segunda-feira, 13 de setembro de 2021

P1310: DESENRASCANDO-ME À BOLEIA...

                                AS MINHAS VIAGENS

Inspirado pelos relatos que tenho lido das viagens que alguns amigos têm feito, achei que também poderia ser interessante dar-vos a conhecer algumas que fiz.

Espero que o amigo Branquinho não considere que estarei a “falar de mim e do meu umbigo”, mas isso será injusto considerar desse modo, na medida em que, tratando-se de factos ocorridos comigo, é inevitável que não me inclua no relato, a menos que arranjasse um personagem para me substituir, algum “alter ego”.

Viagens de barco fiz algumas. Coisa pouca, ou de pouca expressão. 

Travessias do Tejo, entre Tancos e Almourol, entre Lisboa (Terreiro do Paço) e Cacilhas ou Barreiro, ou entre Lisboa (Belém) e Trafaria, travessias do Sado entre Setúbal e Tróia, travessias do Guadiana entre Vila Real de Santo António e Ayamonte. Também fiz o que por aqui temos chamado de “o cruzeiro das nossas vidas” de Lisboa a Bissau. E aí, na Guiné, do Xime a Bissau. Mas também fiz alguns percursos no Mar Egeu, de Atenas (Pireu) a Mykonos, depois a Rhodes, depois a Patmos, depois Kusadasi e regresso ao Pireu. Em todo o caso, nada comparado com as viagens de “volta ao Mundo” que fomos vendo e lendo por aí.

Mas o que venho relatar são “viagens à boleia”. Outros tempos em que isso era possível sem a carga de perigos (vários) que hoje em dia nos fazem desaconselhar aos nossos familiares de se aventurarem nessas coisas.

No verão de 1968, depois de ter ido “às sortes” em Santarém, e na posse de algumas economias que consegui da apanha do tomate (para as fábricas da “Idal” e da “Sugal”), foi-me possível aproveitar as facilidades do “turismo estudantil” e, com um amigo de Vila Franca, José Carlos, de seu nome, resolvemos viajar em 14 de Agosto até Paris (viagem no “Sud-Express”), depois até Londres (com “voo económico”, cerca de 100$00 da época, de “Paris - Le Bourget”) e depois de Londres para Lisboa, em 11 de Setembro, que custou, lembro bem, 1.020$00.

Não são estas viagens que vos quero transmitir, mas sim as boleias que apanhámos de Paris para a fronteira da Bélgica, da fronteira para Bruxelas e no regresso da capital belga a Paris. Cada qual com as suas particularidades.

A 1ª das três boleias (de Paris até à fronteira da Bélgica)

Para essa, que foi a primeira delas, fomos até à autoestrada que ia para Lille, depois de cruzar a fronteira belga, iria para Tournai, mas não foi nada fácil apanhar boleia. Uma grande “seca” de cerca de 4 horas. Os carros vinham quase todos cheios de pessoas que regressavam de férias (estávamos no final de Agosto). O tempo ia passando, penosamente, até que em determinado momento, em que eu até estava de costas para o trânsito com um saco da TAP a tiracolo, com as letras e o logotipo bem visíveis, encosta uma viatura, apenas com o condutor, um homem de meia idade, e convida-nos a entrar depois de perguntar para onde queríamos ir.

Dadas as circunstâncias, eu e o José Carlos entreolhámo-nos interrogativamente, com alguma apreensão, mas lá aceitámos a oferta de transporte, tanto mais que a jornada já ia longa.

Após a entrada ficámos logo a perceber o que tinha motivado a paragem e a oferta de boleia. O nosso generoso benfeitor era um admirador confesso do regime político então vigente em Portugal, fez questão de o declarar, tendo referido que foi a identificação do saco da TAP que o motivou. Depois de inquirir o que é que nós estudávamos (eu em engenharia e o Zé Carlos em economia), lá nos aconselhou a mantermos a “fidelidade aos princípios da política governamental do nosso país e ao repúdio pelas ideias estrangeiras”.

Ele era um notário, que tinha ido levar a família a fazer férias algures na Normandia, mas teve que regressar a casa, perto da fronteira belga, a fim de terminar uns processos, daí que estivesse com disponibilidade de espaço e tempo para nos transportar.

Ao aproximar-se da sua casa, uma espécie de mansão, com cave, piso térreo, andar superior e sótão, passámos por algumas construções de tipo militar tendo ele aproveitado para revelar melhor os seus pontos de vista, esclarecendo serem restos da linha defensiva (“linha Maginot”) que “eles” (os franceses, seus alegados compatriotas), tinham construído para evitar uma invasão alemã (que tinha do outro lado a “linha Siegfried”) mas “os alemães fintaram-nos pois vieram por cima”, rindo-se gostosamente. Percebeu-se bem de que lado estava.

Insistiu em mostrar a casa e a propriedade, dizendo que conhecia bem o pessoal da fronteira, que depois nos ia lá levar e facilitar a passagem (o que aconteceu). No que se pode entender ser a traseira da construção habitacional (e escritório) tinha aí num quadrante do terreno uma piscina, noutro quadrante um “court” de ténis, noutro uma espécie de bosque com umas camas de rede estendidas entre árvores e no outro quadrante havia mais qualquer coisa que agora não recordo. Sei que na periferia envolvente de tudo isto tinha um género de estrada em terra batida que ele aproveitou para nos demonstrar a sua perícia a conduzir a viatura, fazendo uma condução rápida em várias voltas. Uma loucura!

Na visita à casa voltou a apreensão. “Visitar o sótão? Será que nos vai sequestrar lá? Visita à cave? Mas o que é que ele quer?”

Bem, mesmo com algumas reservas mentais e em atitude defensiva, lá fomos ao sótão. Dado que tudo em volta no exterior era mais ou menos plano, as vistas davam para alcançar distâncias significativas. Na descida à cave deparámo-nos com a produção de cerveja artesanal. Fomos contemplados com um saco de nozes e duas garrafas dessa cerveja caseira cada um (que bem foi a nossa “safa” lá mais à frente na noite) e fomos levados à fronteira onde depois de esclarecer os guardas franceses e os belgas que se tratavam de “estudantes amigos portugueses”, fizemos a passagem facilmente e depois das despedidas, lá seguiu a nossa jornada.

A 2ª das três boleias (algures da fronteira franco-belga até Bruxelas)

Entretanto a noite tinha-se aproximado, havia um género de lusco-fusco, e a boleia também não foi imediata, embora não chegasse a uma hora de demora.

Lá estávamos a pedir aos carros que passavam, até que parou uma furgonete que no imediato não deu para perceber bem o que era. Perguntaram, o condutor e a mulher, para onde íamos e lá nos disseram que ficavam na periferia de Bruxelas mas que nos levavam. Só quando a porta de deslizamento lateral da furgonete se abriu é que nos apercebemos da existência de 4 crianças vestidas à moda cigana (tal como depois verificámos também estarem os pais) mas lá confiámos e seguimos viagem com eles, conversando em francês sobre nós e sobre eles.

Tal como tinham dito deixaram-nos, por assim dizer, às portas de Bruxelas, mais ou menos como se fosse o Campo Grande e o nosso destino era a zona da Baixa, sendo que lá era perto da Ópera, e só nesse momento nos apercebemos que não tínhamos francos belgas (esquecimento imperdoável) para pagar elétrico (trolley) ou táxi e vá de vencer a distância palmilhando o caminho, comendo nozes e bebendo cerveja.

A 3ª das três boleias (de Bruxelas a Paris)

No terceiro dia, cumpridas a missão e a visita à capital belga, dispusemo-nos a regressar a Paris. Já nessa altura parece que “teremos sempre Paris….”

Para não variar procurámos obter boleia para a viagem. E desta vez não demorou muito até que um “Opel Commodore” parasse junto a nós e nos oferecesse o desejado transporte. Tratava-se de um jovem casal holandês, ele um engenheiro químico da “Dupont de Nemours” e ela não me recordo, que iam a Paris, que não conheciam e nem faziam ideia como chegar ao hotel de destino, para depois participar numa conferência qualquer.

Claro que, como portuguesitos desenrascados, dissemos logo que não havia problema, já conhecíamos as voltas a dar em Paris e que íamos dar as indicações para chegarem ao hotel com toda a facilidade. Depois tínhamos as cadernetas de tickets de Metro e íamos à nossa vida, ou seja, ao nosso alojamento da zona de Les Halles.

A viagem foi agradável, parámos para comer em estradas secundárias, lembro de beber a minha primeira Coca-Cola, e depois as coisas em Paris correram como lhes tínhamos dito. Chegaram ao Hotel, ficaram contentes, nós também e pronto, acabou a 3ª viagem.   

Estes relatos tiveram apenas por alvo as boleias, não o que se viu, ou fez, ou visitou, tanto em Partis como em Bruxelas ou Londres, pois isso seriam outras histórias, mas esta aprendizagem do que era então “viver na Europa para lá dos Pirenéus” ajudou muito à tomada de consciência, ou à sua consolidação, do que era necessário fazer em Portugal.

Hélder Valério Sousa

Fur. Mil. Transmissões TSF

11 comentários:

Alberto Branquinho disse...


Ah, cartaxeiro!!

Falaste quase só de boleias com tais experiências que, até, meteu ciganos (o que para cartaxêro é "mato"), não vejo como, falando de dois e não de um só umbigo, haverias de ter falado (SÓ) de ti e do teu umbigo.
Gostei de ler e deve ter sido uma aventura bem gostosa para vocês os dois.

Abraço
Alberto Branquinho

JB disse...

Ditado do extremo norte da escandinavia:

”Ao viajar-mos não somos nós que nos deslocamos mas sim o mundo que se desloca até nós “

É lamentável que as tuas viagens “à boleia” tenham sido efectuadas nos finais dos anos sessenta.
A ser hoje,e tivesses viajando até à área da Laponia sueca onde vivo,ainda estavas à beira da estrada rodeado de infindáveis montanhas e florestas……à espera que surgisse improvável carro!
E,com o meu coração de lusitano,só te desejo que não fosse durante o Inverno local.
Mas,e a ser-se positivo,terias tido oportunidade de,em minha casa,beber o *TAL* vodka do meu alambique caseiro que ,na escuridão do Inverno entre nevões….. até as renas parecem pavões!
Enfim,põe-te a caminho.

Um abraço do J.Belo.

JB disse...

Aproveito o “pombo correio” para enviar um grande abraço ao Alberto Branquinho que tem andado bastante arredado destes nossos saudáveis “piropos”

J.Belo

Alberto Branquinho disse...


Caro J.B. (ATT: não é marca de vodka nem de W.)

Tenho andado arredado não dos "piropos" propriamente ditos mas de onde não se pode "piropar" com gente que, em certo aspecto, se sente importa...nte.

(Dizia-se - mas por outras razões - que há gente que se importa, assim como há gente que se exporta e gente que não se importa).

GANDABRAÇO
Alberto Branquinho

Valdemar Silva disse...

Hélder, aquilo é que foram boleias com belas histórias.
A boleia dos ciganos é muito interessante: quantos vezes, calhando todas as vezes, teriam sido negadas boleias aos ciganos nas estradas das suas vidas.
Sempre me fez uma certa confusão, a facilidade com que a rapaziada estudante saia do país para passar férias e os outros iam a salto para trabalhar.

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz

Nau disse...

Grande aventura, amigo Hélder! Correr mundo é sempre alargar horizontes e aprender muito, e naquela altura do «orgulhosamente sós» e das fronteiras cerradas a sete chaves, até para as ideias, ainda mais era. Depois da viagem, calculo que deve ter ficado a bailar nas vossas cabeças a eterna questão dos portugueses fartos daquele regime: «Quando é que isto acabará?». Felizmente, não faltava assim tanto.
Grato pela partilha e um grande abraço, meu amigo.

Juvenal Danado

Hugo MOURA FERREIRA disse...

Gostei! E mais não digo!
Abraço.

Hélder Valério disse...

Meus caros amigos
À boleia dos vossos comentários (isto de boleias fica no "sangue") aqui vão algumas considerações complementares.

O meu estimado amigo Branquinho veio referir as minhas "raízes cartaxeiras" onde, em tempos que já lá vão, haveria alguma comunidade cigana, creio que em nomadização, mas os meus contactos com ciganos foi em Vila Franca, onde pontificava o "Teles cigano", creio que avô duma jovem cineasta (Leonor Teles) premiada num festival na Alemanha, onde venceu o "Urso de Ouro".

Quanto a "aventura" pois podes crer que foi.
Todo um conjunto de situações que se revelaram importantes.

Começando pelo facto de se estar em 1968, em Paris, era absolutamente natural estarem ainda bem vivos os ecos dos acontecimentos do "Maio de 68" e isso era bem notado nas discussões de rua, em que se debatiam pontos de vista diferentes, que nós íamos assistindo interessados e com perplexidade, pois nada disso se podia fazer por cá nesses tempos.
Também ao longo da estadia em Paris ocorreu a "invasão da Checoslováquia" (20 e 21 de Agosto) o que motivou e foi tema para novas e acaloradas discussões.
Já aquando dos dias em Londres íamos no Metro (lá chamavam "Tube") deparei com um jornal abandonado ao lado do banco onde seguia onde vi a foto de Salazar e a notícia da sua "queda da cadeira" (sim, sei que a "queda" se deu no início de Agosto mas só nesses dias do início de Setembro tomei esse conhecimento).

Amigo JBelo essa tua generosa oferta seria interessante mas, naquele tempo e nas circunstâncias então vividas, não só não foi possível aceitar como não estava (ainda) prevista uma "ida para a Suécia".
Do conjunto de coisas e suas consequências que tens vindo a contar, principalmente sobre o teu "TAL" vodka e o relacionamento com as renas retive essencialmente que é possível falar com elas sendo no entanto mais "esquisito" quando elas respondem....
Admito também perfeitamente que, dadas as circunstâncias, não fosse nada fácil, improvável mesmo, encontrar um carro (ou um trenó) que fosse para a "casa do Pai Natal".
Agradeço a oferta, muitíssimo pouco provável de se concretizar essa visita mas concordo totalmente com a frase que fizeste encimar o teu comentário de que ”Ao viajarmos não somos nós que nos deslocamos mas sim o mundo que se desloca até nós“. Assim se consiga entender.
Num dos dias de Paris, na casa onde estávamos, apareceu ao jantar um conhecido do casal que nos abrigava e que era camionista de longo curso e que dali a dois dias ia seguir pela Bélgica, Holanda, Alemanha e até Varsóvia e que se ofereceu para nos levar. Uma semana e mais qualquer coisa. Claro que se levantaram todas as dúvidas, como era nas fronteiras, os passaportes, etc., e claro que não fomos mas a rota não era a Suécia...

A seguir vou responder ao Valdemar e ao Juvenal.



Unknown disse...

Bem descritas essas boleias da tua juventude. Abraço.

Hélder Valério disse...

Pois então, aqui vai alguma continuação...

Caro Valdemar, realmente as boleias referidas tiveram essas histórias próprias mas também é verdade que todo o conjunto dos dias e das suas coisas, que foram de 14 de Agosto a 11 de Setembro, contribuíram para aumentar a visão das coisas e tal como o JBelo citou, foi o mundo que se deslocou até nós.
Quanto à tal "facilidade" que te intriga não sei como te responder.
Sei que por esses tempos havia o "turismo estudantil" (de que podes ver parte do cartão identificador) e que por aqui por Lisboa funcionava numas instalações do IST, creio que junto, ou anexo, à Associação de Estudantes. Eu era conhecedor dessas circunstâncias, que não eram muito publicitadas, mas eu colaborava com a Associação do Instituto Industrial e daí estar informado.
Não me recordo do que foi necessário tratar em termos de papeladas e/ou autorizações, de que instituições ou declarações próprias, mas sei que sim, foi necessário tratar de algumas coisas.
Recordo também que para o voo de Londres-Lisboa em 11 de Setembro, os bilhetes foram comprados e lugares reservados ainda antes das viagens. Para a ida para Paris só havia um lugar disponível a 15 e por isso eu fui no "Sud Express" e o José Carlos ocupou esse tal lugar, reencontrando-nos depois do primo dele o ir recolher a Orly e depois a mim na Gare d'Austerlitz.
Durante a longa viagem de comboio, para além do revisor para o bilhete, recebi também a visita de dois senhores encasacados e de chapéu que pediram para ver o passaporte, um papel que atestava que tinha feito a inspeção militar e não me recordo de mais nada a não ser fazerem as perguntas de "para onde ia", "com que finalidade", "quando voltava" (ter comigo o bilhete de volta do avião deve ter dado alguma confiança) e coisas assim.
Mas essas eram viagens "legais", digamos assim. Havia outras a "salto", provavelmente bem mais emocionantes mas também mais perigosas e angustiantes.

Caro amigo e vizinho Juvenal tens toda a razão que "correr mundo é sempre alargar horizontes" e é bem verdade que as ideias começaram a fervilhar.
Mas a questão de se interrogar "quando é que isto acabará" não ocorreu logo como uma premissa de urgência, mas sim mais a de lamento. Sentia-se que havia sinais para a mudança mas em 68 ainda eram ténues. Para mim, apenas dois anos depois, em Agosto de 70, tive alguma "premonição" das alterações que se avizinhavam e que se materializou numa discussão que tive no Porto com um camarada de curso, já falecido, por sinal de Setúbal e que mais tarde foi meu padrinho da cerimónia religiosa do meu casamento.
Como já disse mais acima todo o conjunto da jornada foi notável.
A descoberta de Paris, entrar rapidamente na dinâmica do Metro (aqui, naquela altura, só havia Metro em Lisboa e apenas um ponto de confluência de duas linhas), os dias passados a visitar o que a cidade tinha e tem para oferecer (Sacré Coeur, Louvre, Invalides, Torre Eiffel, Campos Elísios, Jardim do Luxemburgo, Pigalle, etc.,) mas também as noites em Saint Michelle ouvindo as discussões, a ver a "fauna" à volta de "Les Halles" (pertíssimo donde ficámos alojados graciosamente), visitar a famosa livraria "Maspero" (onde comprei o "Homem Unidimensional").

Para o meu amigo e "quase primo" Hugo o meu agradecimento.

Hélder Sousa

Juvenal Amado disse...

Vi ao ler que nunca apanhas-te boleia numa camioneta de transporte de suínos. Em 1971 fiz algumas viagens nessa bem cheirosa companhia de Alcobaça para o Porto. Uma experiência a não perder