Há
meia dúzia de anos tive a oportunidade de ser contactada pelo Zé, um velho conhecido da Guiné.
Tudo
começou com um artigo publicado num jornal sobre um ex-piloto da Força Aérea na
Guiné, o então Ten. Miguel Pessoa, artigo esse em que era referido o facto de
ele ter casado com uma ex-enfermeira paraquedista, Giselda - eu. Contava-se
também a minha ida atribulada ao Guidage no dia em que outros aviões foram
abatidos pelos mísseis Strela. Com esses dados em mão o Zé iniciou a busca de
um contacto telefónico e, tendo-o conseguido, foi-lhe fácil chegar à fala
comigo.
6
de Abril é uma data que está fortemente marcada na minha memória e não preciso
de vasculhar papéis para saber o que sucedeu nesse dia. Dois aviões foram
abatidos, um terceiro desapareceu, perderam-se três pilotos e um enfermeiro da
Força Aérea, dois oficiais e um sargento do Exército, um milícia local do
Guidage. E o avião em que eu seguia para uma evacuação no Guidage quase foi
abatido.
Naturalmente,
tivemos uma interessante conversa, embora limitada pelo próprio meio utilizado.
Mas ficou-me a ideia de poder vir a falar pessoalmente com ele, no futuro. Essa
oportunidade surgiu há pouco mais de quatro anos, quando fui contactada por um
responsável por uma produtora de trabalhos para o Canal História. Pretendia
essa produtora fazer uma reportagem sobre as enfermeiras paraquedistas em
Portugal, pedindo o contributo das ex-enfermeiras para prestarem depoimentos
sobre as suas experiências pessoais.
Para
além de me disponibilizar para essa entrevista, lembrei-me de propor igualmente
que o Zé fosse convidado a participar nessas gravações, pois certamente o seu
testemunho seria interessante. Dado que concordaram, acabei por ter a
oportunidade de me encontrar com o Zé em Lisboa, no decorrer dessas gravações.
O
que eu me lembro, o que ele me disse e o que ficou gravado podem resumir-se, de
uma forma simples, no seguinte:
O
Zé encontrava-se a trabalhar na construção de um telhado de um edifício, no
exterior, quando repentinamente o quartel é alvejado pelo PAIGC. Estando a
descoberto naquele momento, tenta procurar um abrigo, mas quando ali chega
verifica que o abrigo está cheio, principalmente com gente da população. Não tendo
possibilidade de se proteger completamente, fica à entrada, meio a descoberto. Ouve
de repente uma explosão muito próxima, de uma granada ou morteiro, e nesse instante sente um impacto no corpo. Leva as mãos ao
corpo e retira-as cheias de sangue.
Após
um período de semi-inconsciência, lembra-se de ter aberto os olhos e ver uma senhora com uma T-shirt branca e calças
de camuflado, não sabendo se tinha morrido e se era o seu anjo da guarda que
ali estava. Recorda ainda a evacuação no DO-27 para a BA12 e o transporte
para o Hospital. Refere-me ainda ter a plena consciência de que não teria sobrevivido se não tivesse sido evacuado naquele momento.
Afastando
a hipótese do anjo da guarda, devo
concordar com ele no restante. O Zé teve a oportunidade de utilizar o único
avião que nesse dia conseguiu ter êxito na evacuação de feridos do Guidage. A
gravidade do seu estado não aconselhava de modo nenhum a sua permanência no
aquartelamento. O avião em que pouco tempo depois regressei ao local acabou por
ter de aterrar de emergência em Bigene, depois de alvejado por um Strela, e não
poderia tê-lo evacuado. O avião que substituiu este na missão, embora tendo
aterrado no Guidage e descolado com um ferido a bordo, desapareceu após a
descolagem, nunca mais se sabendo nada do avião e das pessoas que lá seguiam.
Se o Zé tivesse seguido também nesse avião seria hoje mais uma baixa a
lamentar.
O
Zé deveu a sua vida em grande parte à sorte, embora possa ter tido uma pequena ajuda de alguém que, não sendo anjo da guarda, estava ali precisamente
para o apoiar.
Giselda
Pessoa
Foto de Guidage: Albano Costa (Retirado da Internet, com a devida vénia)
13 comentários:
Obrigado "anjo da guarda" Giselda, por mais esta bela história.
E quantos mais não salvaram estes "anjos da guarda", enfermeiras pára-quedistas e os piltos da Força Aérea que faziam estas evacuações, tantas vezes em situações de enorme perigo?
Obrigado!
E já agora uma coisa sobre o 6 de Abril, que por acaso também não me sai da memória: foi o dia em que nasci, mas em 1949.
Um beijo amigo do
Joaquim
Mas que história impressionante, Giselda!
São sempre poucos os elogios que se possam atribuir a essas grandes Mulheres, que com actos de bravura e coragem ajudaram ex-combatentes, tanto física como psiquicamente, em momentos extremamente difíceis.
Sinto-me pequenino nessa imensidão de humanismo que brota de vós e tenho orgulho em pertencer ao vosso grupo de amigos !
Obrigado, Giselda.
Um Beijinho.
Manuel Reis
Mais um belíssimo relato de um acontecimento que acabou bem graças, se não aos Anjos da Guarda, aos enviados por esses.
Obrigado, Giselda, por mais esta história de um acontecimento com tanto significado.
BS
Impressionante. Fantástico. Sabemos todos que era mesmo assim que as coisas funcionavam, só que nesse dia houve muitos azares juntos. Mas felizmente o Zé, a Giselda, o Miguel e muitos outros sobreviveram para contar estas coisas e avivar certas memórias. Obrigado.
Grande texto, grande Giselda e grandespilotos! Está lá o melhor de todos nós.
Abração,
António Graça de Abreu
Só quero deixar um beijinho para a Giselda, grande camarada.
JD
O que dizer depois do que foi dito aqui?
Talvez um obrigado muito fundo à Giselda e a todos que puseram a sua em vida em risco para salvar outros.
Está claro que para a Giselda vai um grande abraço de agradecimento
Juvenal
Obrigada, Gisela.
É uma comovente história que me diz muito. Também passei por Guidage entre 1964 e 1966 (CCaç.675).
Obrigado "anjo da guarda" Giselda, por mais esta bela história.
As enfermeiras foram, de facto, autênticos "anjos da guarda".E, obviamente, os Pilotos da F.Aérea.
Gente boa a quem devemos infinitos agradecimentos.
Obrigado!Muito obrigado. JERO
O respeito e gratidäo para com as nossas Enfermeiras Páras é um denominador comum entre todos os que fizeram a guerra na Guiné.
Este facto...diz tudo.
Um grande abraco do José Belo
Amigos, mais uma vez a Giselda conta-nos uma história que em si mesma é plena de intensidade e dramatismo mas, como de costume, conta-nos 'com uma perna às costas', ou seja, é como se 'não fosse nada'...
Ora bem, o essencial relativo ao reconhecimento do papel das enfermeiras, à unanimidade no que diz respeito à gratidão quanto à sua inestimável actuação, tudo isso está bem assinalado nos comentários anteriores.
Por isso apenas quero dizer que os "anjos da guarda" tomam a forma que quiserem em cada momento e para isso basta o 'sentir' daqueles que foram bafejados com a sua actuação.
Um grande abraço.
Hélder Sousa
Um beijinho, cara Giselda.
Manuel Joaquim
A nossa idade vai passando mas as recordações de tais acontecimentos são sempre lembrados com a emoção de quem vivenciou e os partilhou!
Após tantos anos tornou-se notória a solidariedade/caridade da camaradagem das enfermeiras paraquedistas.
Bem-haja Gisela e muitas como ela…
Saudação amiga,
José Pechorro
Ex. 1º Cabo Op Cripto – CCaç 19 – Guidage - Guiné
Rectifico para:
Bem-haja Giselda e muitas como ela…
José Pechorro
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