadamente, a sua idade.
Aconteceu, a seguir ao almoço do dia 1 de Junho de 1973, uma
mudança radical do estado do tempo. Num ápice, a mãe-natureza surpreendeu-nos a
todos transformando o espaço atmosférico límpido num acastelar
medonho de nuvens de cor negra chumbada, com um vento a
soprar sem piedade, desafiando uma forte trovoada que se prolongou e
alongou por toda a tarde e noite desse dia.
Antes da descarga provocada pelo choque eléctrico das
nuvens, eu conversava com o meu velho "chefe de tabanca" (a
fazer "psico", dizia-se) alertando-o para os perigos iminentes
daquele momento, provocados pela forte ventania que já se fazia sentir.
O velho, sereno, de semblante patriarcal, afagando a sua
pensativa barbicha cuidada e branca, exclamou: "Alfero, tabanca de
africano não cai, a de branco vai no chão..."
Pouco depois, voavam pelos
ares chapas, ramos e paus, enquanto, tento sem grande sucesso, apanhar
as chapas de zinco que cobriam o meu quarto, rolando pelo solo contra tudo
e contra todos. Conforme profecia, a "tabanca " do meu simpático
interlocutor mantinha-se de pé, segura, como se estivéssemos em tempo
da "estação seca".
Passem bem.
Abraços
Manuel
Frazão Vieira
3 comentários:
Quero deixar um grande abraço de amizade ao meu Camarada Manuel Frazão Vieira e dizer-lhe que o convívio da C.Cav. 8351 é neste sábado, dia 29 do corrente mês de Abril.
"Dei ordens" para que te contactassem e sei que o nosso Camarada Paulo Covas o tentou fazer, sempre sem sucesso, nas diversas vezes que o fez. Terás mudado de telefone, mas apesar das inscrições estarem fechadas, há sempre lugar para ti e para a tua família basta para isso contactares o "Capitão" que tudo se arranja.
Estamos inscritos, militares e famílias, cerca de 120 pessoas e o organizador até pertenceu ao teu pelotão.
Eu , bem amparado, lá estarei presente.
Vasco A. R. da Gama
Olá Manuel Vieira!
Que belo texto. É muito agradável ler o que escreves, mesmo tratando-se de uma pequena história, em que consegues prender o leitor.
Um grande abraço.
Manuel Reis
Claro que quem vive nas terras sabe bem mais de quem por lá passa!
Bela história!
A Tabanca fica ... a casa vai!!!!
Grande abraço
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