Nem
todos temos história nas nossas vidas e menos ainda histórias que mereçam ser contadas
pelos outros, não devemos por isso desperdiçar as oportunidades de lembrarmos
aqueles que o merecem.
São
verdadeiros actos de camaradagem, que por vezes nos ligam sem que saibamos
explicá-los, pelo menos eu não sei, já que não envolveram qualquer perigo. Porém,
aquilo que eu aqui considero ser uma história poderá não o ser para outros, mas
essa é uma opção pessoal que deve ser feita no respeito de todos.
A
narrativa a seguir trata um assunto passado na primeira pessoa e pretende
apenas dar a conhecer, de forma simples e singela, a pessoa de bem que foi - e
estou convicto, continua a ser - o aqui visado.
Decorria
o ano de 1971 quando fui colocado no Porto para tirar a especialidade de
telegrafista de engenharia.
Iniciámos
a especialidade sem que houvesse qualquer oficial no comando do pelotão,
tínhamos apenas um 1º cabo que nos orientava. Isto aconteceu durante uma ou
duas semanas, não posso precisar o tempo certo.
Dizem
que só os diamantes são eternos e esse tempo acabou dando lugar ao finalmente
chegado Aspirante para comandar o nosso pelotão, a partir daí tudo iria
depender deste Aspirante a Oficial.
Após a
sua apresentação, ficámos a conhecer o seu nome, Francisco Silva, mas
desconhecíamos tudo mais a seu respeito. Pela sua postura e trato delicado,
confesso que receámos ter que aturar um qualquer “beto”, na caserna; falámos
entre nós da sorte que nos havia calhado, mas não foi necessário muito tempo
para podermos começar a ver o perfil e fazer um juízo correcto deste nosso
comandante.
Em
determinado dia, numa aula de exercício de morse, todos falávamos sem que a
atenção fosse muita. É então que o nosso superior nos pede, isso mesmo, de
forma ordeira e civilizada, como se de um irmão mais velho se tratasse, para
não fazermos barulho.
Mas como, se todos os 60 ouvidos fossem surdos, nada
tivemos em atenção, ouviu-se então uma voz mais forte dizer “há muitas maneiras
de os fazer calar (cuidado, estava à porta um fim-de-semana, era sagrado,
fez-se um silêncio sepulcral e a frase continuou), uma delas é pedir para não
fazerem barulho”.
Claro está que aquela forma de nos chamar à razão foi um
primeiro passo para vermos a categoria e a classe deste senhor.
De uma
outra vez, na formatura que era norma a seguir ao almoço, houve um senhor,
perdoem o exagero do termo, um tenente (o Eduardo Campos e o Hélder Sousa saberão
certamente de quem falo), que era o comandante da companhia e se lembrou, do
alto do palanque onde se reuniam todos, ou quase todos, os oficiais durante
aquela formatura que juntava três ou quatro companhias, de dizer alto e em bom
som pata toda a parada o ouvir, ”Ó Silva, junte-se aos seus” ao que o Aspirante
Francisco Silva de pronto respondeu sem se afastar do local onde se encontrava,
mas colocando-se em sentido “Mas, meu tenente, eu estou junto aos meus, aos
meus homens”, e tudo continuou sem mais conversas ou diálogo.
Posteriormente
soubemos que a unidade iria ser alvo de uma visita do comandante da arma de
transmissões de engenharia, um major, ido de Lisboa. Como sempre acontece
nestas situações, na véspera fomos chamados à razão por um outro oficial, não
estou certo se o comandante da unidade ou o segundo comandante, onde nos foi
dito quem era esse oficial, por sinal ex-camarada e cunhado do nosso aspirante
e comandante do pelotão, e onde nos foi igualmente dito que este nosso
Aspirante só o era por haver deixado a Academia Militar, mesmo tendo sido campeão
nacional de esgrima pela mesma, tendo-a trocado pelo estudo na Alemanha, onde
se formou em engenharia electrónica. Ficámos ainda a saber ser ele descendente
de várias gerações de oficiais generais a que não deu seguimento com grande
pesar da família.
Depois
de todos estes acontecimentos, os mais significativos para este escrito, nos
meses seguintes não mais nos lembrámos do superior, antes e só do amigo a quem
atendíamos a todos os seus pedidos com agrado.
Acabada
a minha especialidade e feito o estágio, fui mobilizado para a Guiné e não mais
voltei a cruzar-me com ele.
Um dia,
muitos anos passados, ia eu almoçar com a minha mulher, que trabalhava perto
de mim, passámos a alguma distância de um grupo de indivíduos no meio dos quais o
reconheci e comentei: “Aquele individuo ali esteve comigo na tropa”, ao que a
minha mulher respondeu de pronto: “É o engenheiro Francisco Silva, trabalha na
PT”.
Posteriormente
quis a sorte e o destino que nos cruzássemos algumas vezes. Passávamos e cumprimentávamo-nos,
mas sem que qualquer um de nós parasse ou tomasse a iniciativa de esclarecermos
o nosso conhecimento. Até ao dia em que a propósito do meu trabalho e do
lançamento de um seu livro sobre o espectro radieléctrico no espaço e na
sociedade, editado pela Caminho, nos voltámos a encontrar. Aí sim, quando lhe
pedi para me autografar o livro perguntei-lhe: “Lembra-se de mim?”. De pronto
respondeu sobre o tempo que passámos juntos no Porto. A partir desse dia,
sempre que nos cruzávamos o cumprimento era diferente, especial.
Não sei
quanto tempo mais tinha passado ou quantas mais especialidades teria dado, mas
lembrar-se de um recruta de um qualquer quartel durante um percurso militar,
mostra uma capacidade invulgar.
A vida
nem sempre corresponde ao que merecemos, a infelicidade roubou-lhe um filho de
tenra idade e obrigou-o a um reconhecimento tardio na sua vida profissional,
talvez por opções políticas, mas acabou por afirmar-se e ter o destaque
internacional, certamente merecido, sendo hoje uma figura reconhecida na sua
área dentro da Comunidade Europeia.
Desde
2001, após a minha aposentação, deixámos de nos encontrar, mas certamente não
nos esquecemos um do outro e eu devia-lhe esta homenagem. Não é, ou pelo menos não
era, fácil encontrar no meio militar, nem mesmo na vida civil, figuras humanas
que, com vinte e poucos anos tivessem tão grande dimensão e tenham sabido manter
as suas orientações, de forma simples e humanas, sem necessidade do recurso à
força e/ou a pavoneios ao longo das suas vidas.
Belarmino Sardinha
"Quadratura do Círculo", "Reviravolta" e "Narrativa Nova".
Legenda das fotos:
1 - Da esquerda para a direita: O Caldeira, o Rocha e o Belarmino
2 - O Rocha e o Belarmino numa sala de instrução de Morse
3 - O Belarmino, pronto para um reforço
4 - Capa e dedicatória do livro
7 comentários:
As voltas que a vida dá e o reencontro sempre saboroso de quem de alguma maneira preenche o nosso passado.
A vida é feita destes pequenos nadas que no momento certo nos dão prazer.
Um abraço Belarmino e malta da T.C.
Obrigado Belarmino por esta evocação de um homem bom.
Tenho para mim que a educação é muito questão de bom senso e de olhar para os outros como olhamos para nós.
Nem sempre conseguimos, é certo.
Um abraço
Joaquim
Gostei muito de ler esta simples estória, mas rica de humanismo. É muito reconfortante encontrar ao fim de anos pessoas que também nos marcaram de alguma forma e consequentemente fizeram parte da nossa vida passada. Ontem almocei com uma amiga que não via desde 1966 e que também a conheci na Guiné.
Um abraço para o Belmiro e também ao escritor. Mª Arminda
Boa memória de bons encontros da vida. Passaram tantos anos e de facto há situações e pessoas que não podemos esquecer. Por isso é bom recordá-las como agora fizeste.
Uma pequena rectificação. Nessa altura as Transmissões já eram uma arma independente.
Um grande abraço grande Belarmino.
Carlos Pinheiro
É verdade, Belarmino
Felizmente que na nossa vida ainda somos capazes de encontrar situações e pessoas que nos fazem acreditar na 'espécie humana'.
É realmente gratificante.
Quanto ao RTm e suas 'espécies raras', pois é claro que sei muuito bem de quem se tratava. Não sei se 'vale' alguma coisa para além de 'telhas' mas são já águas passadas.
Só um pequeno pormenor: quando dei por lá instrução, não havia essa 'gracinha' de estarem dois na mesma carteira, eram espaços individualizados....
Hélder Sousa
Pois é meus amigos, os tempos mudam e as estruturas também. Hélder, podes ver que tudo assentava em material Handy, coisa fina. Julgo que éramos mais que dois por carteira ou mesa, como quiserem chamar-lhe, mas não me lembro já ao certo.
Quanto ao sujeito era esse mesmo.
Para o Carlos Pinheiro, claro que as Transmissões de Engenharia eram já uma arma.
Obrigado por se terem dado ao trabalho de lerem e mais ainda comentarem.
Um abraço para todos.
BS
Caro amigo Belarmino, também estive no RTm, Porto em 1971 a partir de julho, o meu pelotão era o 5º tínhamos um aspirante ou alferes,lisboeta a quem o chamávamos de "CONGA" é do teu tempo? O cabo creio que se chamava Reis e era guada-redes de Hoquei em Patins do Infante de Sagres. Quanto ao tenente Campos... estou recordado mas do Capitão Campos, será o mesmo?
A. Castro
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