quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

P1213: ATAQUE AO ARAME FARPADO


HÁ DIAS DE SORTE

Juvenal Amado
Galomaro, Zona Leste da Guiné, 1 de Dezembro de 1972 .

Franzindo o sobrolho por trás dos óculos, o radiotelegrafista José Confraria, à minha frente, acabava de reprovar uma jogada minha na partida de sueca que nos opunha ao Glória e ao Costa, dois Sapadores da nossa Companhia.

Faltavam talvez 15 minutos para as 22 horas, hora do fecho da cantina.

A cantina não é mais que um telheiro em chapa de zinco, com duas paredes, uma onde está o balcão com as arcas frigoríficas a petróleo e a outra em frente, que tapa a vista para as palhotas do povoado de Galomaro. É pois um sítio, que tem uma abertura tipo esplanada, que dá para o arame farpado do lado do campo de futebol e, do outro lado para o Restaurante da Morte Lenta (1).

A partida era, como sempre, muito animada com muitos ralhos da parte dos nossos opositores, que era bem de ver estavam a perder e a caminho de terem que pagar as cervejas correspondentes aos dez traços marcados a lápis, num bocado de papel.

Escusado será dizer que pagar as cervejas era mesmo assim muito menos doloroso que ouvir as piadas de quem ganhou. Quem ganhava eram sempre uns leiteirosos. As desforras ficavam logo ali prometidas.

O som dos geradores que forneciam a sempre precária iluminação ouviam-se sem descanso. Os holofotes iluminavam o Quartel em redor, uns cinquenta metros para além do arame farpado.

O Destacamento que servia de casa aos cento e tal homens que compunham a CCS era um rectângulo que tinha a nascente o campo de futebol, a Norte a pista de terra batida onde podiam aterrar avionetas ou helis e a Sul e a Poente éramos rodeados pela povoação.

Foi pois nessa luz pouco precisa, que o Gasolinas (2) viu um estranho movimento de um rebanho de ovelhas e carneiros que, de forma muito ordeira, se estendiam numa linha paralela ao campo de futebol, partindo do lado direito, onde estava o posto de sentinela à frente da oficina da ferrugem, para a esquerda na direcção da bem visível sala da cantina.

O Lourenço periquito (3) que estava de serviço ao mesmo posto, embora fora da sua hora de sentinela, começou a dizer ao atarantado Gasolinas que eram turras, e que fizesse fogo.

Mas o medo do que o Comandante podia fazer a quem desse tiros sem razão era ainda maior e o nosso camarada recusou.

O Lourenço vai ao nosso abrigo, agarra na G3 e corre para o posto, onde tinha presenciado os tais movimentos suspeitos.

Acabo de bater uma carta e nisto, uma rajada de metralhadora soa agressiva. Fiquei tenso, com o coração aos pulos, podia ser engano e alguém ter disparado sem querer. Mas outra rajada e já estou a correr na direcção do meu abrigo. Entro e está o Caramba com os seus quase dois metros, sentado no beliche a rir e a contar entre as gargalhadas, que tinha sido o periquito a dar os tiros e que agora estava lixado com o Comandante (4): “Logo lhe vai passar a vontade de rir.”

Não me convence, estou a pôr as cartucheiras e a pegar na minha G3, pois a minha experiência de andanças pelas companhias operacionais diz-me que ali há coisa da grossa.

Ouve-se a terceira rajada. Os guerrilheiros após a terceira rajada, sentem que foram mesmo descobertos e é nesse momento, que iniciam o ataque. Neste lapso de tempo ainda se começa a ouvir o tenente Raposo (5) a gritar: - “Quem foi a besta que deu os tir…”

Já não se ouve o resto da frase pois as explosões e o matraquear das automáticas abafam a sua voz.

O barulho é ensurdecedor, olho pela fresta do abrigo que está virada para a pista de aviação, meto a espingarda e disparo uma rajada, e acto contínuo uma bola de fogo vem na minha direcção. O Caramba puxa-me para baixo, o RPG explode a poucos centímetros de onde eu tinha feito os disparos, já não ouço nada, estou meio cego pelos clarões, olho para a porta e o que vejo são autênticas cortinas de tracejantes. É necessário sair para a vala e responder ao fogo do inimigo, não sabemos se já há reacção da nossa parte ou não, aqui está a funcionar o nosso instinto de sobrevivência.

O Dias (6) está à minha frente e quando ele salta para fora eu salto de seguida e mergulho de cabeça na trincheira; corremos agachados e espezinho o Borges cozinheiro, que está só em cuecas no fundo da vala.

O cheiro dos explosivos sufoca-nos, disparamos sem cessar mas sem vermos nenhum alvo, a não ser os clarões dos disparos. Dentro da minha cabeça, parece que alguém bate sem parar tampas de panelas.

Os RPG explodem contra os telhados, abrigos e à falta de encontrarem onde bater, explodem no ar, mandando uma chuva de estilhaços para baixo.

Os apontadores do morteiro 81 mm colocado entre o meu abrigo e a messe dos oficiais, fazem finalmente o primeiro disparo, na atrapalhação penso que não tiraram a cavilha do projéctil, mas tiraram dos outros - a provar isso foi o efeito devastador nas árvores que foram atingidas.
Do outro lado do quartel o maqueiro Russo tinha entrado no abrigo do morteiro 60 mm, disparou a primeira granada. Quando constatou que a mesma tinha ultrapassado o quartel e rebentado na orla da mata, disparou sem parar e talvez tenha sido a reacção dele que tenha posto em fuga o inimigo.

A nossa posição tinha sido atingida pelo menos com cinco impactos directos de RPG, o abrigo da metralhadora MG estava destruído, eles vinham bem informados das nossas defesas e posições.

O som das explosões tinha abrandado, só se ouviam as nossa rajadas, as saídas de morteiro e o som cavo do rebentamento no chão das suas granadas.

Nisto, com os faróis acesos na direcção da mata, avança pela pista de aviação um Jeep com o Comandante aos gritos para que parássemos com os tiros, pois o inimigo já tinha retirado. Felizmente não se tinha enganado.

No silêncio e na escuridão olhei para os meus camaradas que estavam na vala, o Caramba, Dias, Piriquito, Ermesinde, todos pensávamos nos mortos que decerto tínhamos a lamentar.

O que se tinha passado tinha sido de uma tal violência, que não podíamos esperar outra coisa. O Pel.Rec. tinha saído em patrulha nocturna. Como normalmente um pelotão era largado ainda de dia, numa zona a seis ou sete quilómetros do Quartel e depois progredia até um ponto pré determinado onde se emboscava.

Fazia parte da segurança, mas no caso envolveu riscos, pois os guerrilheiros meteram-se entre o quartel e o Pelotão no mato e o batimento de zona, podia ter atingido esses nossos camaradas.

Só pensava no que lhes teria acontecido. Na minha confusa cabeça, fervilhava toda a espécie de cenários de catástrofe. O que teria acontecido aos meus colegas de jogo? Passado o combate não conseguia deixar de tremer.

A pouco e pouco tudo volta ao normal na anormalidade que era a nossa situação. Passaram horas e alguém vem informar, que o Pelotão de patrulha está perto do aquartelamento e que é preciso não os confundirmos com o inimigo e começarmos a disparar sobre eles. Temos os nervos em franja e tudo pode acontecer.

Com o passar das horas fico a saber que afinal não tinha morrido ninguém e nem feridos havia, para além de escoriações motivadas pelas aterragens no chão; havia contudo alguns camaradas atingidos com pequenos estilhaços.

Quando finalmente amanheceu, o cenário era de alguma destruição a nível dos telhados. Havia grandes pedaços de metralha espalhados por todo o lado. O meu abrigo tinha vários buracos de granada mas só uma tinha entrado ao nível do tecto cortando, como se cartão fosse, as barras de ferro que o sustinham.

Mortes, só as galinhas do periquito, pois a capoeira tinha desaparecido por completo.

Hoje, quando nos encontramos nos almoços ou noutras ocasiões, vêm sempre à baila estes ou aqueles episódios sobre a nossa permanência em terras da Guiné, mas nunca me esqueço do puxão que o Caramba me deu, nem da coragem do Lourenço periquito, que evitou com o seu acto naquele 1.º de Dezembro, que os nomes de muitos de nós figurassem hoje na listagem de mortos de guerra. Quando acabassem de se posicionar os guerrilheiros teriam feito um autêntico tiro ao alvo com os camaradas que se encontravam na dita cantina.

Anotações do autor:

(1)  Refeitório dos praças.
(2) Gasolinas, alcunha dada ao nosso camarada que era responsável pelos combustíveis. Infelizmente veio a falecer já depois do nosso regresso em acidente de viação.
(3) Periquito, alcunha dada aos soldados maçaricos, da qual o Lourenço nunca se livrou, embora ele só tivesse chegado à nossa companhia, após quatro meses depois de nós.
(4) O Tenente-Coronel José Maria Castro e Lemos era o Comandante de Batalhão.
No dia da nossa chegada a Lisboa após alguma espera, tomou a atitude largamente ovacionada por nós, de nos mandar desembarcar do Niassa, uma vez que por parte das autoridades do regime, nenhuma comissão de boas vindas ao Batalhão se apresentou como era da praxe.
(5) Tenente Raposo, Comandante de Companhia.
(6) Dias, Soldado do Pelotão de Reconhecimento e Informação. que veio a falecer, segundo me disseram, debaixo de um tractor na sua terra natal.


Fotos reproduzidas do blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné", com a devida vénia.

2 comentários:

Hélder Sousa disse...

Caro Juvenal

Trazes aqui mais um pedaço das tuas memórias as quais, em larga medida, são as memórias de muitos de nós.

Neste relato temos um "final feliz" na medida em que não houve baixas.
É claro que podia não ter sido assim.
Afinal, tudo na vida depende um bocado da sorte.

Estás vivo, estão vivos (os que estão...). São sobreviventes.
Todos nós, na verdade!

Um abraço solidário,

Hélder Sousa

Juvenal Amado disse...

É assim Helder.
Alguns já morreram depois de chegar em acidentes lamentáveis, que são uma constante. O Dias morreu num acidente com um Tractor, o gasolinas foi atropelado por um camião quando trocava um pneu no seu carro. Outros morreram e todos nos nossos almoços acabamos por tomar conhecimento de que fulano ou Sicrano morreu na sua grande maioria de maleitas que a idade trás, embora alguns tenham por azar do destino morrido pouco tempo após a nossa chegada. Na verdade tivemos muita sorte mas cumpre-me informar que houve mortos na tabanca.
Mas voltando à história daquela noite Já depois de a ter escrito, fui obtendo confirmação de algumas coisas, que se passaram na altura e que na verdade pensei ser mais jornal da caserna e tendo em conta que eu passava mais tempo fora de Galomaro do que lá, a coisa foi-me passando ao lado.
Ora havia um guineense que fazia recados ao comandante e que, ao contrário dos outros que trabalhavam no quartel beneficiava de alguma liberdade como veremos exagerada.
Chamava-se Jamba era Manjaco sempre risonho e de bem com todos e estava à vontade em qualquer parte do quartel.
Ora na noite do ataque a granada que não saiu do tubo na altura pensávamos que não tinham tirado a cavilha. Não esquecer que quem operava os morteiros 81 eram cozinheiro e corneteiros que tinham recebido um treino rudimentar esperando nunca dele vir a precisar. Ora o que se passou e foi abafado foi o tubo do morteiro estar meio de terra. Ora todas as semanas era passada uma revista às instalações e armamento. Isso prova que a referida arma foi sabotada de propósito antes do ataque.
Mais tarde ficamos a saber que o nosso bom do Jamba era militante do PAIGC e que foi ele a fazer o trabalho no 81. Facto comprovado pelo no nosso médico dr Pereira Coelho pois já depois do 25 de Abril encontrou-o fardado e com um posto que indicava já alguém importante.
Quanto ao outro 81 mm também ele era manobrado por escriturários mas foi o maqueiro (russo) transmontano de Sendim que apoiado pelo escriturário Silva (Tchico)de Ermesinde que o fizeram funcionar na perfeição.

Cada um reage ao perigo à sua maneira e uns recuperam o sangue frio mais depressa que os outros. Ainda estávamos a ver se em que aquilo ia dar e chega o cozinheiro Esteves e diz alto bom, "eh pá bastei eu chegar e gajos foram-se logo embora".
Como temos uma página no facebook para a malta que esteve naquela região, que se chama Galomaro Destino e Passagem, perguntei à dias quem que teria fotos da destruição provocada pelas RPG,s e dos estilhaços. Responde-me o nosso Esteves assim, quanto aos estilhaços filos para o almoço com vianda lago naquele dia.

Sempre bem disposto este Esteves.

Um abraço