UM REGRESSO
ATRIBULADO
Sei
lá quando, já não me lembro, mas deve ter sido nos meados de Dezembro de 1973,
que me disseram em Mansoa: «Prepara-te, vais para Bissau para embarcares para a
Metrópole.»
Parecia
assim uma coisa irreal!
Agora
que o cacimbo tomava conta de mim totalmente, agora que tanto me fazia ser de
noite ou de dia, estar no quartel ou no mato, é que me diziam para eu me ir
embora.
Fiquei
a pensar no assunto e tive uma certeza:
Tinha
de estar muito apanhado do clima para a coisa não se transformar em euforia!
Lá
pelos vinte dias de Dezembro, julgo eu, vim então com uma mala pequena, para
Bissau. Tanto tempo, dois anos e nada para trazer!
O
whisky tinha-o bebido, (que assim não se estragava de certeza), as fotografias,
as que tinham sobrado de uma fúria que me tinha dado e me levou a rasgar não
sei quantas, também vinham no saco, o camuflado, uma roupita civil e sei lá eu
bem mais o quê.
Bissau,
as burocracias, os últimos copos, as últimas doideiras, (tenham pena de mim que
me vou embora e desculpem lá qualquer coisinha), e duas ou três tentativas
falhadas de ligar para a família a dizer: «Parto hoje chego amanhã, não se
incomodem que eu também não»
Um
último olhar a Bissau, à terra quente e vermelha, um último suspiro de calor,
uma última experiência dos braços, pescoço e todo o corpo sentir-se todo
molhado de suor, pegajoso e embarcar.
Ao
menos aqui não há aquelas mosquinhas pequeninas do mato que se metem nos olhos,
nos ouvidos, poisam nos braços e não levantam quando passamos a mão e ali ficam
esmagadas, coladas com o suor do calor e do medo.
Avião,
ar condicionado, “hospedeiras” fardadas, de barba feita, que debaixo das cuecas
eram “inguais” a mim, que naquele tempo ainda a mulher não ia à tropa!
Lá
em baixo vai ficando para trás a estrada de Bambadinca/Xitole, tantas vezes
palmilhada, o Geba, e a travessia mil vezes repetida de sintex a remos de Mato
Cão para Bambadinca, a estrada Jugudul/Porto Gole, causa de tantas noites em
branco, vai ficando para trás o suor, as lágrimas, a revolta, o sangue e vai
nascendo já, muito timidamente, uma saudade inexplicável.
E
ficam também para trás os camaradas e amigos que comigo embarcaram e agora
ainda têm de penar mais um pouco.
E
ficam para trás os meus camaradas “toupeiras” de Mato Cão, e o bife de javali frito
em banha da cobra, e as perninhas de rato cozinhadas à José Orabé.
E
ficam para trás os Balantas garbosos, guerreiros do «Taque Tchife», «Agarra à
mão”, dos quais me vai no coração o “gigante” In Oina Nor, que supostamente me
protegia as costas e lá de baixo, na bolanha, deve olhar para o avião com os
óculos de lentes amarelas, de andar no mato, que lhe deixei.
Na
ida deram-me seis dias de Niassa para me ir habituando à ideia da Guiné. Agora
só me dão duas ou três horas para me ir readaptando à sociedade dita
civilizada. A coisa não vai correr bem!
Finalmente
o “pássaro” aterra em Lisboa.
Que
tristeza, toda a gente dá abraços, beijos, palmadas nas costas, lágrimas, e eu
para ali sozinho, perdido, irrealmente regressado da guerra.
Um
camarada da guerra, que não me lembro se já conhecia ou se foi conhecimento a
bordo, percebe a minha desorientação, ou por já lhe ter dito que não tinha lá
ninguém à espera, ou porque percebeu a coisa, e diz-me: É pá, se não tens
ninguém, eu peço aos meus pais e levamos-te a casa.
Eu
nessa altura, ou seja antes de partir, vivia em Lisboa. Nunca percebi porquê,
mas a verdade é que tinha levado comigo a chave da casa para a Guiné e ainda
estava comigo.
Aceitei
de muito bom grado a oferta e fizemo-nos ao caminho.
Lembro-me
vagamente de termos parado na Estalagem Terminal, logo ali na Avenida Gago
Coutinho, pois era lá que os pais deste camarada tinham ficado hospedados e de
eu tentar telefonar para casa sem ninguém me atender.
E
chegámos finalmente à Rodrigo da Fonseca, rua da minha infância e adolescência,
despedimo-nos com agradecimentos e juras de nos reencontrarmos, e toquei à
porta na esperança que abrissem e eu fosse preparando caminho para evitar
“cheliques”, desmaios, etc, etc.
Tal
não aconteceu, e assim fui subindo de elevador até ao quarto andar e, com algum
receio, meti a chave à porta e abrindo-a gritei: Sou eu, o Joaquim, já cheguei
da Guiné, não se assustem!
Respondeu-me
o silêncio, um insuportável e profundo silêncio!
A
casa não tinha aspecto de ter vida naquele momento e então fez-se luz no meu
espírito!
Era
dia 21 de Dezembro e por isso a família já estava em Monte Real para passar o
Natal. Fiquei mais aliviado.
Pousei
a mala e fui direito ao telefone, para ligar para casa dos meus pais em Monte
Real.
Respondi:
É o Joaquim!
Resposta
pronta: Ó meu filho da p…, vai pró c…, o meu irmão está na guerra da Guiné e tu
a gozares! Vai pró c…
E
“tunga”, desligou-me o telefone nas trombas!
Liguei
outra vez, e muito rápido disse logo para não desligar, que era eu mesmo e que
dava provas disso, etc e tal.
Depois
de convencido lá falámos um pouco, porque é eu não tinha avisado e enfim e
“assim e andando”. Disse-lhe para me virem buscar a Lisboa e ele respondeu que
já me ligava.
Isto
ao que me lembro era assim já lá para as nove horas da noite ou coisa parecida.
Pouco
tempo depois disse-me que me vinham buscar, mas não era já, para eu descansar
um pouco, que lá para a meia noite, uma hora, estariam em Lisboa.
Não
percebi muito bem porquê, porque é que não vinham logo, mas borrifei no
assunto.
Mas
qual descansar qual quê!
A
excitação de estar em Lisboa, mais a fome e sobretudo a sede de uma imperial
como deve ser, chamavam por mim.
Lembrei-me
então de que estava todo vestido de verde e que não iria para a rua fardado,
era o que mais faltava!
Fui
ao guarda-fatos do meu quarto procurar roupa para vestir e deparei com o dito
cujo vazio! Tinham-me levado a minha roupa toda para Monte Real, julgava eu.
Assim
tive de me socorrer das jeans que trazia na mala vinda comigo da Guiné, um pólo
azul claro e os respectivos sapatos.
Tinha,
julgo eu, cerca de 20$00 no bolso, guardados religiosamente desde a última
vinda à Metrópole, nas férias.
Saí
de casa e percebi então verdadeiramente que era dia 21 de Dezembro, Inverno em
Portugal e que eu estava de manga curta e com o “bronzeado” típico da tropa em
África. Não me preocupei com a coisa, mas vi nalguns rostos que se cruzavam
comigo na Avenida da Liberdade, o espanto e a pergunta íntima se eu não estaria
doido.
Fui
direito ao Gambrinus, na Rua das Portas de Santo Antão, onde os meus amigos e o
pessoal dos toiros se costumava juntar ao fim da noite, na certeza de que havia
de encontrar pessoal conhecido e que alguém havia de ter pena de mim e me havia
dar de comer e beber.
Assim
que entrei e me dirigi ao balcão, o Domingos, Chefe do Bar e que me aturava
desde as minhas primeiras saídas nocturnas em Lisboa, logo percebeu o que se
passava e disse-me: Acabou de chegar da Guiné, não é? E se calhar nem tem um
tostão no bolso?
Para
além de me servir de imediato uma reluzente, fresquíssima e saborosa cerveja,
deitou as mãos ao bolso e entregou-me dois contos de réis, dizendo-me que
depois faríamos contas.
Senti-me
um pouco em casa e entretanto foram chegando os amigos, foi-se fazendo a festa,
bebendo umas cervejas e matando saudades. Depois lá fomos para um bar qualquer
de Lisboa, continuar a noitada, de tal modo que me esqueci que já devia ter os
meus irmãos em casa à espera.
Despedi-me,
meti-me num táxi e fui para casa onde os meus irmãos já dormiam nos sofás da
sala.
Abraços,
algumas lágrimas, recriminações por não ter avisado e metemo-nos no carro para,
julgava eu, irmos direitos a Monte Real.
Claro
que passado um pouco, com trepidar do carro e as últimas emoções vividas,
adormeci como um “anjo” e dormi por tempo largo.
Quando
acordei e olhei pela janela do carro não percebi se ainda estava a dormir e a
sonhar, porque a paisagem que via na luz da aurora nada tinha a ver com Leiria,
Monte Real, ou arredores.
Logo
de imediato parámos numa bomba de gasolina e os meus irmãos disseram-me que o
meu pai e os outros estavam à minha espera no café.
Mais
abraços, mais lágrimas e a pergunta inevitável: Mas onde é que raio nós
estamos?
Desvendou-se
o mistério! Estávamos no Alto Alentejo a caminho da Castelo de Vide, onde íamos
a uma batida aos coelhos!
Fiquei
ali sem pensar no que dizer.
Certo
é que passado pouco tempo lá estávamos preparados para a caça, (não me lembro
se vesti o camuflado, ou a farda verde), e eu ainda nem passadas 24 horas de
ter saído da Guiné, com uma arma na mão a olhar para a mata à minha frente.
O
meu irmão João dizia-me: Ó pá, toma cuidado que andam aí uns gajos a bater os
coelhos. Não são “turras”, (que me perdoem os camaradas de armas do PAIGC), são
batedores. Não dês um tiro em nenhum!
Aviso
importante que retive na cabeça, pois a coisa podia dar para o torto.
Bem,
durante a manhã acertei sobretudo no chão, nas árvores e em muita coisa que não
coelhos, mas para a tarde já matei um ou dois, sei lá, já não me lembro.
Regressámos
então a Monte Real, onde fui “apaparicado” pelas senhoras da família, com a
minha mãe à frente, claro. Nem sempre o último filho de nove irmãos tem a
possibilidade de ser mimado, porque é coisa já muito vista, por isso foi um
momento muito especial do meu regresso.
No
outro dia de manhã, (ainda estou para saber se foi real ou sonhado), ainda a
dormir ouvi umas explosões e só quando dei com as “trombas” na porta da cozinha
percebi que não havia valas para me meter e que já não estava na Guiné mas sim
em Monte Real. Parece que teria havido uns foguetes nessa manhã, mas não se
falou mais no assunto.
Regressado
a Lisboa, lá me fardei pela última vez para ir ao Depósito de Adidos, acabar
com a minha ligação à tropa.
À
entrada, e perante a indiferença do sentinela, (que achei uma falta grave de
consideração por um combatente…), dei-lhe uma “pissada” e obriguei-o a fazer um
“ombro arma” como devia ser.
Entrado
na Repartição que me tinham indicado, dou com um Sargento sentado, mal humorado
e que me atendeu como se eu fosse uma “merda” qualquer. Depois de algumas
insistências minhas para ser atendido e uns grunhidos do dito cujo como
resposta, veio ao de cima o meu lado irascível e colocando uma mão no balcão,
saltei para o outro lado.
Está
bom de ver que o homem deu um salto e correu para trás fazendo imensas
promessas que eu iria ser despachado num ápice e que pedia muita desculpa, mas
não se tinha apercebido, etc, etc.
Lá
me entregaram o papelito a dizer que eu passava à disponibilidade e curiosamente
não estava lá nenhum General ou politico para me agradecer os três anos dados à
Nação, etc, etc, o que eu também não estava à espera, obviamente.
À
saída, ainda fardado claro, o sentinela ao ver-me, fez o mais perfeito “ombro
arma” da sua breve carreira militar. Ai não!!!
Bem,
depois foi a inadaptação à sociedade de Lisboa. Aquela gente vivia como se não
houvesse gente a morrer na guerra, como se nada se passasse e quando eu dizia
qualquer coisa acerca disso, olhavam para mim como se eu fosse um qualquer
“alien” completamente desfasado da realidade.
Claro
que isto não podia dar bom resultado, e as noitadas, os copos sempre em
exagero, os problemas e “desaguizados” constantes, não prenunciavam nada de bom
para a minha vida futura. Os
meus pais preocupados, bem como o resto da família, arranjaram uma solução que
me propuseram.
Um
dos meus irmãos mais velhos tinha empresas em Angola e Moçambique, e assim, se
eu concordasse iria uns tempos para Angola, adaptar-me a trabalhar, a fazer
algo de útil pela vida e depois logo se veria o que se seguiria, pois em Lisboa
a coisa ia-se complicar e o reentrar no curso de Medicina era coisa que nem os
maiores sonhadores acreditavam que eu fizesse.
Assim,
passados pouco mais de dois meses de ter saído da Guiné, no dia 8 de Março de
1974, esta “praça” desembarca no aeroporto de Luanda. (É curioso que o país e a
tropa complicaram como o caraças a minha ida para Angola, o que não tinha
acontecido quando foi para eu ir para a Guiné. Porque é que seria????)
Aberta
a porta do avião, levei com aquele calor e aquela humidade que aproximam o
clima de Luanda do da Guiné, e foi quase como um regressar a “casa”.
Daqui
para a frente, o clima, a sociedade, os amigos, e até, curiosamente a situação
politica, ajudaram-me a encontrar um equilíbrio para poder continuar com a
minha vida. Regressei pouco antes da independência, mas já com outra vontade de
viver.
A
guerra passou, os tempos duros e feios também e agora dou comigo muitas vezes, a
ter saudades da Guiné e dos tempos de camaradagem, em que os homens por força
das circunstâncias, mas não só, confiavam uns nos outros e encontraram amizades
para toda a vida.
Somos
especiais, não tenhamos dúvidas, pois o que passámos determinou em nós um
código de conduta, um “linguajar” muitas vezes apenas para nós compreensível, e
uma generosidade de entrega que se revela de cada vez que é necessária.
Fazemos
e faremos quer queiram quer não, os políticos e outros, parte inegável da
história de Portugal.
Apenas
me “morde” a consciência, o coração, aqueles que, ou deixando-se levar por
promessas ou de livre e expontânea vontade, sendo da Guiné, decidiram combater
connosco, servindo a nossa pátria, e acabaram abandonados pela nossa bandeira,
tendo sido alvo da fúria de alguns dos seus irmãos de nacionalidade.
Estes
factos são uma vergonha que há-de perseguir os portugueses e um dia terão de
estar inscritos na história como uma das páginas mais tristes e vergonhosas de
Portugal.
A
ti In Oina Nor e a tantos e todos que como tu protegeram as “nossas costas”, as
“costas” de Portugal, a minha homenagem, o meu respeito, as minhas lágrimas
sentidas.
Mas
estou em paz, pela graça de Deus.
Joaquim
Mexia Alves
7 comentários:
Gostei, Joaquim, gostei!
É mais que um relato. É um 'lavar de alma'.
Abraço.
Hélder Sousa
Que grande partida e que animada chegada ! Gostei muito da tua história de vida, Joaquim. E não foi difícil. Falamos a mesma linguagem. E também não me esqueço dos que combateram ao nosso lado e tiveram a um fuzilamento. Ainda hoje um nome me "persegue- Malan Sissé, morto no Senegal. Tinha sido durante 2 anos o nosso guia. Grande abraço Joaquim. E que bom saber que estás em paz,pelo graça de Deus. JERO
Comentário do Jaime Brandão enviado por mail.
Isto mostra bem o verdadeiro Joaquim Mexia Alves como "Homem e Português"!
Ele é mesmo assim...,! Acreditem porque sei bem do que falo.!
Um grande abraço
Jaime Brandao
Revejo-me nesta história, na altura da minha chegada a casa na zona de Viana do Castelo em 04ABR74, antes de bater à porta olhei à minha volta, senti tudo muito estranho, tudo me parecia tão estreito, dou comigo a pensar, ainda à pouco estava na Guiné... tinha passado poucas horas agora estava em casa. Bati à porta mais ou menos 04 horas da manhã ou coisa que o valha, oiço a voz do meu pai: Quem é? Respondo: Não é ninguém! Lá de dentro ouvia-se aquela algazarra a dizerem, é o Tono é o Tono (António) E pronto foram os abraços a alegria e eu sem jeito, sem saber o que dizer, logo de manhã fui dar uma volta pela zona, voltei a sentir-me estranho, com vergonha de entrar nos cafés, de enfrentar as pessoas, ter de responder a tantas perguntas que para mim não faziam sentido, custava-me dar respostas.
Parabéns Joaquim pela narrativa.
Abraço,
Sousa de Castro
Linda narrativa amigo Joaquim. Penso que muitos de vós tiveram idênticas situações. Uns com familiares a esperá-los, outros não. Gente ousada e um pouco louca, para viverem muitas vezes em abrigos e locais desumanos. Porém, deram o melhor da vossa juventude e hoje assistimos, quási a uma total indiferença e como afirma, sobretudo os esquecidos e abandonados e todos os outros de côr diferente, mas que também combateram sob a nossa Bandeira. Um um dia, assim o espero, que se lhes seja feita justiça, pois merecem viver e morrer com dignidade. Um abraço. Mª Arminda
Muito obrigado, meu caro Mexia, pelo prazer sentido ao ler esta tua bela "narrativa".
Baixa-te lá um bocadinho para eu te poder dar um abraço.
Manuel Joaquim
Meus queridos camarigos
A todos muito obrigado.
Um abraço forte e amigo do
Joaquim
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