terça-feira, 28 de janeiro de 2020

P1203: CAPELÃO LOUVA POR ESCRITO O "CAPITÃO DE BINTA"...


O PADRE MONTEIRO DA GAMA NA
PRIMEIRA PESSOA...

O Padre Gama na Capela de Binta
Nota Prévia

O Padre Monteiro da Gama foi nos anos de 1964-1966 Capelão do Batalhão de Cavalaria 490 e, nessa qualidade, visitou muitas vezes Binta e, obviamente, contactou os militares da CCaç. 675, onde deixou boa memória e afectos. 

O mundo é pequeno e numa recolha de «Memórias de Guerra» viemos a reencontrar os seus escritos num velho jornal (“Sempre em Frente”, editado nos idos de 65 pelo “490 & Companhias”), onde utiliza o pseudónimo de “Ardina Camuflado” e numa Edição do Jornal da Madeira, com data de 7 de Julho de 1971.

O texto que se segue é da sua autoria e foi dado à estampa na despedida ao então Chefe do Estado Maior do C.T.I. da Madeira, Major Tomé Pinto.
JERO


ACTIVIDADES DA NOSSA TROPA E REGRESSO DAS POPULAÇÕES

O PATRIMÓNIO DUM POVO E A CONSCIÊNCIA DA SUA MISSÃO

A Imprensa da Ilha da Madeira tem sabido fazer-se porta-voz dos sentimentos nobres dos militares do CTIM postos em evidência nas manifestações de despedida ao Exmº. Chefe do Estado Maior, Major Tomé Pinto. Um louvor publicado nos dias 3 e 4 do corrente é consagração oficial dos méritos e das qualidades duma das personalidades mais prometedoras do nosso Exército. Por outro lado, exaltando quem o merece, dignifica quem o reconheceu e com sentido de justiça o exarou. É, aliás, esse louvor um testemunho bem expressivo, visto que no seu teor se apreende uma preocupação que não cabe nos cânones, e obriga a redacção a fugir ao literalismo convencional.

Ao contrário do que se observa com excessiva frequência, no louvor do Major Tomé Pinto abundam e até predominam os verbos com que se expressam acções e se definem atitudes. Neste caso os adjectivos, que noutros louvores são a base, neste são simples ornamento, qualificam e determinam o que os verbos expressivamente afirmam. Dado o descrédito em que os louvores caíram e aproveitando a circunstância da saída, convém realçar as manifestações dos militares e o cuidado com que a Imprensa tem tentado expressar a simpatia que eles revelam pelo Chefe de Estado Maior cessante. Mas o público precisa de saber que se trata de alguém que merece muito mais que simpatia e estima.

E passando do campo da informação e da descrição para a observação das pessoas e dos factos concretos, começamos por afirmar que, uns mais outros menos, todos nós precisamos de estímulos. E é para estímulo dos homens de boa vontade que me proponho apresentar aspectos da vida do Major Tomé Pinto.

Por homens de boa vontade aqui entendo aqueles que ainda se preocupam com enfrentar a vida pelo prisma da vocação que ilumina o dever, esclarece a consciência, sacode a vontade e põe em evidência a capacidade criadora tantas vezes poderosa, mas latente. Estes precisam e merecem estímulos concretos. Não me recordo do meu primeiro encontro com o Capitão Tomé Pinto nas matas da Guiné, no Verão de 1964. Não recuperarei mais esta nota preciosa da minha vasta crónica de campanha. Mas convivi muito com ele, com ele pude colaborar. De tal modo que até poderia tornar-me suspeito, se outros homens que com ele e comigo conviveram as mesmas situações não depusessem comigo; e se os factos não pudessem testemunhar muito mais que as minhas palavras.

São estes os melhores testemunhos. O Cap. Tomé Pinto foi em Junho de 1964 tomar conta duma posição ao Norte da Guiné em situação extremamente difícil. Ali, como em tantos outros lugares, precisava-se de um homem competente. Não foi especialmente escolhido. Mas Binta teve a sorte que não tiveram muitas outras posições em situações idênticas. Muito poucos dias antes da chegada a Binta da Companhia 675 que o Cap. Tomé Pinto comandava, os terroristas tinham posto em fuga toda a população. O jovem Capitão entra na localidade desolada... Mas não desanima. Moraliza todos os seus homens, mentaliza todos os seus graduados. Bem convencido, convence; sereno e conciso, tranquiliza.

Alheio à euforia como a receios infundados polariza o interesse de todos, inspira confiança naquele império de medo e desconfiança que é uma terra assolada por terroristas onde só se vêem escombros de palhotas e despojos disseminados. Disciplinado e metódico enfrenta o inimigo com firmeza nas matas, exposto a todas as surpresas, as mais macabras. O inimigo aos primeiros contactos apercebe-se que o Capitão de Binta é perigoso. Começa por acautelar-se e passa a temer a Companhia de Caçadores 675.

O Capitão Tomé Pinto
em foto da época
Mas o Capitão é que não descansa; não espera que lhe venham ordens operacionais do Comando superior de Farim. Sai ele mesmo com os seus homens, embosca-se nas florestas, a qualquer hora do dia ou da noite, totalmente alheio às intempéries, estuda minuciosamente a sua zona de acção, perscruta os movimentos dos terroristas, estabelece comunicações com as populações foragidas, contacta com entidades regionais do Senegal, cativa a confiança dos nativos e das autoridades.

Está bem seguro de poder contar com os seus homens em qualquer emergência. Exerce sobre eles um verdadeiro fascínio. Não conheci um soldado da Comp. 675 que não admirasse o seu capitão, que não se sentisse orgulhoso dele. E contactei muito com todos eles, por dever de oficio. Conversei com eles nas horas mais amargas em que os militares expressam super abundantemente os seus descontentamentos. Foi caso único, dos muitos que conheci... Seria longo expor as razões! Quando o Capitão Tomé Pinto foi ferido em combate e recolheu ao Hospital, foi interinamente comandar a Companhia 675 o Tenente Cruz .

No fim desta comissão especial o Tenente Cruz deu este testemunho expressivo: - “Envergonho-me de comandar os homens do Tomé Pinto. No meio deles eu sinto-me um soldado pois eles não precisam de ordens nem as esperam. Têm tal conhecimento da zona, tal sentido de orientação e tal intuição do perigo que se movem ordenadamente para qualquer lado.”

Regista-se aqui um lapso. Quando o Capitão Tomé Pinto foi ferido (5 de Agosto de 1964) o Alferes Foitinho foi comandar interinamente a Companhia durante cerca de um mês. O Tenente Cruz veio efectivamente a comandar a C.Caç.675 nos últimos 6 meses da comissão (Novembro de 1965 a Maio de 1966).

”Chefe e herói incontestado, para mim é mais admirável como pioneiro. Binta não podia continuar deserta!... E quando um dia o felicitei pelos êxitos de armas e pela tranquilidade que conseguira para a sua área, ele responde-me: - “Esta é a primeira parte, e a menos importante. A campanha não pára aqui... Precisamos cá de gente, vamos restaurar Binta”.

Num clima de guerra em que os nossos considerados melhores julgavam fazer muito se continham o inimigo a distância ou se lhe sabiam aparar o jogo, aguardando o momento para “melhores dias” que seres teóricos viriam estabelecer e desfrutar, esta afirmação foi uma surpresa, uma revelação. Mas o facto é que a campanha de recuperação começou.

Primeiro vieram os mais ousados. Trouxeram depois mulheres e filhos. Estes inspiraram confiança aos outros que do outro lado da fronteira ou em pleno mato aliciados pelos terroristas e no meio de todas as privações já tinham desesperado duma solução local imediata. Foram informados que o “Capitão de Binta” era terrível, mas era só para os terroristas. Para estes era mesmo terrível!...

Mas precisamente porque o era inspirava confiança, garantia, segurança aos que quisessem voltar. Voltaram às dezenas. Binta restaurou-se! Soldados e nativos fizeram adobos, levantaram paredes, cortaram cibes, abriram arruamentos, arranjaram umas residências muito mais bonitas que as antigas. Surgiu a Escola com duas salas e um quarto para os professores. Leccionou-se para os numerosos soldados alentejanos analfabetos; simultaneamente a Escola restaurou a actividade da Escola Missionária arrasada pelos terroristas; conseguem-se livros, as crianças nativas comparecem e os militares ensinam.

Mais. Uma vasta área circunvizinha foi arroteada e cultivada, porque o “Capitão de Binta” sabia que era preciso ensinar aquela gente a sobreviver, a trabalhar. Ajuda-os, ensina-os, estimula-os. Não espera mais pela longamente esperada solução das entidades superiores, arranja arroz e mancarra com abundância para semente e distribui aos rústicos. Foi de tal efeito o estímulo que eles se atiraram ao cultivo e foi preciso adquirir mais semente. O “Capitão de Binta” não teme o surto e compromete-se: aparece semente em abundância.

Em Agosto de 1965 Binta era um jardim e a população alegre e confiada contemplava a sua promissora colheita e adorava o seu Capitão, orgulhosa em massa do “Capitão de Binta”. Para eles estes dois nomes soavam como na Idade Média um título de Nobreza!...

Exemplo típico de colonização em plena Guerra. Afonso Henriques e Afonso de Albuquerque fizeram também assim... Não terão feito melhor! E se fizeram mais será porque tiveram mais tempo e mais poderes.

Na Guiné conheci mais três casos semelhantes. Felizmente!!

Mas infelizmente, desgraçadamente(!!!), só conheci mais três... Hoje parece que há "em cima" outra mentalidade, há uma verdadeira preocupação de fazer decididamente o que há tanto tempo se podia ter iniciado, pelo menos. Mas o “Capitão de Binta” conservará o mérito de pioneiro, de civilizador e sabe que esta guerra só acaba quando os que comandam a guerra se convencerem que têm de pôr em acção as armas da paz, por todos os meios ao seu alcance, pois é mais digno apresentar testemunhos que vençam ideologias erradas do que limitar-se a opor forças que podem servir de argumento para consagrar erros ideológicos.

Monteiro da Gama
(Ex-Capelão do BCAV 490-GUINÉ)

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei de ler este testemunho sobre o Capitão de Binta, Tomé Pinto.
Não privei com este distinto oficial, apenas me cruzei uma vez durante a minha vida de enfermeira paraquedista, mas muito bem, ouvi falar sobre a sua pessoa.
Conheci-o com a patente de Ten. Coronel, muito mais tarde da sua estadia na Guiné.
M Arminda