quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

P1200: PASSADO DOS CARRETOS... OU NÃO?...


O FURRIEL PECHINCHA:
APANHADO MA NON TROPPO

                                                                                                Caros Amigos:         

Helder Valério Sousa
Vou procurar continuar a relembrar a minha passagem pela Guiné, depois de vos ter relatado como foi a chegada. 
Como vos disse cheguei a 9 de Novembro (de 1970), quase na véspera do S. Martinho, e o desembarque deu-se um dia antes de todos aqueles que foram no Carvalho Araújo.

Fiquei alojado num quarto das instalações de Sargentos em Santa Luzia, em Bissau, num espaço cedido para colocar uma cama articulada facultada pelos meus amigos, colegas e conterrâneos vilafranquenses, Furriéis José Augusto Gonçalves (o Bate-Orelhas, como carinhosamente lhe chamávamos na Escola Industrial de Vila Franca de Xira por causa da sua (dele) habilidade de movimentar as orelhas como um abano com um simples esticar de queixo) e Vitor Ferreira.

Os dois compartilhavam o quarto com o Furriel Pechincha (só me lembro do apelido), que estava em comissão no QG e tinha estado durante meses numa Companhia nativa. o me lembro do primeiro nome dele (naqueles dias iniciais os nomes não assumiam personalidade, como já disse antes) mas creio que me pareceu que alguns camaradas presentes durante a apresentação do filme “As duas faces da guerra” se referiram a ele como tendo estado na zona de Bambadinca.

Pois este amigo Pechincha - que era, salvo erro, de Moscavide e trabalhava como desenhador na Câmara Municipal de Lisboa - tinha fama de estar um bocado apanhado e com uma pancada enorme, mas acho que aquilo era mais para ganhar fama e benefícío dela.

Digo isto porque tive com ele algumas conversas, muito interessante e educativas, que me elucidaram bastante sobre a situação que se vivia e como ele pensava que se iria desenvolver, e que, no essencial, não divergiam muito do que eu pensava.

Mas também não deixava a sua fama por mãos alheias e logo na noite de 11 para 12 de Dezembro fui testemunha privilegiada duma dessas situações.

Nessa noite comemorava-se o S. Martinho. Eu tinha sido portador para os amigos vilafranquenses de alguns quilos de castanhas e de um garrafão de água-pé (por sinal, bem forte!), além de outros mimos. Com um bidão, em frente às camaratas onde os quartos se encontravam, fez-se o assador e então vá de comer chouriços assados, salsichas e castanhas, tudo bem regado com a dita água-pé e outras bebidas estranhas, em grandes misturadas (cerveja, uísque, coca-cola, etc.), tudo a animar uma simulação de uma emissão de rádio protagonizada pelos camaradas das Transmissões com jeito para a coisa, como por exemplo o Furriel Roque.

Com o avançar das horas era tempo de serenar, descansar os corpos e retomar forças para o dia seguinte. Acontece é que, como sempre sucede em situações semelhantes, nem todos estavam pelos ajustes e com a previsão para breve da viagem de regresso do Carvalho Araújo havia alguns, cujos nomes não ficaram registados na minha memória, que integrariam essa viagem final para a peluda, como diziam, e estavam dispostos a prolongar a sua festa, até com atitudes menos próprias e profundamente negativas, principalmente para quem tinha fortes experiências no mato, como seja arremessar as garrafas vazias para cima dos telhados de zinco dos quartos. Como calculam, a mim ainda não produzia efeito mas para quem já tinha reflexos condicionados era bastante aborrecido.

Ora o nosso bom Pechincha avisou solenemente os meninos que ou paravam imediatamente a graçola ou tinham que se haver com ele à sua maneira. Dada a fama que tinha, que não regulava lá muito bem e que era bem capaz de usar arma, os ânimos serenaram quase de imediato. Mas, também como sempre sucede, há sempre alguém que procura forçar a sorte e um deles, que também me disseram que estava apanhado (afinal, quem é que não estava?, acho que dependia do grau) resolveu irromper no nosso quarto com uma panela na cabeça e a bater com duas tampas como se fossem pratos duma banda de música.

Entrou, com ar de quem estava muito contente da vida e satisfeito por desafiar as ordens, mas o que eu vi de imediato foi o nosso amigo Pechincha - que estava estendido sobre a sua cama - estender o braço sobre a cabeceira da cama, agarrar numa espécie de um dos dois machados nativos que estavam lá a enfeitar e sem mais explicações nem argumentos arremessou-o directamente para o intruso, acertando com ele na panela que estava na cabeça... Com o ar mais aparvalhado de perplexidade que vi até hoje, o engraçadinho deixou o quarto a tremer e a balbuciar "este gajo está de facto mais apanhado do que eu!".

Uma outra vez, estava com o Pechincha na zona da baixa de Bissau, passámos junto ao Taufik Saad. Naquela ocasião a loja tinha tido a boa iniciativa de efectuar uma promoção de um artigo qualquer que já não me lembro, mas a infeliz ideia de dizer que era "uma autêntica pechincha"...

Estão a ver a cena? O Pechincha resolve entrar de rompante na loja, cartão de identificação na mão, onde se podia confirmar que Pechincha autêntico era ele, portanto a "falsificação" teria que ser imediatamente retirada da montra!

E não é que foi mesmo!?

Era assim o Pechincha! Para muitos foi mais uma demonstração do seu apanhanço mas eu, que estava com ele, e éramos só nós os dois naquela ocasião, percebi muito bem que foi tudo encenado....

Uma outra recordação dos meus contactos com ele tem a ver com o que se chamou Operação Mar Verde. Cheguei à Guiné cerca de duas semanas antes da sua ocorrência mas bem em tempo da sua preparação em fase avançada.

Nas longas conversas que tinha com o Pechincha, fosse pela minha habilidade em saber coisas, fosse pela habilidade dele em me transmitir coisas, pela necessidade de desabafar e aliviar a pressão a que estava submetido ou por ter percebido algum do meu posicionamento em relação à guerra e à participação nela, a verdade é que fiquei a saber algumas coisas (que pude confirmar depois quando li o livro que relata aquela operação). Com alguma prudência e alguma imaginação, relatei-as em inocente aerograma para uma amiga vilafranquense, do género fazendo todas as afirmações que queria fazer mas dizendo para não acreditarem nelas, pois certamente as iriam ouvir dos inimigos da nação mas tudo não passariam de atoardas...

E foi tudo com o Pechincha. No início de Dezembro fui para o mato, para Piche, voltando em Junho de 1971 para Bissau para integrar o Centro de Escuta; mas nessa altura já o Pechincha tinha voltado e nunca mais soube nada dele.

Ganda Pechincha! se por acaso nos visitares e leres isto, junta-te a nós!

Hélder Valério Sousa
Fur Mil Transmissões TSF
1970/72


4 comentários:

Carlos Pinheiro disse...

Grande Hélder.
É bom lermos estes teus relatos que no final de contas aliviam o stresse acumulado ao fim de tantos anos. Eu penso assim, porque quando escrevo "hisórias" da minha guerra também me sinto mais aliviado.
Só um reparo. O S. Martinho é no dia 11 de Novembro e não como, certamente por lapso, indicaste 11 de Dezembro.
Sabes, o dia de S. Martinho foi um dos poucos dias assinalados que passei 3 vezes da Guiné, 68, 69 e 70.
Um abraço.
Caralos Pinheiro

Hélder Sousa disse...

Claro que as datas estão certas, o mês é que está errado!
Se cheguei a 9 de Novembro isso foi, de facto, em vésperas do S. Martinho e a cena das barafundas foi em Novembro e não Dezembro.

Carlos, penso que com a tua observação e a minha correcção fica feito o necessário para colocar "a coisa" nas datas certas.

Obrigado.

Hélder Sousa

Anónimo disse...

Gostei de ler a história do “Pechincha “, mas apanhados houve muitos ...e havia com cada um.
Só quem conheceu as dificuldades e carências que o pessoal por lá passou é que entende e aceita bem, os “apanhados”.
Um abraço amigo Hélder.
M Arminda

Anónimo disse...

Boa noite Gente Boa
Gostei de te ler Grande Hélder.E ri-me com gostos das estórias do Pechincha.
É um grande protagonista dessa época conturbada de 70.Deus queira que ele esteja por c+a e acuse a recepção do teu "aerograma".
Grande abraço e escreve mais...
JERO