segunda-feira, 10 de maio de 2021

P1292: SEPARAÇÃO


Palavras do Juvenal Amado:

Cá vai mais uma pequena estória, embora uma ficção, que se repetiu vezes sem conta ao longo dos anos de Guerra.
Como digo na introdução, em que falo de dois casos reais, ela surge da correspondência mantida com o nosso camarada Vasco Joaquim. Ele pertenceu ao BCAÇ 2912, que nós fomos render.
Um abraço a todos os camaradas.
Juvenal Amado

ADEUS, ATÉ AO MEU REGRESSO

Introdução

Casado desde os vinte anos, ela com dezoito e após 40 anos de matrimónio, já com cinco filhos, a forma como o Vasco Joaquim fala do grande sofrimento que foi a separação durante os anos que esteve na Guiné, mais precisamente em Galomaro, (BCAÇ 2912 de 1970 a 1972), é elucidativa do drama que o atingiu com a separação.

Também me levou a recordar uma situação passada com o meu camarada Lourenço Periquito, que também já era casado e tinha um filho quando embarcou para a Guiné.

O Lourenço todos os dias escrevia e recebia carta da mulher. A dada altura essa corrente de escrita quebrou-se, pois o nosso camarada deixou de receber as cartas da esposa. O nosso camarada estranhou, mas lá ficou esperando sem dizer nada a ninguém.

Os dias e as semanas foram passando, o correio não chegava. O desespero levou a umas cervejas a mais, o nosso camarada soltou o seu drama dando largas à sua dor.

Falou-se com o Comandante e a partir daí, logo ele recebeu notícias de casa. Também a esposa estava aflita, pois não sabia como contactar o marido (Os telemóveis só chegariam muitos anos depois).

O incidente foi motivado pelo facto de o carteiro que fazia aquela zona ter ido de férias e o que o substituiu nunca ter levantado o correio da caixa que ficava no pequeno povoado.

O Lourenço recebeu de uma só vez a correspondência de quase um mês, e era vê-lo devorar as cartas com a felicidade estampada no rosto.

Embora esta estória tenha sido gerada pelo testemunho do nosso camarada Vasco - que confidenciou que tanto ele como a esposa, numeravam os aerogramas para terem a certeza que não perdiam nenhum - é intenção minha dedicá-la a todos os que viveram situações semelhantes.

Os dois casos acabaram por ter um final feliz.

ADEUS, ATÉ AO MEU REGRESSO

(Mais uma estória de amor)

Olho os teus cabelos espalhados na almofada.
Nunca te disse quanto te amo. Na penumbra, o meu olhar desce pela curva do pescoço, ombros até ao arredondado dos seios. Finalmente adormeceste, após a longa vigília que prolongou o amor feito de desespero e ansiedade, pela partida próxima.

O teu corpo nú, encostado ao meu, tão perto da despedida. Acaricio-te a pele macia, mexes-te ligeiramente sem acordar. Volto a olhar a curva do teu rosto sereno, de vez em quando atravessado por um leve franzir, como se uma preocupação teimasse em não desaparecer.

Algumas horas nos separaram dos dois anos em que possivelmente nunca nos veremos. Antevejo a dolorosa despedida, não com um até já ou um até logo, mas sim com um até qualquer dia.

Acordo-te suavemente. Abres os olhos e sorris, mas logo o sorriso é substituído pelo pânico: - “Já está na hora?” - Perguntas aflita.

- “Sim tenho que me preparar, não posso perder o comboio” - respondo.

Tinha sido um acto de loucura termo-nos casado antes de eu ter sido mobilizado. Nem casa tínhamos, por isso o termos ficado em casa dos meus pais, ocupando o meu quarto de solteiro, rodeados dos meus livros e discos.

Depois da minha partida, voltará para casa dos pais dela, onde se sentirá mais apoiada. São tempos conturbados estes. O nosso horizonte é limitado pelo fantasma da guerra.

Aquele trocar de olhares no baile, o convite mudo para dançar, fez-me ficar preso à tua juventude e guardá-la para mim, nesse momento único.

Beijámo-nos sem parar. Os lábios sabem a sal. - “Vou-te escrever todos os dias”.

Os sacos pesam como chumbo, ou se calhar são os meus braços que os não aguentam. A despedida é mais violenta que eu alguma vez imaginei.

- “Não chores. Não quero guardar de ti esta ultima imagem”.

- “Todos os dias quero receber carta tua e eu todos os dias te respondo. Prometes?

- “Prometo” - respondo, não conseguindo afastar-me daquele abraço.

Fica à porta, parece mais pequena. Está frio, mas não parece dar por ele. Terei esta imagem dela no combóio, nas árvores, nos rios, nas nuvens e nos momentos de solidão.

Desejarei tê-la comigo ao deitar e ao acordar. A saudade vai-me perseguir cada dia e cada hora até ao intolerável.

O navio já está à espera no Cais. O Tejo está cinzento e um manto de neblina paira sobre ele. A cidade dorme.

Não avisei do dia do embarque. Não seria capaz de suportar outra despedida.

Entro para o barco, estou cheio de frio, não têm conta os cigarros que acendi. Olho para o Cais. Há muitos familiares dos meus camaradas. Foram mais corajosos do que eu…

O barco parece estar inclinado, pois todos nos agrupamos do lado do Cais. Ouvem-se as sirenes e aqueles cabos que ainda nos ligavam a terra já estão soltos. Os gritos e os assobios dos meus camaradas enganam a angústia que todos sentem.

Muitos dos pais vieram a Lisboa pela primeira vez. Uma ocasião para ser recordada pela tristeza.

Vejo o teu rosto em todas as jovens que se despedem com lenços a acenar. 
Também eu aceno, despeço-me de ti em todas elas.

- “Adeus, até ao meu regresso, meu amor”.
Juvenal Amado

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Juvenal só agora acedi ao texto.

Num comentário breve, tanto mais porque tardio, sempre te digo que essa ideia de numerar os escritos pareceu boa ideia. Não me ocorreu, na altura e agora .... já é tarde!

Depois parece-me ler uma história, mais ou menos ficcionada, sobre as despedidas, o amor, o amor nas despedidas.

Quanto ao clamor que se elevava de modo ensurdecedor quando as amarras se soltavam, isso testemunhei eu, não por modo direto, já que quando me "tocou" a mim, por ter sido em rendição individual e com transporte num cargueiro, foi muito reservado pois passageiros militares eram só 6 e o barco até estava ancorado, ou fundeado, no meio do Tejo mas muito antes de mim, aí nos anos 67, 68 e também em 69, algumas vezes, muitas vezes, "assisti" a esses gritos de desespero, a esse clamor num crescendo de tocar o coração, do Miradouro de Santa Catarina, manhã cedo, ainda antes da 8 da manhã.
Nessas ocasiões dizia para comigo que eu não seria participante de tão sinistro espetáculo, fosse lá por que razão fosse e, na verdade, não fui mesmo.

Hélder Sousa


Juvenal Amado disse...

Caro Hélder também me poupem e aos meus desse momento ao não dizer a ninguém quando embarquei. Era assim de tão acostumada estava sociais que só os directos actores sentiam aquele arrepio. Um abraço

Juvenal Amado disse...

Está merda resolve escrever por nós e depois ficam aqui e ali palavras nexo