UMA MEMÓRIA, UMA EMOÇÃO, UMA GRATIDÃO
Quando eu era menino - aliás mesmo já antes de eu nascer - vivia em casa dos meus pais
uma senhora, sim uma senhora, que tendo sido empregada em casa dos meus avós
paternos (que nem a minha mãe os conheceu pois morreram no principio do século
xx, com o surto, salvo o erro, da pneumónica), nunca saiu de perto do meu pai,
ficando assim a viver lá em casa.
Mais
velha do que o meu pai (que nasceu em 1899), nunca quis deixar de trabalhar e
assim tratava sobretudo da capoeira e, lembro-me bem, era quem embebedava o
peru para o Natal.
Era
carinhosamente tratada por Ti Pedrosa, e recebia sempre dois beijos de cada um
de nós, meninos estudantes em Lisboa, sempre que regressávamos a Monte Real
para os diversos períodos de férias.
Era
família, tão família como qualquer avó muito querida, e que, mesmo tendo um
pouco de seu, e mesmo depois dos sobrinhos da Argentina a quererem vir buscar,
nunca quis sair de nossa casa, pois era ali que era a sua casa, a sua família.
De
quando em vez fugia-lhe a palavra para o antigamente e tratava o meu pai por
menino Olympio, numa ternura incapaz de aqui reproduzir, sobretudo por ver
aquele homem grande enternecido por aquele tratamento tão íntimo.
Neste
momento, já perguntam os meus “camaradas de armas” o que é que tudo isto tem a
ver com a Guiné!
Perguntam,
porque já não temos a mesma paciência que ela tinha em esperar pelas férias,
para ver como tinham crescido os seus meninos e quase obrigar as galinhas a
porem os ovos amarelinhos, (que agora já não existem), para nós comermos
estrelados em azeite, numa frigideira tão velha que já tinha a gordura
“incorporada”…
Pois
nos idos do mês de Abril de 1972, (mais para a frente ou mais para trás do dia
6, data do meu aniversário) recebi no Xitole uma carta cujo envelope, escrito
com caligrafia vacilante, tinha inscrito no remetente: Ti Pedrosa – Monte Real.
A letra
não era dela, que não sabia escrever, mas de outra empregada que a seu pedido
me dava os parabéns pelos meus 23 anos e servia de cobertura a uma nota de
20$00, para eu comprar o meu presente.
Calculam
como o meu coração, já de si tão mole e sensível, enviou aos meus olhos a ordem
para, com uma qualquer água, afastar o pó da Guiné e lubrificar a minha vista. Claro
que aquilo não era lágrimas, eram apenas os meus olhos a protestarem pela luz
tão intensa da Guiné.
Foi um oásis de ternura, na brutalidade da guerra.
Mais
tarde, uns meses mais tarde, julgo que ainda na Guiné, recebi outra carta,
agora com a letra redonda e bem tratada da minha mãe, que me enviava, a pedido
da Ti Pedrosa, uma fotografia sua, tirada nos seus oitenta ou noventa anos, que
infelizmente a memória já não me deixa lembrar com precisão.
Dizia a
minha mãe que a Ti Pedrosa tinha feito questão de tal envio e de que me
dissesse da sua grande preocupação que o “benjamim” da família andasse por
terras tão estranhas, a fazer coisas tão perigosas. Que me cuidasse muito,
tivesse cuidado com as temperaturas e que voltasse depressa e bem.
E
porquê esta história agora?
Porque
hoje tive uma insónia povoada de sonhos amargos, coisas da Guiné, e no meio da
perturbação, da agitação, veio ao meu pensamento, (ou seria ao coração?), a
imagem, a lembrança da Ti Pedrosa que lá no Alto olha por mim, tanto que pouco
depois adormeci calmamente.
Claro que
não podia deixar de lhe fazer esta homenagem, contando os seus gestos de
ternura, que tanto amenizaram durante uns tempos, a dureza da minha vida na
Guiné.
No meio
das emboscadas, das minas, dos tiros, das dores, dos horrores, das horas
amargas que aqui neste nosso espaço se vão desfiando, deixo-vos esta lágrima de
amor, esta gota de ternura, este gesto de carinho, esta memória, esta emoção,
esta gratidão.
Abraço-vos
fortemente, meus “camarigos”, com um sorriso nos lábios, porque no peito de
todos os combatentes, dos ex-combatentes, endurecidos pela guerra, empedernidos
pela morte, ainda bate um coração sensível, que se alegra e enternece com os
gestos de carinho, de amor, daqueles que por cá penaram a nossa estadia na
Guiné.
Joaquim Mexia Alves
4 comentários:
Bom dia, meu caro Joaquim!
Pois sim senhor, um momento de ternura que, como bem escreves no final, é apanágio da maior parte de nós, daqueles que não se deixaram embrutecer pelo tempo e pelas vicissitudes da vida.
O teu relato/memória tem muitas mais coisas para se poder comentar mas o que importa agora realçar é o facto de, como dizes, as boas memórias do passado terem vindo apaziguar as más memórias do passado. E não se pode viver umas sem as outras pois fazem parte do todo. Assim, desse modo, pudeste ultrapassar sem dificuldade de maior a incomodidade que os sonhos te estavam a causar.
Amigo, quanto 'àquela coisa' de se poder perguntar "o que é que isso tem a ver com a Guiné", posição que aparece em muito e bom Blogue quando se quer torpedear o seu conteúdo, por não ser uma espécie de 'relatório militar' de contabilização de munições utilizadas e de 'baixas confirmadas e prováveis' causadas ao IN, a verdade é que "tudo tem tudo a ver com a Guiné", assim se queira e se possa 'ver'.
Um grande (só pode, não é?) e forte abraço.
Hélder Sousa
Säo,mais uma vez,histórias como esta que acabam por nos dar a tal visäo multi-facetada de uma guerra.
Os tais pequenos "gräos de areia"nunca referidos nos Comunicados Operacionais dos Estados Maiores.
Um grande abraco.
Olá Joaquim,
Quase todos nós tivémos Ti Pedrosas, com atitudes ou gestos inopinados de ternura, que nos faziam dar graças à vida, e convenciam-nos sobre as compensações que achàvamos justas para o depois da guerra.
Eram ataques de paz e gratidão, que amoleciam corações endurecidos.
Obrigado por esta lembrança feliz que, como no teu caso, já não pode ter réplicas.
Outro abraço
JD
História linda, amigo Joaquim. Muitos de nós recordamos uma "ti Pedrosa", como a sua que tanto o mimou e acarinhou. A amizade verdadeira é algo inesquecível e que toca profundamente os nossos corações e por tal não a esquecemos. Leva-nos a enquadrar-la a outros grupos, como os camaradas com quem partilhámos momentos difíceis, por exemplo os da Guiné, hoje pertencendo à Tabanca do Centro. Um grande abraço. Mª Arminda.
Enviar um comentário