segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

P1359: LEMBRANDO ANTÓNIO LÚCIO VIEIRA

Enviado pelo nosso camarada Carlos Pinheiro:

Hoje partilho mais um poema do saudoso poeta António Lúcio Vieira, de Julho de 2016, que o Orlando Freitas me enviou há pouco. Para mim é mesmo inédito.

Um mail  que o nosso grande amigo Lúcio me enviou em altura de maior perturbação, que por vezes passava  pela  sua agitada mente.

“Dos poemas que me tocaram mais, talvez pelas solitárias noites que por mim vão passando.  

Já não é novo.

Trago-o aqui e deixo-to, porque levei o diabo da noite tomado pela insónia. E lembrei-me dele.
Não é nada importante: trata-se, tão só de um poema.

Nem é novidade em mim: já escrevi outros, ao longo de outras noites. E nunca aconteceu nada extraordinário.

Não é grave, como vês.

Um abraço de bom dia, neste início de torreira que para hoje se anuncia.”

      ESTE MARTÍRIO DE VIVER A NOITE

a noite é sempre um tempo de vazios

conto as horas dos dias e quando a noite vem
sinto o fel da angústia de mais um dia
de menos um dia antes do dia de não ver mais noite
 
é de noite que me encontro em mim e me reflicto
num balanço de contas de um imenso rosário.
Não gosto da noite. Já gostei
quando antes a noite me falava das causas
me trazia o aconchego dos oásis
as luzes e os sons do vazio das horas gastas
os risos, os gestos, as pessoas
o nada de um dia onde quase nada tinha corpo e voz
 
tudo à noite, nessas noites, era maior e mais medonho
avolumavam-se então as sombras e os ritos
na noite de Lisboa o Américo dizia-me vamos à Chafarica
o Vum-Vum cantava chorando memórias da África-mãe
por entre espumas da cerveja que transbordava e partia ao rio
e o Américo dizia-me vamos, chega de noite
 
o Américo morreu há mais de um ano. De noite
 
restou no desvario o Mário Santillana
arrebatado lírico das noites
puro e comovente como as lágrimas cantadas do Vum-Vum
sôdade/ sôdade/ dês nha terra S. Nicolau –
e era a dor da noite que só de noite se sente e se semeia
e a Lia  Gama a santificar o Pessoa e a Sophia no D. Sebastião
e nós quase sem pudor a beber mais a noite dos segredos
do que os aromas, os mistérios e o rum dos rituais
 
mas doía porque era noite e de noite a dor é tão maior
que não cabe nas contas deve e haver da vida
nem no sangue que se derrama dos olhares
nem nas águas que dos beirais se soltam
que nos benzem os pecados da noite
e escrevem nas paredes as sombras dos mistérios e as setas
que nos dizem o caminho para o dia que se apressa
 
e depois a perene magia das ruas
o Américo não sabia quantas ruas da cidade conhecia
mas conhecia as ruas todas e os segredos e as mulheres de cada rua
e  escrevia nelas, nas ruas e nas mulheres
os excessos das noites e as frustrações dos dias.
Morreu sem bem se encher de vida
a bem dizer sem quase dizer quanta vida bem viveu
e deixou-me assim órfão e tão vazio como as noites da Chafarica
quando o Vum-Vum chorava e calava o canto nos soluços
e o Mário parava de beber e da janela que se vira para a rua
onde o sol daí a pouco, intruso, nasceria
gritava às mulheres que das janelas acordavam:
 
vocês só agora acordaram e eu ainda não fechei os olhos desde que nasci
 
É por isso que a noite se insidia nos meus dias e me atormenta
é por isso que sempre regresso quando a noite cai
ao flagelador ritual do exorcismo das horas
entre as horas que acendem as noites e a luz
que da alvorada me descerra mais um dia
de martírios e de alma em sobressalto
até que o doce elixir de novo  transborde e corra ao rio
e eu me deixe levar nesse caudal que procura o mar
enquanto a voz da Lia desflorava poemas e se derramava
dolente e embaladora pela calçada da rua
vazia, vazia, vazia
como são agora as amargas horas da noite - das noites -
onde cumpro o castigo de existir

António Lúcio Vieira

2 comentários:

Carlos Pinheiro disse...

Obrigado.

Hélder Valério disse...

Não sou capaz de fazer crítica à poesia.

Gosto, não gosto, e pronto!

Mas sobre estre poema não posso deixar de dizer que todo ele deixa repassar o sofrimento de quem o escreve e pense-se o que se pensar, deve-se respeitar os sentimentos do poeta.

Hélder Sousa