sexta-feira, 31 de dezembro de 2021
quarta-feira, 29 de dezembro de 2021
P1325: UMA ENCOMENDA BEM APRECIADA
Mais uma história do Juvenal Amado, publicada em Março de 2013 no Blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" e agora recuperada, com a devida vénia ao autor e à Tabanca Grande.
AQUELAS POSTAS DE BACALHAU ERAM OURO!
O Caramba tinha recebido da terra uma encomenda. Enganaram-se os que pensaram que era uma coisa especial, que era o tesouro gastronómico alentejano. Na verdade a encomenda resumia-se a umas quantas postas de bacalhau salgado e seco, como era tradição cá na terra, em vez do liofilizado que recebíamos lá.
Aquilo para o Caramba era ouro puro e tratou de o guardar com mil cuidados. Começou
logo a magicar como o iria fazer, sim porque aquilo não era um manjar qualquer,
tinha que ter honras de iguaria fina.
Por mim achava que
umas postas de bacalhau não mereciam tanta deferência, mas o Caramba era um
homem que gostava das coisas da terra, que cultivava a sua ruralidade e que
fazia questão de não esconder as suas origens. Contava ele que ainda moço ia
com o pai para o negócio da compra e venda de fruta, com um naco de pão, umas
azeitonas britadas, um dente de alho e uma posta de bacalhau demolhada, que
depois passava pelas brasas feitas num intervalo do seu labor.
Eu, oriundo de
operariado urbano que nem quintal tinha, apreciava quando ele falava da sopa de
beldroegas, do licor de poejo, dos coentros, do gaspacho, as caldeiradas de
peixe da barragem, da sopa de cação, enfim, coisas que eu não conhecia mas que
quando regressei tive oportunidade de saborear nas inúmeras vezes que com ele
privei.
Ele chegava a trazer
do Alentejo as ervas aromáticas e mais o necessário para fazermos os petiscos
em minha casa na Boavista de Alcobaça, para onde eu fui viver depois de casar.
Visitava-me então amiúde quando vinha carregar fruta da região, que depois
transportava para os mercados do baixo Alentejo e Algarve.
![]() |
Porta de Armas de Galomaro |
Mas voltemos ao “fiel amigo” que o pai lhe tinha mandado.
O destino do manjar
foi uma pun..ta de bacalhau que ele preparou dentro de uma das terrinas de aço
inox quem eram usadas no refeitório. Era o que se podia chamar uma grande
tachada.
Nessa noite a partir
das oito horas da noite, ele, eu e o Aljustrel estávamos de reforço à porta de
armas no primeiro de cinco, que tínhamos apanhado por castigo - e foi mesmo ali
que fizemos as honras ao dito.
Está claro que não
comemos sozinhos; alguns camaradas que regressavam do Regala bem como um ou
dois furriéis, a troco de um rodada de cerveja, também se associaram na
terrina. Mais tarde até o Santos, que estava preso, ajudou a acabar com ela e
de caminho ficou de reforço connosco até de manhã.
Na sua qualidade de
preso, todo dia enfiando num pequeno cubículo no abrigo STM, onde mal cabia uma
pequena mesa e dois beliches, ao Santos não lhe custou nada ficar de reforço
por nós, que bem bebidos não nos aguentávamos com os olhos abertos. Quando
começou a raiar o dia chamou-nos e foi-se enfiar na sua cela, onde se preparou
para apanhar mais um dia naquilo que poderia chamar-se “frigideira”, tal era o
calor dentro daquelas quatro paredes.
Por esperteza o Santos era soldado básico. Natural de Grijó, passava o dia às ordens do tenente Raposo, nem arma tinha distribuída. Não me lembro do que ele fez mas sei que levou uma porrada com prisão agravada pelo Comando-Chefe, passando assim duas vezes pelo encarceramento. Está claro que quem estava de serviço à porta de armas à noite lhe abria a porta para ele vir para o fresco, e por vezes, quando era levado à casa de banho, passava pela cantina para beber uma bem fresca. Tudo isto nas barbas do nosso comandante e mais oficiais do quadro, de onde podia haver problemas. Dos milicianos nós não tínhamos medo neste caso.
Fica aqui mais um apontamento onde as figuras centrais foram o nosso camarada João Caramba e o Santos dois amigos que já nos deixaram.
Voltando à figura do
Caramba, uma das minhas passagens por sua casa, estava ele de convalescença de
uma intervenção cirúrgica e por isso já com muitos dos problemas que a partir de
certa altura o foram afligindo. Brincamos com a velhice que se ia apoderando de
nós e à minha pergunta de como estava, respondeu-me, com um ar maroto,
apontando para a televisão onde se passava uma cena de amor entre uma bonita
mulher e um homem, assim com alguma filosofia e fino humor:
- “Ora, vamos indo não
fazendo nada e para aqui estamos vendo o que outros estão fazendo…”
Dito isto, fez com a boca um trejeito trocista para que não houvesse dúvidas ao
que se estava a referir.
Juvenal Amado
sexta-feira, 24 de dezembro de 2021
quarta-feira, 22 de dezembro de 2021
P1323: CONTO DE NATAL 2021
OS PÃES E OS PEIXES
Ali estava na sua sala, sentado, completamente só na noite de Natal, pois os filhos estavam longe e desinteressados da sua vida, a mulher já tinha falecido e a vida madrasta tinha-o deixado apenas nos níveis de sobrevivência, sendo aquela casa o único bem que ainda possuía, não sabia por quanto tempo.
Levantou-se e foi à cozinha ver o que haveria para comer na Ceia de Natal. Riu-se interiormente ao pensar em Ceia de Natal, ele que não tinha nada, ter uma qualquer refeição que se assemelhasse sequer a uma ceia, quanto mais a uma Ceia de Natal!
Abriu a caixa do pão e viu que tinha dois pãezitos (já um
pouco duros) e numa caixa no frigorifico vazio, um carapau frito que já nem
sabia de quando era.
Riu-se novamente, mas agora ruidosamente e disse alto, sabendo que ninguém o ouviria: Agora o que me fazia falta era Jesus Cristo para abençoar estes pães e este peixe e, assim, com certeza não faltaria abundância para uma verdadeira Ceia de Natal.
Pegou nos pães e no peixe, num copo de água e foi sentar-se na sala para comer então a sua paupérrima Ceia de Natal.
Apesar da escassez e de tudo o que estava a passar, a tristeza profunda que lhe causava esta Natal sozinho e sem nada, benzeu-se e agradeceu a Deus pelo pouco que tinha porque, apesar de tudo, haveria outros que nem isso teriam com certeza.
Pegou num pão, partiu-o e, quando se preparava para o começar a comer, bateram à porta.
Pôs o pão de lado, levantou-se e foi abrir a porta.
Era um casal seu vizinho com uma caixa grande nas mãos e que lhe disseram: Ó vizinho, sabemos que está sozinho e com dificuldades. Nós também estamos sozinhos, mas graças a Deus ainda temos que nos chegue e assim lembramo-nos de nos fazermos convidados para passar o Natal em sua casa, pois sabíamos que se o convidássemos o vizinho não iria a nossa casa. Deixa-nos entrar?
Embora envergonhado, abriu a porta e deixou-os entrar dizendo: Mas eu não tenho nada para comer! Tenho apenas uns pãezitos e um peixe!
Sem palavras, com a voz embargada, agradeceu e sentaram-se à mesa.
Mas, mais uma vez, bateram à porta e ele lá se levantou para ir abrir.
Desta vez era um casal bem mais jovem, com o seu filho ainda criança, seus vizinhos também, e que lhe disseram: Sabíamos que estava sozinho, que se o convidássemos para nossa casa não iria, por isso viemos fazer-lhe companhia nesta noite de Natal. Espero que não leve a mal e nos deixe entrar.
Bem, pensou ele, se já cá estão uns porque não deixar entrar estes também.
Foram entrando e entregando umas caixas dizendo que eram
bolos para adoçar a noite.
E, novamente, lá se sentaram todos à mesa. Ele, já bem mais disposto, perguntou alto se mais alguém bateria à porta.
Ainda não tinha acabado de falar e novamente tocam à
porta.
Desta vez era um vizinho, só como ele, mas que vivia bem, e lhe disse: Pensei para mim que estando sozinho e o vizinho também, faria mais sentido vir bater à sua porta, fazer-me convidado e assim fazermos companhia um ao outro. Trago aqui umas garrafas de vinho para acompanhar o que houver para comer.
Espantado, admirado, deixou-o entrar e finalmente sentaram-se à mesa, que agora se apresentava bem guarnecida com o peru e os seus acompanhamentos, diversos bolos e vinho que chegava à vontade para todos.
De repente lembrou-se do que tinha dito alto na cozinha quando estava sozinho, de que o que precisava era de Jesus Cristo para abençoar a comida e assim haver abundância na sua mesa.
Soltou uma gargalhada e contou a todos os outros o que
tinha acontecido, o que tinha dito e como via ali a multiplicação dos “pães e
dos peixes” e também dos amigos.
Riram-se todos com alegria, rezaram um Pai Nosso em acção de graças e a criança disse toda contente: Hoje é mesmo Natal!!! O Menino Jesus está mesmo aqui connosco!!!
Monte Real, 22 de Dezembro de 2021
Joaquim Mexia Alves
segunda-feira, 20 de dezembro de 2021
P1322: UM PIRA AGUERRIDO
25 DE DEZEMBRO DE 1973
Quinze minutos depois já estávamos a sobrevoar a zona. Tinham sido atacados, dos lados da fronteira, com morteiro 120mm.
De acordo com a descrição dos militares do Aquartelamento, as granadas tinham caído longe do arame mas sempre em aproximação, como se alguém estivesse a tentar regular o tiro. À nossa chegada tinham-se calado.
O período de alerta quase a terminar, já me estava a ver de regresso à Yamaha e ao Largo do Liceu, o altifalante do Grupo a transmitir um novo aviso: - “Alerta aos Fiat”.
Outra vez Gadamael. Nova corrida, os mecânicos a apontarem-me uma outra vez o 5437, o avião de alerta, uma outra vez abastecido com os tip-tanks e foguetes. Fiz-lhes sinal para uns outros aviões, uma parelha que estava estacionada ali mesmo ao lado, cada avião com duas bombas de 750 libras, ainda nos cavaletes, mas prontas a serem instaladas. Aqueles mecânicos eram super eficientes, em quinze minutos o armamento foi devidamente acoplado aos aviões e a parelha ficou pronta para voo.
Continuando, as bombas de 750 libras eram bem potentes. Ainda a recuperar do passe e sentíamo-las a explodir, o avião até estremecia. Umas outras características, eram bem fuseladas e, ao rebentarem, faziam um enorme cogumelo de pó e detritos, talvez uns vinte metros de altura.
Bombardeamento executado. Ao verificarmos a área para ver se havia alguma reacção de Strelas, descobrimos algo de estranho. No meio de todo aquele verde da floresta havia três rebentamentos castanhos de uns quinze a vinte metros de envergadura e um outro, enorme, uma densa fumarada escura que, no mínimo, deveria ter mais de cinquenta metros de altura.
Algo devia ter explodido lá em baixo, o capitão periquito acabara de fazer o seu primeiro “alvo”.
Regressámos. O voo tinha durado apenas uma meia hora. Como Chefe da Parelha lá tive de ir fazer o respectivo relatório.
Poderia ter escrito três Pings e um Pong, ou, mais de acordo com a sequência da ocorrência, Ping, Ping, PONG, Ping. Não iam perceber. Optei pelas palavras habituais, “Gadamael, junto à fronteira, quatro bombas de 750 lbs, resultados desconhecidos”.
A noite a chegar, o período do Alerta terminado, fomos à nossa vida.
Só semanas mais tarde e através de um relatório da PIDE viemos a saber o resultado daquele grande rebentamento. Uma das bombas fizera explodir as munições que o PAIGC tinha escondido na floresta, para, à noite, irem despejar sobre o Aquartelamento. Pelo menos nessa noite os de Gadamael devem ter dormido descansados.
domingo, 19 de dezembro de 2021
P1321: DESPEDINDO-ME DE UM GRANDE AMIGO
ADEUS E ATÉ JÁ, JAIME!
As histórias com o Jaime Brandão são inúmeras desde garotos, passando pela Guiné, pela dita revolução e até aos dias de hoje.
Por causa da nossa amizade passei fins de tarde quase contínuos na BA5, mormente na Esquadra dos Falcões, e por isso mesmo me foi concedido algo único na minha vida: um voo de A7.
Claro que, embora houvesse outros “candidatos” amigos que me queriam levar, não poderia deixar de ser o Jaime a dar-me esse raro prazer, quase impossível a civis.
Foi um dia memorável.
Tal como o dia em que, envolvido na primeira Operação Militar na Guiné, no segundo mês da minha chegada, com o camuflado ainda a “cheirar a goma”, desembarco no quartel de Portogole e quando estou a subir a rampa para as instalações vejo o Jaime vir direito a mim a sorrir e abraçando-me com toda força.
Perguntei-lhe
como era possível ao que ele me respondeu a sorrir que sabia que eu estava
envolvido naquela Operação e que ia desembarcar em Portogole para passar a
noite e como vinha de regresso a Bissau, declarou que tinha a porta aberta do
DO27 e que tinha de aterrar em Portogole.
As histórias são inúmeras, (de dia ou de noite), e todas elas são memórias fantásticas que me trazem agora lágrimas aos olhos
O Jaime era um homem franco, honesto, sério, que não pedia licença para dizer o que pensava e sentia, mesmo que isso lhe acarretasse incompreensões ou mesmo problemas.
Amigo do seu amigo, levava a amizade muito a sério, tão a sério que não se coibia de me dizer algo que eu fizesse mal, como eu lhe dizia também a ele.
É assim
a amizade verdadeira!
Mas tinha também um humor muito especial e vivemos momentos hilariantes ao longo de todo este tempo que Deus nos deu de amizade verdadeira e vivida.
Muitas vezes as nossas conversas eram quase um monólogo tal a identidade de pensamento e opinião que tínhamos os dois.
Em bom
e antigo português era quase um: “se um diz mata o outro diz esfola”!
Espero, (fazendo humor), que no Céu haja cerveja, porque ele tem que ter uma esplanada onde a beber esperando por mim e por muitos mais que nos faziam companhia.
Há homens que nunca fizeram nada por Portugal e são recordados como se o tivessem feito.
O Jaime
foi voluntário para a Força Aérea, serviu o seu país na Guiné e em Portugal,
serviu o seu país na sua profissão como civil, lutou por um país melhor do que
o “politicamente correcto”, e ninguém, com certeza desta gente que nos governa
terá uma palavra para ele, o que ele, julgo eu, até agradece.
Envolvo a sua família, mulher, filhas, netos, irmãs e irmão no meu estreito e muito amigo abraço, sem palavras que as não tenho para dizer.
Estou profundamente triste, embora acredite que aos homens bons como o Jaime, Deus tem sempre junto de Si, mas isso ainda não mitiga a saudade imensa que já sinto em mim.
Como dizemos em Monte Real, pelo menos no tempo em que eramos garotos, quando as pessoas se encontram: Adeus!
Eu digo-te, Jaime meu querido amigo, adeus e até já!
Marinha Grande, 18 de Dezembro de 2021
Joaquim Mexia Alves
segunda-feira, 13 de dezembro de 2021
P1320: O LAMENTO POR UMA PERDA
Recebemos do nosso camarigo José Belo este texto sobre um poema e música que ainda hoje, passados mais de 200 anos sobre a sua criação, continua a ser utilizado em cerimónias oficiais.
Refere-nos ele:
Muitas das tradições
“de base” da cultura germânica são desconhecidas em Portugal.
Nas nossas idades os
Camaradas começaram a desaparecer em ritmo cada vez mais acelerado, daí
este texto.. .”Eu tive um Camarada“.
EU TIVE UM CAMARADA…
Texto composto em 1809 pelo poeta alemão Ludwig Uhland e desde aí usado, até aos nossos dias, nas cerimónias fúnebres das Forças Armadas Alemãs e Austríacas.
Funerais de figuras representativas militares ou de simples soldados mortos
em combate.
Também usado nos funerais de políticos com altos cargos de algum modo
ligados às Forças Armadas,como Presidente da República, Chefes do Governo ou
ministros das Forças Armadas.
Como curiosidade, para além do Hino Nacional, a guarda de honra “apresenta
armas” quando esta música é tocada.
*Ich hatte einen kameraden*
Tive um camarada
Melhor não se poderia encontrar.
O tambor tocou para a batalha
Ele caminhou a meu lado
Com o mesmo passo
Uma bala chegou voando
Era a minha ou a tua vez?
Ele foi abatido e caiu aos meus pés
Como se fora parte de mim
Ergue para mim a mão
Não a posso segurar
Tenho que recarregar a arma
Que tenhas paz eterna meu bom camarada
Meu bom camarada!
(No YouTube existem vários vídeos com o
poema e música.
Ver…… ICH HATTE EINEN KAMERADEN
E na Wikipedia podem pesquisar em
https://en.wikipedia.org/wiki/Ich_hatt%27_einen_Kameraden)
Um abraço do
José Belo
segunda-feira, 6 de dezembro de 2021
P1319: COM CARACTERÍSTICAS MUITO PARTICULARES
A MINHA VIAGEM PARA A GUINÉ
NO N/M “AMBRIZETE”
O nosso Amigo e Editor da “Karas”, da “Tabanca do Centro”, Miguel Pessoa, pediu-me colaboração com um texto para publicação. Entretanto, na procura de inspiração e de recordações, apareceu e li no Blogue “Luís Graça & Camaradas da Guiné” um conjunto de artigos e comentários sobre os navios que foram utilizados no transporte de tropas e de material e das memórias que isso concitavam. A acrescentar, também o Amigo e Editor da “Tabanca Grande”, Luís Graça, me desafiou a relembrar a minha viagem com as suas particularidades.
Deste
modo, juntando “as pontas” e as vontades, aqui me prontifico a fazer isso,
tanto mais que as datas relacionadas não andam longe. Também devo referir que
alguns aspetos da viagem, principalmente das circunstâncias anteriores à mesma,
já foram referidos num dos primeiros artigos que escrevi para o Blogue e a que
dei o título de “O último adeus”.
Começando pelo princípio devo dizer que a minha viagem, em rendição individual, estava marcada para a manhã do dia 26 de Outubro de 1970 (e ainda é a que figura na caderneta militar). Ora bem, como se podem lembrar, nessa madrugada ocorreu o chamado atentado ao “Cunene” e nessa referida manhã, no Cais da Rocha, as dificuldades para os passageiros que deveriam tomar o transporte atribuído eram muitas. Não sei se por causa disso, não me recordo se foi ou não mencionado, a verdade é que o referido transporte, o N/M “Ambrizete” estava ancorado no meio do Tejo e para lá chegar isso fazia-se nas lanchas da “Sociedade Geral” que serviam de comunicação.
O “Ambrizete” era um cargueiro que dispunha de 6 cabinas duplas, pelo que levava 12 passageiros, sendo 6 militares das Transmissões (3 Furriéis TSF e 3 TPF), ocupando no conjunto 3 cabinas; uma mãe, que a memória me sussurra ser cabo-verdiana, com 3 filhos ocupando 2 cabinas; e a restante era ocupada por dois civis, um homem já maduro que ia de contrato para ir trabalhar para a Tecnil e um outro, mecânico de automóveis, que não sei como, mas arranjou maneira de ir para a Guiné para fugir à perseguição que a sua mulher e o padeiro lá da terra lhe moviam a contas de uma alegada infidelidade conjugal entre ele e a mulher do tal padeiro, tendo a bordo apenas a roupa que tinha vestida, pois parece que não teve tempo para mais....
Na hora da despedida no Cais, o pessoal da lancha comentou baixinho para nós militares, que “não era preciso tanta despedida pois não íamos partir hoje”.
Ao
chegar ao barco fomos convidados a escolher as cabinas e fomos informados que,
devido a vários problemas, como por exemplo uma má distribuição da carga que
fazia o barco adornar (inclinar) cerca de 13 graus a bombordo (à esquerda,
tomando como referência a proa do navio) e também com uma avaria num dos
frigoríficos. Não sei a que se devia a “má distribuição da carga”, se por o barco
ter eventualmente largado o cais à pressa, devido à tal ação de sabotagem, para
se colocar no meio do rio, ou por terem realmente depositado no porão vários
materiais não tendo em conta os seus diferentes pesos, sendo que a carga era de
natureza diversa, desde géneros alimentares (alguns chegaram lá à Guiné já em
menores condições por não se ter conseguido colocar o frigorífico em boas condições),
até bombas para avião, segundo disseram.
Pouco
tempo decorrido da chegada a bordo, o cargueiro apontou à foz do Tejo, fazendo
crer a quem estava no Cais que era a partida, mas na realidade o que se fez foi
andar o resto da manhã e boa parte da tarde a “fazer agulhas” ao largo da baía
de Cascais, com vista a tentar melhorar a distribuição da carga. Ao fim da
tarde regressou-se ao ponto de partida e como era 6ª feira o Comandante do
navio disse que quem quisesse podia ficar a bordo mas quem quisesse sair e
passar o fim-de-semana em casa o podia fazer, pois durante o sábado e domingo
não ia haver saída, mas com a condição de se voltar na 2ª da manhã.
Aqui
voltou a haver aspetos que normalmente não aconteceram com a maioria dos que
embarcaram nos diversos navios e que foi, por exemplo, o transporte gratuito
entre as margens do Tejo nas lanchas que levavam pessoal para Cacilhas e
ligavam a Lisboa, facilidades que utilizei.
Os
meus outros dois camaradas TSF foram a Setúbal, a casa do Nelson Batalha, pois
por coincidência nesse fim de semana o F.C.Porto, clube da simpatia do Manuel
Martinho, jogava lá com o Vitória local. Voltaram na 2ª feira, conforme
aprazado e já não saíram, a não ser umas escapadas rápidas a Cacilhas nas tais
lanchas. Eu aproveitei para ir a Vila Franca surpreender e assustar a minha mãe
e quando na 2ª feira 29 voltei, disseram-me nos escritórios da SG que “podia
voltar para casa, pois os trabalhos estavam demorados e o melhor era ir
telefonando para saber quando seria”, coisa que fiz então diariamente até ao
dia 3 de Novembro quando recebi a indicação de que “era hoje à noite, e tinha
que apanhar, o mais tardar, a lancha das 22:00”.
Durante esses dias do intervalo de tempo fiz várias coisas, sendo que no tal dia 3 de Novembro fui ver um filme no “Tivoli”, com Sophia Loren e Marcello Mastroianni, com o título original em italiano “I girasoli” mas que foi intitulado em Portugal de “O Último Adeus” e que tratava da busca de uma jovem italiana pelo seu marido dado como desaparecido, quando integrado num batalhão italiano que participava na invasão da Rússia pelas tropas alemãs na 2ª Grande Guerra Mundial. Em dada altura do filme vê-se o protagonista, o Marcello Mastroianni, caminhando num campo gelado e encontra alguns corpos congelados de camaradas seus e quando tenta pegar num deles por um braço o mesmo parte-se como um pedaço de gelo. Nesta altura o filme interrompe-se para o intervalo e como já eram cerca das 17:00 horas, hora mais ou menos combinada com os escritórios da SG para o contacto diário da tarde, precipitei-me para o telefone do “foyer” e lá fiz a chamada, referindo com as cautelas necessárias para diminuir a identificação, mas sendo claro que se tratava “do militar que queria saber se a partida para a Guiné estava ou não prevista para hoje”. De lá disseram que sim, como referi no final do parágrafo anterior.
Não
me apercebi que se tinha formado uma fila de pessoas que também queriam
telefonar e quando me voltei deparei com vários olhares de comiseração e de
quem estava a “olhar para um morto”, pois por esses tempos a palavra “Guiné”
era sinónimo de complicações….
Acabado
o cinema fui jantar com a então minha namorada, num pequeno restaurante próximo
de Santa Apolónia, que ainda lá está e que tenho ideia de se chamar “O Farol”, a
seguir ela foi apanhar o comboio e eu o transporte para o Cais, onde a lancha me
levou ao “Ambrizete”; houve mudança de turno e lá seguiu rumo à Guiné, agora
com “apenas” 7 graus de inclinação.
Os
meus companheiros de viagem já estavam ambientados, já estavam no barco há
muito tempo, mas eu tinha acabado de chegar, vinha de uma despedida, vinha de
um filme dramático e não estava com muita disponibilidade para grandes
brincadeiras, grandes alegrias e por isso isolei-me, encostado à amurada, a olhar
de modo a absorver tudo o que via para poder depois fechar os olhos e rever, e pensar
no que o “destino” me poderia reservar.
Nisto,
sou surpreendido pela presença do tal homem da Tecnil que me vem pedir para fazer
“uma oração de despedida e de pedido de bom acompanhamento para a viagem”, pois
os “sacaninhas” dos meus camaradas TSF, que se encontravam no deck superior a
gozar a cena, lhe tinham dito que eu era muito religioso e até tinha estado num
Seminário…
Como
me apercebi da tramoia não quis desiludir, nem tratar mal, o personagem, e lá o
deixei contente e satisfeito, com a minha homilia, apesar de por esses tempos
me encontrar militantemente afastado da Igreja.
Durante
a viagem as refeições normais (geralmente muito boas) mereciam a companhia do
Sr. Comandante do navio mas dada a falta de higiene do tal mecânico, que não
tinha roupa para mudas, ele comentou haver um cheiro desagradável, o que fez
com que se tivesse que “tomar medidas” e explorando a natural curiosidade do “nosso
mecânico” houve quem o levasse a ver o “veio da hélice”, havendo então
elementos da tripulação que aproveitaram para lhe proporcionar um banho de
agulheta e depois, enquanto a roupa era lavada e posta a secar, houve que lhe
emprestar alguma roupa interior, embora isso o obrigasse a ter as refeições no
camarote.
A viagem em si mesma, ressalvando a tal inclinação a que nos habituámos depressa, correu bem. Tenho ideia que se navegou a 13 nós (não sei confirmar), que passámos por entre dois grupos das Ilhas Canárias, que aconteceu por várias vezes sermos presenteados com a companhia exibicionista de peixes-voadores e que durante a noite de 8 para 9 de Novembro ultrapassámos o “Carvalho Araújo” que seguia pachorrento com a sua “carga humana”, sendo que por isso chegámos a Bissau na manhã cedo do dia 9.
Ainda
durante a viagem, por força do bom relacionamento e interação que se foi
fazendo com a tripulação, numa das primeiras manhãs, aquando do que seria o
pequeno almoço, perguntaram se não queríamos um “mata-bicho”. Pensando que se
trataria de aguardente ou coisa assim, recusámos, mas lá nos explicaram que era
uma refeição mais forte para o pessoal que saía de turno e que à hora do almoço
estaria a descansar. Então venha de lá esse “mata-bicho”! Bem… recordo que o
primeiro deles foi um “arroz à valenciana” bastante bom, o qual antecedeu então
o café e o pão com manteiga habituais.
Pois,
sei que nesses aspetos fui bastante beneficiado e protegido pelos “deuses”, com
uma viagem quase particular, com uma cabina sem luxos mas funcional e apenas
para duas pessoas, com refeições condignas, com a amável companhia do
Comandante e suas palavras de conforto, nada comparado com os relatos das
miseráveis condições em que viajaram inúmeros militares, principalmente os que
tiveram a desdita de ocupar os porões “adaptados” dos navios, mas tendo sido
essa a minha realidade, é essa que relato.
A
aproximação à Guiné, na penumbra da pré-alvorada, com a visão da vegetação mal
definida, o bafo quente que de lá vinha, os sons abafados que, entretanto,
também chegavam, ajudavam a criar uma aura de mistério e de apreensão. Depois o
barco ficou ancorado ao largo (mais uma vez) deixando vago o cais acostável
para o “Carvalho Araújo”, sendo que a passagem para terra se fez por meio
daquelas espécies de pirogas, não sem que o Sr. Comandante se despedisse de
todos e de cada um com simpatia e de modo a que o “Ambrizete” ficasse para
sempre na memória.
Hélder
Sousa
Fur.
Mil. Transmissões TSF
terça-feira, 23 de novembro de 2021
P1318: FIGURA DE DESTAQUE NOS U.S.A. MAS NÃO EM PORTUGAL...
JOÃO RODRIGUES CABRILLO
Nos Estados Unidos da América, e mais propriamente ao longo de toda a costa do Pacífico, o navegador Cabrillo é figura histórica de destaque.
A sua nacionalidade é discutida entre português e espanhol. A coisa
complica-se pelo facto de todas as descobertas por ele efectuadas ao longo de
toda a costa americana do Pacífico (não se sabe bem até que ponto norte da
mesma chegou antes de morrer) terem sido feitas ao serviço de Castela.
Na história norte americana ele está em paralelo com os grandes conquistadores como Cortez (Também andou pela américa central).
Existem estátuas e padrões em memória do mesmo em diversas cidades
costeiras da Califórnia.
O nome de família "Cabrillo" existe nas Beiras, tanto Beira
Alta como Baixa, existindo mesmo uma povoação que se diz de origem desta
família.
Estranhamente em Portugal o seu nome não surge junto dos "descobridores" mais conhecidos.
Exemplos inumeráveis: Cabrillo Beach/Los Angeles; Cabrillo Museu e
Aquário/San Pedro California;Caprillio Liceu/Long Beach
Cal;Cabrillo auto estrada/California; Cabrillo Monumento /San Diego
Cal.+Réplica fiel da Caravela San Salvador usada por Caprillo localizada
no Museu Marítimo de San Diego/Cal.
João Rodrigues Cabrillo, ou Juan Rodriguez Cabrillo para os espanhóis, foi um soldado e explorador português ao serviço de Espanha. É famoso nos Estados Unidos por ter sido o primeiro europeu a explorar a costa norte-americana do Pacífico em 1542-1543.
Nacionalidade disputada, afirmando os espanhóis que sendo ele de família portuguesa terá no entanto nascido em Espanha (Palma Del Rio a 13 de Março de 1499) e ali sido educado.
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Monumento a João Cabrillo em Montalegre |
Desde jovem se tornou um navegador de renome navegando para as Índias Ocidentais fazendo parte de uma grande armada de 30 navios e 2.500 soldados que colonizou a ilha de Cuba.
Em 1519 foi enviado para o México com a missão de aprisionar o então revoltado Herman Cortez que tinha desobedecido a ordens reais aquando da conquista dos Aztecas.
A missão foi mal sucedida pois Cabrillo juntou-se a Cortez no assalto e
saque da capital azteca Tenochtitlán (Hoje Mexico City).
Depois da derrota dos Aztecas juntou-se á expedição militar de
Pedro Alvaredo na área geográfica dos actuais México do Sul, Guatemala e El
Salvador.
Em 1530 Cabrillo tornou-se extremamente rico com a exploração de minas de ouro na Guatemala. A partir de um porto na costa guatemalteca Cabrillo controlava as exportações e importações para Espanha, não só a partir da Guatemala como também de outras regiões do Novo Mundo.
Aplicou pesados impostos às populações locais e usou muitos dos habitantes masculinos como mineiros escravos nas suas minas de ouro. Ao mesmo tempo entregava os elementos femininos das populações como escravas dos soldados e marinheiros, quebrando deste modo, e conscientemente, todo o tecido social e familiar da vasta região.
Neste período terá tido uma companheira indígena da qual teve dois filhos.
Em 1532,já enormemente rico e famoso, voltou a Espanha onde se casou em Sevilha com Beatriz Sanchez de Ortega. Ela acompanhou-o de volta à Guatemala tendo o casal tido dois filhos.
Cabrillo foi então contratado pelo então Vice-Rei da Nova Espanha, António de Mendoza, para explorar a costa americana do Pacífico, na esperança de serem encontradas mais cidades ricas e, ao mesmo tempo, descobrir uma então mítica ligação do Pacífico ao Atlântico.
Recebeu também instruções para tentar encontrar-se com Francisco Vasquez de Coronado, enviado por via terrestre desde o Atlântico em direcção ao Pacífico.
Cabrillo, inteligentemente, construiu com capital próprio a nau almirante da expedição navio San Salvador (Hoje reconstruído à escala exacta, assim como interiormente decorado, atraindo milhares de visitantes anuais).
Com o seu investimento de capital na construção do maior navio da expedição,
tornado sua propriedade pessoal, colocou-se em óptima posição para beneficiar
de possíveis ligações comerciais a serem estabelecidas, ou tesouros encontrados
pela expedição.
A 24 de Junho de 1540 partiu do actual porto de Manzanilho/México com o seu navio almirante, acompanhado de dois outros, o Vitória e o San Miguel.
Quatro dias depois encontraram uma baía que forma um excelente porto de abrigo,
actualmente denominada San Diego Bay.
Exploraram seguidamente as ilhas próximas da costa da Califórnia, Santa
Cruz, Catalina e San Clemente.
Foram encontradas inúmeras pequenas localidades povoadas ao longo da costa,
todas elas sem quaisquer riquezas (Curiosamente, os espanhóis só voltaram a
estas áreas em 1769 (!), fazendo-se então acompanhar de soldados e missionários).
A exploração continuou rumo ao Norte tendo atingido um local que denominaram de Cabo de Pinos (actual Point Reyes).
Os fortes temporais do Outono obrigaram-nos a voltar para o Sul da costa
até à Baía de Los Pinos (actual Monterey Bay).
Neste local da costa, e devido aos densos nevoeiros aí normais, não
descobriram a entrada para a Baía da actual cidade de Säo Francisco (San
Francisco Bay). Curiosamente, este erro devido às densas neblinas foi repetido
por numerosos navegadores nos dois séculos seguintes.
A expedição regressou então a S.Miguel onde passou o Inverno. Na véspera de Natal foram atacados por guerreiros indígenas (Tongva). Procurando auxiliar os seus homens Cabrillo escorregou e caiu sobre algumas pedras pontiagudas.
Posteriormente o ferimento veio a criar cangrena, morrendo Cabrillo a 3 de Janeiro de 1543. Julga-se ter sido sepultado na ilha de Catalina.
A expedição voltou a navegar ao longo da costa e rumo ao Norte. Terá, segundo se julga, atingido a costa do actual Estado Norte-americano do Oregon. Regressaram à Natividad em Abril de 1543.
A expedição de Cabrillo não atingiu os objectivos de encontrar ricas cidades costeiras, a mítica passagem entre o Pacífico e o Atlântico, ou o encontro com o explorador terrestre Coronado. Obteve no entanto uma vastíssima área costeira norte-americana a partir do México. Esta área viria a ser efectivamente ocupada e colonizada pela Espanha dois séculos mais tarde.
E... mais um português famoso em muitos locais, menos em Portugal!
Para além da auto-estrada costeira da Califórnia, esta ponte tem o seu nome.