segunda-feira, 27 de junho de 2016

P808: PERGUNTAS DIFÍCEIS...

“E VOCÊ MATOU ALGUÉM?”

Falava há mais de uma hora aos alunos do 10º Ano das “Artes” da Escola  Professor Reynaldo dos Santos, de Vila Franca de Xira, e sentia “com todos os meus botões” que era tempo de acabar. Com a benevolência do professor de Geometria Descritiva, que estava presente, tive direito a um “prolongamento” de mais 10 minutos.

Os jovens pareciam continuar  interessados nas minhas opiniões sobre a Guerra Colonial. Já tinha “passado” e comentado as imagens  do “power point” sobre o meu livro “Golpes de Mãos’s”, lançado em 2009, e fazia questão de terminar com uma mensagem que fizesse ver aos meus ouvintes a importância do que era  ter na vida um bom “Chefe”. 
No meu caso tinha sido um Capitão, que seguimos (e continuamos a seguir) até “ao fim do mundo”. No caso deles é (tinha de ser) um Professor. Que sentissem que, além de Mestre, fosse um exemplo a seguir – e a não esquecer – quando, num futuro próximo, deixassem a escola e tivessem que enfrentar a vida.

Dei tudo o que tinha nessa mensagem final. Que foi genuína, espontânea e sentida.

“Não esqueçam os vossos professores. Sigam o seu exemplo. Um bom Chefe acompanha-nos até ao fim da vida.”

Acabei  a minha parte. Agradeci a atenção e perguntei, por mera cortesia, se alguém queria pôr alguma questão. Sinceramente, depois de uma hora a tal a ouvirem o “velho das barbas”, que tinha andado na guerra da Guiné há cinquenta anos atrás, não esperava mais nenhuma pergunta. Enganei-me. Um jovem levantou a mão e pediu para fazer uma última pergunta.

- Avança, jovem.

- E você matou alguém?

Avaliei de imediato o jovem e pareceu-me que havia curiosidade sincera sem ser mórbida.

Não esperava a questão mas não iria fugir a ela.

- Sinceramente não sei. Como Já vos contei que era enfermeiro mas, quando andava no “mato” em operações, tinha uma arma para defesa pessoal. Nos primeiros tempos uma FBP (uma pistola-metralhadora) e, mais tarde, uma espingarda G3, que se tinha revelado mais segura que a  FBP.

Expliquei depois que, antes de responder à pergunta, tinha que explicar o contexto em que, antes de ser enfermeiro, tinha sido atirador.

Aconteceu durante uma emboscada de nossa iniciativa. Na guerra da Guiné, e nos outros territórios ultramarinos, raramente tínhamos oportunidade de ver o inimigo. A guerrilha era isso mesmo. Ataques de surpresa às nossas tropas, que se deslocavam em grupos numerosos e, muitas vezes, em viaturas. O inimigo, que “jogava em casa” e conhecia bem o território, atacava-nos de surpresa em lugares de passagem. 

Muitas vezes escondidos em cima de árvores ou “resguardados” em buracos junto ao solo.

Seis meses depois de estarmos no mato “tínhamos aprendido” muito e, mais uma vez, com o hábil comando do nosso Capitão, passámos a surpreender o inimigo utilizando as suas próprias ”manhas”.


- A acção dessa emboscada que vos vou contar foi de nossa iniciativa Ao amanhecer estávamos escondidos no mato rasteiro, junto de algumas árvores, que ladeavam estreitos “carreiros” de passagem das populações. E não só. A informação que era utilizada também por terroristas mereceu a confiança do nosso comandante de Companhia, que “apostou” numa emboscada à maneira “deles”.

E assim se fez. Cada qual se instalou o melhor possível – sentado ou deitado – e preparámo-nos para uma longa espera. Com o decorrer do tempo habituámo-nos ao barulho envolvente de pássaros e macacada e muitos dos nossos militares não resistiram a umas breves sonecas.

As horas passavam e nada acontecia. Por volta do meio-dia algo me alertou e me fez abrir bem os olhos. Pareceu-me ouvir ruído de conversas. Alguém se aproximava. E, de repente, vi a uma curta distância – talvez a 20 ou 30 metros – três indivíduos de farda azul, sem dúvida guerrilheiros do PAIGC, devidamente armados. Avançavam descontraídos, convencidos de que “estavam sós” .

Eram inimigos a aproximar-se e à minha volta nada acontecia.

Será que está tudo a dormir?

Não esperei mais tempo. Dessa vez fui dos primeiros a disparar e fiquei com a sensação que tinha acertado num dos homens que vinham ao nosso encontro.

Seguiu-se ao meu disparo da G3 muitos outros tiros e os três homens de “farda azul” caíram. Estavam mortos e bem mortos quando finalmente nos aproximámos dos seus corpos. O chão ainda fumegava de tantos disparos.

À distância no tempo confesso que relembro os momentos seguintes com alguma perturbação e confusão à mistura. Sei que quando começámos a regressar ao quartel de Binta – que ficava a uns bons 10 quilómetros do local da nossa emboscada (Sanjalo, se bem me recordo) – fui escolhido para trazer na minha “mala de enfermeiro” 3 granadas de mão capturadas ao inimigo. Confesso que não me senti nada confortável com a sorte que me tinha calhado, mas na vida militar há que aguentar e “cara alegre”.

Quando chegámos ao quartel foi tempo de folgar e de festejar a nossa vitória do dia. Entreguei as granadas do PAIGC ao quarteleiro – tanto quanto me lembro – e fui para o meu quarto “particular”, que partilhava com o 1º.sargento e uns 7 ou 8 furriéis.

Quando a noite chegou e consegui algum sossego dentro do meu “mosquiteiro” começaram os meus pesadelos. Acordado e a dormir. Foi uma noite longa. Teria sido eu quem matara um dos “turras”?

As tarefas do dia seguinte atenuaram um pouco as minhas angústias mas a noite chegou de novo e voltaram as minhas ansiedades.

Mais uma noite em claro e, alta madrugada, arranjei um “alibi” para o meu desconforto.
Afinal não fui só eu a disparar. Para que estou eu a martirizar-me?
A minha bala foi uma entre muitas. E poderia ter acertado ou não. Assunto encerrado.

Voltando à pergunta do jovem da escola de Vila Franca de Xira.

- E você matou alguém?

Sinceramente não sei. Julgo que não.
Mas estou de bem com a minha consciência. Sei que fiz bem a muita gente. Vi lágrimas nos olhos das gentes de Binta, quando regressámos em fins de Abril de 1966.

Vivemos de perto com eles cerca de dois anos. Recordo esse momento de despedida. Em que também chorei. As memórias da guerra não têm fim.

Uma saudação especial ao jovem das “Artes” da Escola Professor Reynaldo dos Santos.

Fez-me bem à alma responder à tua pergunta.

José Eduardo Reis de Oliveira


6 comentários:

Anónimo disse...

Amigo e Camarada Jero

Fez-me "bem à alma" ler o teu texto.
Ficamos à espera de mais.

Um grande abraco.

J.Belo

Anónimo disse...

Muito obrigado pelo teu comentário Camarigo José Belo.
O dia de hoje "está ganho".
Abraço GRANDE
J.Eduardo Oliveira

Hélder Valério disse...

Meu caro Jero

Então, foste à 'minha terra' e não avisaste?
A rapaziada faz cada pergunta!!!

Mas olha que tem sentido. O que eles vêm na televisão não lhes dá a medida do real e quem se inquieta tem curiosidade. E a curiosidade faz fazer perguntas. E, como concluíste da tua breve análise, a curiosidade pareceu-te não ser mórbida. Até podia ser. Recordo que no meu regresso da Guiné muitos alarves perguntavam: "então mataste muitos pretos"? No fundo, para além da provocação, o que essas "boas almas" queriam saber era se podiam dormir descansadas. Mas no teu caso a pergunta era apropriada: tantos 'golpes de mãos' haveriam de dar algum fundamento à pergunta.

A resposta está certa. Naquelas circunstâncias, a menos que seja um tiro directo, nunca se sabe, verdadeiramente.

Mas lá que aproveitaste para 'deitar cá para fora' toda uma reflexão sobre o assunto e até para exorcizar algum "gasparzinho", isso sim, e fizeste bem.

Abraço
Hélder Sousa

Anónimo disse...

Boa tarde Hélder. Gostei de ler o teu "certeiro" comentário, que agradeço. Como bem notaste o necessário exorcismo está feito. Factos passado há meio século e que, quando falamos neles, ainda nos fazem "secar" a garganta. Quanto à tua Vila Franca de Xira e à sua Escola Professor Reynaldo dos Santos fiquei muito bem impressionado. Saí da Escola orgulhoso: pelos seus Professores, pelos seus Alunos e pelas suas instalações. E fiquei lá com amigos. Estou convidado para mais uma "conferência" no próximo ano. Gente boa.
Grande abraço e até uma próxima oportunidade.
J.Eduardo Oliveira

Anónimo disse...

Amigo JERO. Gostei do que li e as várias histórias que descreve no seu livro.

Tendo ambos desempenhado na Guiné funções de enfermagem, congratulo-me por ninguém me ter colocado semelhante pergunta. Percebe-se, é claro. A minha missão era diferente e embora tivesse tido instrução de manejo de armas, nunca precisei de levar alguma em serviço, ou fora dele.
Durma descansado e afaste os pesadelos, porque na guerra aconteceram coisas que ultrapassavam, o vosso querer, (eram as circunstâncias do imediato). Se matou alguém, ajudou a salvar muitos camaradas e tratou também de alguém, que estava no outro lado!.. Foi uma boa reposta ao aluno.
Deviam acontecer mais colóquios como esse, porque os jovens de hoje desconhecem quase totalmente o que a vossa geração passou.
Gostei.
Um abraço amigo e boas férias, mas continue a escrever e a fotografar.

Mª Arminda
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Anónimo disse...

Cara Amiga Mª. Arminda
Muito grato pelo seu comentário que muito me sensibilizou.Estes encontros com jovens tem sempre algum interesse porque lhes damos a conhecer temas da Guerra do Ultramar que a maioria deles desconhece. Grande abraço e votos de boa saúde, um bem precioso que a minha amiga tanto "espalhou" ao longo da sua meritória carreira de Enfermeira.
J.Eduardo Oliveira