CHEGAR DEPOIS DO
ÚLTIMO…
A
“SPIRIDON”, revista portuguesa dedicada à corrida, referiu, há já uns bons anos
atrás, algumas histórias curiosas de atletas que tinham chegado ao fim das
corridas em que tinham participado em condições com alguma coisa de invulgar. No artigo em causa,
assinado pelo prof. Mário Machado, são referenciados, entre outros, o norte-americano
Thomas Curtis, o etíope Mamo Wolde e o português José Eduardo Oliveira. Este
último é por sinal o candidato ao Guiness - alcobacense desde 4 de abril de 1940
- que foi, nem mais nem menos, o protagonista (principal) da história da “SPIRIDON”,
aqui e agora reproduzida com mais algum pormenor pois há coisas que só quem
passa por elas é capaz de contar.
Em 1977 - já lá vão quarenta e tal anos -
cinco amigos de Alcobaça, entusiastas da corrida a pé, numa altura em que
correr pelas ruas fazia parar a maioria das pessoas e chamar “malucos” aos
corredores, juntaram-se para ir disputar uma prova “Rio Maior - Marmeleira”.
Os
ditos “malucos”, todos eles praticantes recentes da modalidade, resolveram, em
cima da hora e à boa maneira portuguesa, ir até Rio Maior.
Um
domingo, desse distante ano de 1977, bem cedo, saímos de Alcobaça no meu carro
e chegámos ao local da concentração 10 minutos antes do tiro de partida.
Inscrições
de última hora, “dorsais” presos com um alfinete - que a organização era
pobrezinha - e lá fomos para o meio do pelotão, pois já anunciavam a partida. A
precipitação foi tal que nem houve tempo para combinar a táctica...
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A partida |
Cada
qual faria a corrida possível e encontrar-nos-íamos naquele mesmo local para
regressarmos a casa. Disse aos meus amigos que iria fazer apenas uns 8 a 10 km,
pois não tinha “estudos” nem preparação para mais.
Tiro de partida e lá vamos
nós... Foi
tudo tão rápido que pensei imediatamente: “Onde eu me vim meter!”
O
coração batia-me aceleradamente e a fila de corredores alongava-se rapidamente
pelas ruas que davam para a saída de Rio Maior. Apenas com algumas centenas de
metros percorridos ficaram para trás dois corredores. Eram os últimos, por
sinal, ambos de Alcobaça, e já então alvo dos sorrisos dos “mirones” da terra. Curiosamente
um dos atrasados era o Artur Borda, então a fazer a sua primeira corrida de
grande quilometragem e que, anos mais tarde, veio a ser campeão nacional de
maratona. As voltas que o mundo dá...
O
outro atrasado, como já devem ter entendido, era eu próprio… E pouco depois o
Borda foi andando e fiquei isolado e, irremediavelmente, em último. Mal sabia o
que estava para me acontecer daí para a frente...
Respirei
fundo e disse para comigo (pois não dá jeito dizer “para os meus botões” porque
o equipamento não os tinha): “Calma. Não te enerves. Tu é que tens a chave do carro
e não vais ficar em terra.... Daqui a uns quilómetros eles voltam para trás e
eu regresso com eles. Faço metade da prova e tudo bem”.
Quase
a sair de Rio Maior “via-me”, de vez em quando, reflectido nos vidros das
montras e, cada vez que isso acontecia, tentava encolher a barriga. “Mas que
figura! Para que é que eu me fui meter nisto?!...”
E começaram as “bocas” do
povo, do bom povo português sempre pronto a “ajudar” os últimos: -
Óh “velhinho”, não tens vida p’ra isto! Vai mas é p’ra casa! Olha que os outros
já passaram há que tempos!!!
“Acabaram”
as casas e eis-me fora da vila, já estoirado mas ainda a correr, pois
cruzava-me com gente que vinha fazer as compras e não queria “dar parte de
fraco”...
O
“carro-vassoura” já não tem “velocidade” para me acompanhar e o homem do
volante vai-me convidando para subir... O dito carro, que devia ser de apoio,
era uma velha “furgoneta” de ”caixa-aberta”... Olhei para aquilo e pensei: “Estes
tipos são malucos! Suado como estou se subo para cima daquilo o menos que me
acontece é apanhar uma pneumonia.”
-
Vá-se embora que eu cá me hei-de desenrascar...
E
foram e eu corri mais um bocadinho... Finalmente fiquei sozinho e passei a
andar a passo... Estava quase com a respiração normalizada quando pára junto a
mim um “jeep” da GNR. Com ar de gozo o “nosso” cabo convida-me também a
subir...
-
Obrigadinho, mas eu ia já começar a correr...
E
pronto, lá arranquei. Durante 5 minutos consigo aguentar-me a correr e, quando
já me preparava para fazer mais um bocado do percurso a passo, pára à minha
frente uma camioneta de carreira. Abrem a porta e convidam-me a entrar...
-
Obrigado, mas não tenho trocado. Podem seguir...
-
“Oh sorte. Já nem se pode ser o último... descansado!” Muitos risos, muito
gozo, mas lá me deixaram. Cheguei a uma recta compridíssima - pelo menos assim
me pareceu - e dos meus companheiros de corrida, ou melhor, de partida, nada...
Tinha passado meia hora, já ultrapassara o risco dos 5 Km’s e comecei a duvidar
que a corrida onde estava metido fosse de ida-e-volta. Mais uns minutos de
corrida e avistei uma aldeia. Muita gente à porta de uma taberna e, fazendo das
fraquezas forças, encolhi a barriga e aumentei a passada...
Quando
passei pela taberna foi uma “festa” ... Altos gritos, autênticos berros e
insistentes convites para deixar aquela vida de dificuldades: -
Eh pá, vem “buber” um copo c´a malta!
-
Deixa-te disso, pá.
Não
lhes dei troco e tive a sorte de apanhar uma descida para embalar.
-
Grandes bêbados - gritei-lhes, aí passados uns 50 metros...
Começava
a recuperar a moral quando levei o mais rude golpe até então... Sirenes de
batedores da polícia e, de repente, aparece-me, em sentido contrário, uma
corrida de ciclismo. Pelotão compacto e eis-me alvo da maior galhofa da manhã.
Gritos. Acenos de mão... Mas passaram depressa. “Que vida a minha! Mas afinal onde
é que seria a Marmeleira?”
Mais
uma corrida e avisto uma velhinha à beira da estrada. -
Oh minha senhora, onde é que é a Marmeleira?
-
A Marmeleira!? Olhe que a Marmeleira ainda é muito longe...
Bonito
serviço! Mas pensando bem... para esta gente do campo tudo é longe. Talvez seja
exagero! Já corria desde as nove horas - ou, pelo menos, fazia por isso - no
meu relógio eram quase dez horas e da Marmeleira
nem cheiro... Passei pelo risco dos 10 km. E animei um pouco. “Quem chega até
aqui, vai até ao fim!... Não hei-de desistir!”
Mas,
pensando melhor, desistir como? Estava sozinho e
dos meus colegas de corrida nem rasto!
Mais um bocado e chega-se a mim um rapaz
montado numa bicicleta. Olha para mim,
silencioso, e começa a acompanhar-me. Animei um pouco e estava a voltar ao meu
melhor estilo - o “devagar”, pois tenho outro que é o “devagarinho” - quando o
“ciclista” me perguntou muito “despachado”:
-
Você é desta corrida ou d´outra?
“Também
este?”, pensei. Enchi o peito de ar, pois nessa altura já não tinha força para
encolher a barriga e disse ao miúdo:
-
Não, pá, não sou desta corrida. Sou o primeiro da outra. Os outros vêm aí
atrás!...
O
miúdo ficou calado e com cara de não estar nada convencido. Mas como não se
viam corredores nem à frente nem lá atrás... Deixou-me e foi ver se encontrava
os outros... Problema dele e eu lá fui andando... E não é que passado um bocado
avisto uma tabuleta com uma palavra milagrosa: “Marmeleira”.
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Marmeleira |
Saí
da estrada principal e minutos depois passei pelo traço indicativo dos 15 km. Parei
e nem queria acreditar no que os meus olhos viam- faltavam 3 km para a
Marmeleira mas eram sempre a subir. Aparecia finalmente ao longe o casario da
vila da Marmeleira mas a ladeira que faltava percorrer tinha uma inclinação
incrível. Sozinho, desgraçado e exausto reuni as
minhas últimas forças para insultar os organizadores. “Que bandidos - terminar
uma corrida com uma subida daquelas!”
Arranquei
para a terrível subida e mais vergonhas estavam para me acontecer... Começava
finalmente a avistar alguns atletas que tinha visto de relance duas horas
antes, na altura da partida. Vinham a descer a terrível subida que me faltava,
uns de carro, outros a pé, sorridentes por já terem acabado e verem ainda um
“coxo” naquelas dificuldades.
E
eis que avisto uma cara conhecida, de Alcobaça. Recebi finalmente umas palavras
de estímulo e o anúncio de que falta pouco. Estou a chegar ao fim da subida e,
já dentro da Marmeleira, a 18 km de Rio Maior, sinto-me satisfeito e espantado
de ter conseguido chegar até ali. Agora o terreno já é plano e vejo uma
tabuleta que diz “campo de futebol- meta”. Começo a sprintar, entro no campo de
futebol e vejo, ao fundo, dois indivíduos, com braçadeiras da organização, a
retirar o pano da meta...
Corri o mais que pude mas já não cheguei a tempo... Passei
o risco da chegada … já sem o pano da meta!
Protestei,
quase chorei... mas os homens da organização iam-me dizendo com ar de
espanto:
-
Olhe que o último já chegou...
E,
como conclui, no seu artigo da “SPIRIDON” o prof. Mário Machado “o pobre do
Oliveira tinha chegado depois do último!”
E
agora digo eu:
-
Depois de todos estes anos não é tempo de reparar tamanha injustiça?! Oliveira
para o Guiness... já!!!
José Eduardo Oliveira - m.f.f.*
PS-1/
Além de todas as peripécias desse dia guardo ainda uma boa recordação de um
gesto bonito dos meus colegas de corrida alcobacenses: ganharam uma taça na
classificação por equipas e ofereceram-ma. Ainda há poucos dias a vi e dei-lhe
um jeito na prateleira do meu escritório. Vou pôr-lhe uma legenda: “chegar
depois do último não é para todos”.
PS-2/
Assaltou-me agora uma terrível dúvida: “será que me ofereceram a taça por eu –
na altura - ter a chave do carro?!
PS-3/ Por causa das dúvidas
nunca perguntei - nem vou perguntar!
JERO