Texto publicado em Junho de 2017 no blogue “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, que fomos repescar com a devida vénia ao blogue e ao autor, Juvenal Amado.
LEMBRANDO O CINE TEATRO DE ALCOBAÇA
Gostei muito de cinema desde sempre e o Cine Teatro de Alcobaça foi ponto de encontro de gerações de Alcobacenses.
Em miúdo ia com a minha tia ver os filmes do
Joselito e Marisol; mais tarde também me levou a ver filmes históricos, em
especial sobre as guerras napoleónicas, género que deixou de ser tema de
interesse para as produtoras cinematográficas, pois há muito tempo, tirando uma
versão do "Guerra e Paz", deixei de ver em cartaz esse género de
filmes.
Quando há tempos pela escrita do José Marques Vidal e Arturo Pérez-Reverte voltei a lembrar-me do tema, revi mentalmente a batalha de Austerlitz, onde Napoleão derrota os exércitos russos, austríacos e ingleses, bem como outras venturas e desventuras do corso, que resolveu criar um Mundo à sua vontade até se afogar no seu próprio orgulho e megalomania.
Mas também era comum juntar-me aos Mendes, ao Cafézinho, ao BiBi e outros miúdos; numa das portas laterais esperávamos que o porteiro, senhor Sílvio, nos desse uma borla e assim nos deixasse assistir aos filmes.
- ”Não façam barulho e espalhem-se, não os
quero todos juntos” - dizia ele.
Depois do primeiro intervalo, lá íamos nós sem
fazer barulho até ao 3.º balcão, razão essa, que tenho na memória os filmes que
nunca vi o principio como o "Ben-Hur", o "Rei dos Reis",
o "Barrabás", "Spartacus", etc, etc. Esses ficaram para
sempre amputados dos seus inícios pelas razões que acabei de apresentar.
Entretanto comecei a trabalhar, e com direito a semanada, pude assim comprar o bilhete e começar finalmente a ver todos os filmes desde o início. Estava na época dos filmes "cobóis" "esparguete" com o Clint Eastwood, (quem diria que ele se faria num dos maiores realizadores do nosso tempo?), o Bud Spencer e Terence Hill, etc, que gastavam mais balas na apresentação do que em todas as guerras do México. As pistolas de seis tiros disparavam sem cessar, nunca ficavam sem balas...
Também os filmes de karatê do Bruce Lee
levavam legiões de admiradores, e era vê-los à saída do cinema, a gingarem-se e
a imitar os tiques do actor. Simplesmente hilariante, quando ele era atacado
por mais de vinte bandidos, que despachava num ápice. Ficava sempre para o fim
um e esse, é que era sempre uma rolha dura de roer. Entre gritos, chapadas e
pontapés de toda a forma e feitio, o nosso herói tinha mais trabalho com esse
do que com os outros vinte…
Por causa desses filmes logo apareceram
escolas de karatê nas diversas modalidades, o que deu azo a episódios caricatos
como o do meu amigo “Bife”, que acabado de ter a sua primeira aula de Tae Kwon
Do, se envolveu logo à pancada com outro junto ao campo de ténis.
As gargalhadas sucediam-se a cada nova
exclamação do nosso bem conhecido angariador de peles de coelho e ferro velho.
O velho Pelé também servia para as mães meterem medo aos filhos, que praticavam
qualquer maldade, ou não queriam comer a sopa. A sua imagem andrajosa com um
saco às costas, era assim aproveitada para o imaginário da garotada.
Também a Escola Técnica de Alcobaça, sob a
batuta do professor Miranda, levava à cena as peças no Cine Teatro, que
ensaiava para serem apresentadas nas suas festas anuais. Nunca me esqueci da
peça "A Gaivota", de Anton Tchecov, e também quando o teatro de
revista deixava o Parque Mayer e fazia digressões pela província.
Naquele tempo o Cine Teatro abarrotava de espectadores e, na maioria dos casos, só ficavam livres as cadeiras obrigatoriamente guardadas para os descendentes do fundador António de Oliva Monteiro.
Depois fui para a tropa e para a Guiné. Durante 3 anos
não me deliciei com os filmes nem com a vivência ao redor dos mesmos.
Na Guiné, em Galomaro, fomos uma vez visitados pelos serviços de foto-cine do exército, se não estou em erro com o filme "Chaimite", na verdade um tema bem a propósito como é bom de ver. Foram exibidas duas sessões para dar oportunidade a quem estivesse de serviço de ver o filme no dia a seguir. Numas das sessões, calhou-me fazer reforço na porta de armas e tive o maior assédio de lavadeiras de que há memória, pois queriam que eu as deixasse entrar para ver o filme. Está claro que não podia deixá-las entrar sob pena de o Coronel me dar uma porrada de todo o tamanho, mas devo ter ficado com fama de ser um bom filho p… durante muito tempo.
Sei que havia salas de cinema em Bafatá e em Bissau,
mas nunca lá fui ver nada. Se calhar porque só pernoitei uma vez em Bafatá, no
seguimento da trágica morte do nosso camarada Teixeira, e em Bissau estive só
de passagem e com pouco ou nenhum dinheiro.
Quando regressámos, deu-se a explosão com o
fim da censura; as sessões sucediam-se para vermos os filmes até ali proibidos,
ou revermos os que tinham sido amputados das cenas que a comissão da censura
tinha resolvido cortar.
Seguiram-se as sessões de pornografia, que eram
exibidas depois da meia-noite.
Depois o declínio foi-se agravando, e não foi
só em Alcobaça. As salas começaram a ficar vazias por causa dos centros
comerciais e das suas sessões continuas, da televisão, dos clubes de vídeo.
Estas por sua vez foram à falência por casa da TV por cabo, onde podemos ver
filmes a toda a hora sem se sair de casa, com a qualidade HD nos LED's de
tamanho considerável com sistemas de som circundante.
O que virá a seguir não sei, talvez com máquinas de realidade virtual em que sejamos expectadores e actores ao mesmo tempo, com influência no guião do filme.
Ontem liguei a televisão, e estavam a exibir o filme "Cartas de Guerra". Já ia adiantado, mas mercê das novas tecnologias, voltei atrás para ver de principio. Gostei, apesar de algumas incongruências, digo eu, uma vez que a guerra que travámos na Guiné foi forçosamente diferente da de Angola pelo tipo, pelo espaço físico e também pelo antagonismo existente entre os três movimentos independentistas. O filme faz-me lembrar uma banda desenhada com grandes planos e muitas imagens falsamente paradas, em que o autor tenta transmitir ao espectador a dor, o isolamento, o desamor e a violência daqueles dias, usando um ambiente surreal. (A ver os "Vampiros" com textos de João Melo e desenhos de Juan Cavia, uma história de ficção passada na Guiné em 1972).
Fez-me reviver os nossos mortos, e as imagens a preto
e branco, mais os gritos na escuridão, conferiram um efeito trágico e sufocante
sobre as minhas próprias memórias. Desejável seria que este filme fosse ponto de
partida para mais registos devidamente aconselhados, por homens que sabem com
conta peso e medida aplicar com rigor as recordações daquele tempo.
Hoje o Cine Teatro de Alcobaça continua lindo. Cinema
pouco, mas chegam-me notícias de teatro, teatro de marionetes, bailado e também
musica de vários géneros. Os filmes é que parecem rarear naquele espaço mas
isso é fruto dos tempos. *
Juvenal Amado
* O texto está um pouco datado, pois foi publicado em Junho de 2017. Mas, consultando o site do Cine Teatro (cineteatro.cm-alcobaca.pt), verificamos existir um programa de espectáculos interessantes a apresentar nos próximos tempos, parecendo que o Cine Teatro de Alcobaça mantém a sua vitalidade.
3 comentários:
Grande cinéfilo Juvenal. Ainda vi alguns filmes em Bissau no Cine UDIB que tinha 5 filas de bancos corridos à frente da fila A, para os naturais da Guiné.
Um abraço
Carlos Pinheiro
Juvenal
Em Contuboel aparecia o Sr. Manuel Djoaquim com a sua velha carripana Ford e projectava uns filmes que muita gente ia ver, quer fossem tropas ou população. Julgo que também era ele na projecção dos filmes em Nova Lamego, com um interessante preço dos bilhetes, que era mais caro conforme a patente militar.
Mas em Bissau, talvez na UDIB, fui ver um filme, a minha ida ao cinema foi por outras razões, de western em que o xerife era um actor negro conhecido, e em certa altura o xerife de costas atirando por cima do ombro consegue atingir um bandido. Depois de uns segundos de silêncio, até o xerife atingir o bandido, foi um delírio no cinema com a assistência em pé a bater palmas.
Mas a sala deste cinema em Bissau tinha uma abertura no tecto junto ao ecrã para entrar ar, mas entrava ar e dezenas de morcegos que chateavam os espectadores.
Um abraço
Valdemar Queiroz
Pois é Juvenal
O cinema!
Aquando das nossas infância, adolescência e juventude e também mais um pouco no tempo adulto, o cinema, a magia do cinema, a envolvência da sala escura, ajudou-nos a "ver" o mundo, a História, a viver as "aventuras dos outros" quantas vezes projectadas no nosso imaginário.
O percurso que fizeste pela tua Alcobaça, em termos da frequência (e tipo dela) não foi muito diferente do meu.
Hélder Sousa
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