quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

P294: "ALODANDO" NO COMO

Deparando com estas fotos dos velhos tempos relembrei os factos que nos envolveram há 39 anos e não resisti a recuperar o texto que já há uns tempos vi publicado em dois blogues – “Luís Graça & Camaradas da Guiné” e “Especialistas da BA12”. Esclareço que quando digo “nos envolveram” me refiro também a mim. Afinal, embora não o tenha referido no texto, eu era o piloto do Fiat G-91 que descolou em busca do DO-27…
Mesmo correndo o risco de ser repetitivo aqui segue o texto, já conhecido por alguns.

DO-27 NO CHARCO DO COMO

Na manhã do dia 17 de Novembro de 1973 o Centro de Operações do Go1201, na BA12, recebe um pedido de evacuação, vindo de Catió, tendo de imediato destacado um DO-27 para efectuar essa missão. A equipa de alerta era constituída pelo Fur. Ivo Mota, da Esq. 121, e pela Enfª Paraquedista Giselda Antunes, e a eles se juntou a Enfermeira Paraquedista Natália Santos, acabada de chegar à Guiné e que, por ser "pira", acompanhava as "veteranas" nas evacuações, para "ganhar calo".
Estava-se já na época pós-Strela, que tinha trazido diversas restrições à navegação aérea. Entre a opção de subir para 10.000', descendo depois à vertical do destino, o piloto optou pela outra opção possível, que era a de efectuar todo o voo a baixa altitude (50' a 100' sobre o terreno - o correspondente a 15 a 35 metros).
Para evitar zonas mais perigosas o Fur. Mota decidiu então seguir ao longo da linha de costa, sobre a água, contornar a ilha de Como (refúgio do PAIGC), subir o rio Cumbijã e, atingido Cufar, dirigir-se em linha recta para Catió.
O voo decorria normalmente a baixa altitude; à passagem por Bolama tiveram a oportunidade de ver o navio que fazia o transporte de víveres e material, que se dirigia para sul. O DO-27 não parecia ressentir-se de qualquer problema resultante do incidente da véspera. O avião sofrera um choque com um pássaro que lhe tinha acertado no hélice, mas a inspecção feita ao avião no intervalo dos dois voos não tinha detectado qualquer anomalia.
Quando sobrevoavam os tarrafos ao lado da ilha de Como, o avião resolveu "apagar-se" - o motor parou repentinamente, obrigando o piloto a uma reacção rápida para preparar uma aterragem de emergência. Dada a baixa altitude a que seguiam, a única solução era "poisar o estojo" na direcção em que seguiam, em pleno tarrafo, o que o piloto fez - diga-se - com bastante êxito, pois o avião ficou atolado no lodo, mais ou menos direito, tendo os ocupantes saído ilesos desta aterragem (ou mais propriamente "alodagem"). Quem esteve na Guiné sabe bem as diferenças no contorno das margens (no mar ou nos rios) entre a maré cheia e a maré vazia. Neste caso era hora da maré baixa e a água, tendo descido, deixara o tarrafo coberto de uma espessa camada de lodo.

 Rapidamente, os ocupantes abandonaram o avião procurando, atascados no lodo, alcançar uma zona de águas mais profundas, onde pudessem, mergulhados, ficar menos expostos a olhares da margem e ser eventualmente "pescados" pelo navio que pouco antes tinham visto a navegar naquela direcção.
Ter-se-iam passado duas horas desde a aterragem forçada no local quando detectaram uma embarcação do tipo Zebro que se aproximava do local, atraída pela silhueta do DO-27 atolado. Desconfiados, continuaram metidos na água pois a distância não permitia uma identificação eficaz do pessoal que se aproximava. Com a aproximação do zebro puderam verificar que os tripulantes eram brancos, o que os levou a chamar a sua atenção. Rapidamente foram recolhidos e levados para o navio de guerra a que o zebro pertencia e que se aproximava entretanto do local.
Na BA12, entretanto, alertados pela falta de reportes do DO-27, tinham mandado descolar um Fiat G-91 que, seguindo o percurso mais provável voado pelo DO veio rapidamente a localizá-lo no tarrafo. Imediatamente a Força Aérea pediu a colaboração da Armada, que deslocou uma segunda embarcação para o local.
Terá então havido aqui alguma falta de comunicação pois o segundo navio atarefava-se na busca do piloto no local quando este já se encontrava no primeiro navio. Mas mais vale a mais do que a menos...
O facto é que, depois de recuperada pela Armada, mesmo sem dispôr de material (perdido no acidente) a enfermeira Giselda ainda foi fazer a evacuação a Catió, num outro avião entretanto disponibilizado, que "serviço é serviço"...
No dia seguinte, uma LDG da Armada iniciou os trabalhos de recuperação do avião, aproveitando a fase da maré alta, que permitiu a aproximação ao local. A içagem do avião infelizmente não correu tão bem como se pretendia. Na primeira tentativa o DO acabou por cair novamente na água, ficando ainda mais danificado... Provavelmente foram maiores os estragos nessa altura do que na altura da queda! Não foi no entanto importante, pois o destino dele seria sempre a sucata. A deformação da estrutura e a corrosão da água do mar tinham provocado danos irreparáveis no avião.


Podemos imaginar que o fim feliz deste acontecimento se deveu a um conjunto de factores favoráveis que podiam muito bem não ter acontecido:
O facto de o avião voar bastante baixo, não sendo observável das tabancas existentes;
A aproximação final do avião ao ponto de queda com o motor parado, não tendo, pelo seu silêncio, alertado ninguém próximo (detectou-se depois uma tabanca com população presumivelmente hostil a cerca de 700 metros);
A existência de um navio da Armada, em missão de vigilância próximo do local, o que permitiu a rápida recuperação dos ocupantes do DO-27.


                                                                                                                Miguel Pessoa

12 comentários:

Elvas Militar disse...

Gostei imesso de ler esta Historia de Guerra.
Obrigado pela Partilha.
Fernando Laureano

joaquim disse...

Oh Miguel, entre ti e a Giselda, quantas vezes foram "ao charco"?

Não tinha lido esta história quando foi publicada, por isso para mim é novidade.

Um abraço para aGiselda e para ti

Hélder Valério disse...

Olá amigos, bom ano!

Pois eu já a tinha lido, sim senhor. Mas gostei de a reler, até com novos pormenores e fotos a acompanhar.
Fica a pergunta do Mexia: quantas vezes foram 'ao charco'?
E, já agora, sendo que não me causa qualquer surpresa a indicação de que a Giselda 'foi acabar a missão', fico com curiosidade sobre a reacção da 'piriquita'. Acompanhou-a? E com que 'impressão' ficou dessa experiência?.

Abraços!

Anónimo disse...

Conheça-se ou não a história, não podemos passar sem comentar.

O Miguel brinda-nos com a sua forma agradável de descrever os acontecimentos e, perante o que li, não posso deixar de utilizar o provérbio "Deus os fez, Deus os juntou", para o bem e para o mal, se é que se pode considerar mal o ser radical.

Que a Giselda é uma mulher d'armas que sempre acompanha o marido também todos sabemos, esperemos é que não o queira imitá-lo neste seu último voo forçado de que ainda recupera.

Um abraço
BS

Anónimo disse...

Camarigos,

Ainda não tinha lido esta história, nem sequer tinha conhecimento da sua existência.

Mais um texto onde se aprende!

Gostei dos comentários da malta e da preocupação do Hélder com a "piriquita"!

Espero que o Miguel "sossegue" o Hélder, com uma explicação que lhe agrade.

Um abraço para todos os meus Camaradas da Tabanca do Centro!

Vasco A. R. da Gama

antonio graça de abreu disse...

Cufar, 19 de Novembro de 1973

A guerra, os efeitos da guerra. África pobre, quente, medos, suores, sangue e tudo o mais que as palavras não dizem, mas sentimos e vivemos.
Sábado chega a notícia de que na foz do Cumbijã, a uns trinta quilómetros de Cufar caíra uma DO, ou melhor fizera uma aterragem forçada no tarrafo da margem do rio. Avançaram logo meios para se recuperarem os tripulantes, o piloto, e duas enfermeiras pára-quedistas. Tiveram muita sorte, três horas depois os fuzileiros de Cafine descobriram-nos no lodo do tarrafo. Embora a avioneta tivesse caído numa região libertada, os guerrilheiros não apareceram e os fuzileiros trouxeram o pessoal aqui para Cufar nos “zebros,” ainda meio assustados e cobertos de lama. Dois helicópteros levaram-nos depois para Bissau. A DO não foi abatida, tratou-se mesmo de acidente.

No meu Diário da Guiné, pag. 161.

Abraço,

António Graça de Abreu

Miguel disse...

Caro Helder, certamente a "pira" Natália ficará sensibilizada com a tua preocupação. Na realidade ela não acompanhou a Giselda na evacuação a Catió - talvez porque já tivesse emoções que bastassem para um dia de trabalho...
Um pormanor que marcou a Giselda foi que, tendo o doente sido finalmente evacuado para o hospital civil, em Bissau, acabou por falecer devido à demora na sua observação nesse hospital. Afinal, tanto esforço para nada...
Abraço. Miguel Pessoa

Manuel Reis disse...

Camarigo Miguel:

Já enviei um comentário sobre as tuas peripécias na Guiné, mas deve ter ido parar às bolanhas da ilha de Como.

Da primeira vez lançaste-te dos céus de Guilege para receberes uns miminhos da Giselda. Bem conseguido! ´
Este teu novo lançamento desconhecia, talvez quisesses tomar um banho nessas águas cálidas do oceano que banha as margens da ilha de Como. Uma vez mais, bem pensado e bem conseguido.

Miguel, isso foi mesmo muito sério,eu fiz disto uma brincadeira para amenizar o clima tenso em que se vive.Não me leves a mal.

Um abraço para ti e para a Giselda.

Manuel Reis

Anónimo disse...

Grande Miguel e Grande GI.
Que história extraordinária.E que bem escrita que está.Sem qualquer tipo de peneiras por ter cartão de "jornaleiro" confesso que tem tudo bem feito.Nomeadamente por estar extraordinariamente objectiva e com o "tamanho" certo.Gostava muito de a ter escrito mas não gostava de a ter vivido...Os meus renovados respeitos à GI e ao Miguel.
Muito obrigado.
Grande abraço de Alcobaça.
JERO

Anónimo disse...

Olá amigos, felizmente que ambos estão cá para contar esta e a outra linda história com do missil. "Há males que vêm por bem" e a vossa união demonstram-nos bem, todo o acompanhamento de há longos anos. Que seja ainda por longo tempo e sem asas quebradas. Sabia da história que me foi contada pela amiga Giselda,porém com esta descrição e a reportagem fotográfica, que atornam ainda mais rica,não a conhecia na totalidade.Esquecendo-se o susto, mêdo e até mesmo angústia que a ocorrência trouxe ao pessoal, agora dá para brincar.Quanto à "piriquita", foi um inédito batismo de evacuações.Depois foi melhor a Giselda seguir só e outra coisa não era de esperar. Bjs para ambos e continue Miguel, estou a gostar.Mª Arminda

Hélder Valério disse...

Caros amigos

Obrigado pelas informações.
É extraordinário como por vezes a realidade pode ultrapassar a ficção.

Esta cena de um aparelho cair na lama num local que passado algum tempo será coberto de água, com ocupantes que vão para uma missão de salvamento que deste modo não se pode fazer (será feita mais tarde mas por via do atraso resulta infrutífera), nas proximidades ou mesmo numa área predominantemente hostil, daria um bom filme de medo, de angústia, de determinação, de persistência, de vitória sobre a adversidade.

Quanto à "pira" Natália teve realmente um bom baptismo e acho que foi bom assim: para se 'entrar' no 'espírito da Guiné' nada como um bom 'tratamento de choque'.
Tenho quase a certeza que depois disso tudo o que lhe aconteceu ou teve que viver foi feito com muito mais à vontade...

Abraços
Hélder S.

gil moutinho disse...

Queria,aqui,enaltecer a perícia,o sangue frio e a "estrelinha" do Ivo Mota,que conseguiu pôr o estojo na lama,salvando a seu coiro
e das acompanhantes,quase safando a aeronave.
Do amigo
Gil Moutinho