domingo, 12 de outubro de 2014

P552: JERO - CRÓNICAS DOS TRIBUNAIS / 1



AMORES SEM ESPERANÇA…

Como já referi em “crónicas” anteriores o Tribunal de Alcobaça estava instalado no piso superior da Ala Norte do Mosteiro de Santa Maria. 

No piso debaixo, no antigo Claustro da Portaria, funcionava a cadeia. Na entrada da cadeia o carcereiro tinha direito a uma espécie de gabinete e, numa sala contígua, estava instalado o “espaço feminino” da prisão.

Em 1960, vinham ainda longe os tempos da liberalização do aborto, estavam presas duas mulheres na cadeia de Alcobaça.
Um aborto nesses tempos quando era descoberto incriminava normalmente, quem o fazia – a parteira – e quem a ele se submetia – a mulher grávida. Era o caso.

No lado masculino da cadeia, que englobava uma dúzia de celas e um pátio de “lazer”, havia presos a cumprir penas ligeiras, outros a aguardar julgamento e alguns já julgados e condenados a penas mais severas. Que aguardavam transferência para cadeias nacionais (Alcoentre, Leiria, Lisboa, etc.). 

Um preso condenado a 8 anos de cadeia, nazareno por nascimento e pedreiro de profissão, era dos mais jovens da “tripulação” prisional. Num dia aziago tinha-se envolvido numa discussão com um colega de profissão e respondeu a uma estalada com o que tinha mais à mão. Uma picadeira (um martelo de picar paredes), que não deixou em bom estado a cabeça do seu antagonista, que sofreu um grave traumatismo craniano. 

O Coletivo de Juízes teve mão pesada e aplicou-lhe 8 anos de prisão efectiva.
O jovem aguardava na cadeia de Alcobaça transferência para uma cadeia nacional. A rapariga passava por situação idêntica.

Com longos dias e meses a cumprir naquele espaço fechado começaram a falar-se junto da porta que os separava. A velha porta do pátio era de madeira e tinha fendas.  A porta fechada do pátio cada vez aproximava mais os protagonistas da história que, com o decorrer do tempo, além dos olhares apaixonados se passaram a tocar com as pontas dos dedos.

Através das fendas da velha porta de madeira, a rogo do jovem, a presa foi satisfazendo alguns pedidos mais ousados do nazareno. Mostrava-lhe as pernas e outros encantos.

Estes intervalos de paixão eram interrompidos logo que o  carcereiro chegava ao seu gabinete. Contrariado, o jovem regressava à sua cela, aproveitando a solidão do seu pequeno espaço para sonhar com o encontro do dia seguinte.

Mas um dia a tutela prisional ordenou obras na velha cadeia. Vieram operários, com escadas, baldes de cal e pincéis. Repararam-se as celas e caiaram-se as velhas paredes da cadeia.

Com as obras a aproximaram-se do final os operários foram um dia almoçar fora com o carcereiro. E durante a hora do almoço as escadas ficaram no pátio… O nazareno viu a oportunidade única de aproveitar uma das escadas para passar por cima da porta. Para o lado das mulheres. E saltou.

Foi um momento de alta tensão. Tão alta que… algo lhe faltou.  A rapariga amparou-o nos braços e carinhosamente fez-lhe voltar algumas das “forças” que o salto tinha feito fraquejar…

Abraçaram-se arrebatadoramente. Num minuto de sofreguidão subiram até às nuvens e, de olhos fechados, voltaram à terra. Um último beijo e o “saltador” voltou para o pátio dos homens.

As obras acabaram na manhã do dia seguinte e a rotina dos dias anteriores recomeçou.  Conversas e roçar de dedos através das fendas da velha da porta do pátio.

Uns dois meses depois rebentou a “bronca”. A jovem detida teve dores de barriga e hemorragias e necessitou de cuidados médicos. O diagnóstico foi perentório. Estava grávida.

A partir dali as dores de barriga da jovem transmitiram-se também ao  Carcereiro e ao Delegado do Procurador da República, Diretor da cadeia por inerência das suas funções. 

Para apuramento de responsabilidades seguiu-se um processo disciplinar. De que fui escrivão, recordando que era então um rapaz a rondar os 20 anos.

No registo dos autos e no “registo” das minhas memórias não mais esqueci os rostos, os olhares, as angústias e os relatos dos amantes da velha cadeia do Tribunal de Alcobaça. No espaço do antigo Claustro da Portaria… A rapariga foi transferida pouco tempo depois para a cadeia de Tires, um estabelecimento prisional para mulheres. O nazareno foi para a cadeia de Leiria cumprir a longa pena a que tinha sido condenado. E, entretanto, o processo disciplinar foi arquivado…

Num recanto da minha cabeça, da minha memória nunca se apagou completamente a pungente história dos jovens amantes da Cadeia de Alcobaça. Que lhes terá acontecido?

Passaram mais de 50 anos. Na vida nem sempre se encontram todas as respostas. 
Terminamos com um voto. Que dos amores de Alcobaça tenha nascido uma menina. 
E que a essa menina tenha sido dado o nome de Esperança.




                                                                       JERO

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Amigo Jero

Dois pequenos apontamentos deste teu 'registo de memória' que tanta coisa nos transmite e que também serve de 'retrato de época':

o primeiro para transmitir a minha 'experiência pessoal' desses espaços; é que um dos meus companheiros de brincadeiras de infância era precisamente o "Zézé", filho do carcereiro, e quando brincávamos aos "índios e cóbois" os 'sobreviventes' eram presos e caso houvesse alguma cela vaga lá iam parar durante algum tempo. Só me lembro de ficado 'prisioneiro' uma vez e, por via disso, arranjei a companhia de uns animaisinhos a que davam o nome de pulgas.

O outro apontamento tem a ver com a prática do aborto nesses tempos que relatas: era uma coisa mais ou menos 'escondida' que quase toda a gente conhecia... 'as fazedoras de anjinhos' eram como aqueles segredos que, na prática, não o eram. Lá na 'minha terra' sabia-se quem tinha essa 'função social'. Aqui onde agora vivo até há (havia) uma expressão que se aplicava quando alguém ou alguma coisa facilitava, ou achava que se devia facilitar, e que era: "acham que isto aqui é a casa da Aldora?, Lá é que há sempre alguém de perna aberta!".

Quanto ao resto, pode-se também considerar que 'a ocasião... ' ou 'há que aproveitar as oportunidades'.

Abraço
Hélder Sousa

Juvenal Amado disse...

Jero

Que bela estória com H nos contas.
Em 1960 tinha eu 10 anos e frequentava a 4ª classe do prof Pires, é natural que não tenha ouvido falar dela pois conversas dessas não se faziam ao pé dos garotos.
Já agora o carcereiro era o sr Manuel "Carcereiro" ou isso era só alcunha?

Mais uma vez parabéns pela bela estória e pela forma que tua a contas.
Um abraço

Anónimo disse...

Bonita estória de amor, amigo Jero. É pena que não se tenha sabido que bebé nasceu e que não se tenha perdoado a esses jovens. Podiam ter permitido que se continuassem a ouvir, falar e tocarem-se, mesmo que fosse nas pontas dos dedos. Mas naquele tempo, fiava fino, como diz o povo e tais exemplos eram logo punidos. A ocasião faz o ladrão, que paga com prisão. Coitados aqueles já estavam presos e aproveitaram uma oportunidade que a ocasião, lhes deu.Cada um para seu lado e acabou-se a festa. Um abraço. Mª Arminda