segunda-feira, 1 de julho de 2019

P1149: MAIS UM PARA RECORDAR


ALCUNHAS DO TEMPO DA VIDA MILITAR QUE NÃO ESQUECEM / 2


O “RATO”

1º Cabo Martins, O "Rato"
O 1º. Cabo auxiliar de enfº. Martins não enganava... Tinha “pinta”! Rapidamente deu nas vistas. Aprendia depressa e era um «desenrascado»... natural.

Aquele seu jeito vinha-lhe do berço. Esperto e mandado para a frente: para o bem e para o mal... Pequeno de estatura, de olhos bem vivos, mexido e malandro q.b. .
Estava na vida militar como «peixe na água»: Não era mais um. Dava a pele por um seu superior.

No norte da Guiné no «baptismo de fogo» da sua C.Caç. 675 o Martins, ou melhor, «o Rato» (como já era então por todos conhecido e tratado) mostrou a sua raça e que... os homens não se medem aos palmos... No «Diário» da Companhia a sua actuação foi descrita assim: «...De salientar na emergência a coragem do Cabo Enfº. Martins que não abandonou o ferido em cima da viatura, gritando para o Claudino (o condutor) que continuasse a andar para o estacionamento».

Há que esclarecer que a viatura em causa transportava um ferido grave – o soldado Almeida que veio a ficar cego de um olho – e que foi emboscada quando seguia isolada a caminho do aquartelamento. Está claro que o «Rato» em cima da viatura e debaixo de fogo chamou ao Claudino tudo... menos bom rapaz...

É que este, em desespero, abandonou momentaneamente a cabine para se abrigar do fogo inimigo. Foram os gritos e «os nomes feios» do Cabo Martins que o fizeram voltar ao volante do Unimog. Terá sido o «Rato» que com o seu exemplo e coragem evitou males maiores.

Depois... ao longo dos meses... esteve sempre em todas.
No mato e no quartel.
Aprendeu a falar os dialectos nativos e... não tivessem pena dele.

Ninguém na Companhia «terá partido mais catota...» que o Cabo Enfº. Martins.
Generoso e valente como operacional. Malandro e desenrascado no quartel… e na tabanca!

Onde estava o «Rato» não passava desapercebido! Quando não sabia... ”inventava” e como auxiliar de enfermagem transmitia confiança. Ia a todas e... não se atrapalhava. Era bom tê-lo por perto quando havia azar... Vivia intensamente a “sua” Companhia.

O que o ex-Alferes Tavares conta da sua dor exaltada quando da morte do soldado Nascimento no Hospital de Bissau demonstra isso mesmo. «...Mal cheguei ao Hospital dei de caras com o «Rato». Este estava no HM 241 a fazer tratamento de antiparasitação e logo que me viu gritou-me a má nova: Morreu o Nascimento. Estava agitadíssimo. Em cada três palavras dizia duas asneiras. Já não sei como mas... segui-o pelos corredores do Hospital e fui dar a uma sala onde estava um corpo coberto por um lençol. O «Rato» destapou o corpo e reconheci o corpo desnudado do Nascimento. Morto. Não tinha um pé.»

Mais uns meses e o Martins regressou à Metrópole cheio de sonhos. Infelizmente não optou pelo retorno às (suas) origens. A Tondela. A pequena vila e sede de concelho do distrito de Viseu. À terra que o tinha visto nascer.
 Ficou por Lisboa, pela grande cidade.
 E... perdeu-se!
Terá vivido em equilíbrio precário, na corda bamba e não encontrou nunca «terra firme»...

Visitou amigos da vida militar. Teve a ajuda de alguns. Viveu em sobressalto. Em correria. Parecia adivinhar que a sua vida ia ser curta.
Numa visita à sua terra natal – a Tondela – morreu num acidente de motorizada. Quando soube, chorei sentidamente o «Rato».

Fui seu superior directo na vida militar.
Como eu estimava o puto! Depois do regresso da Guiné tive o “Rato” em Alcobaça, em casa dos meus Pais. Um fim de semana.

À noite, já o “Rato” estava deitado, a minha mãe quis saber se ele estava bem e se precisava de mais alguma coisa.
O «Rato» preparava-se para dormir sem pijama porque, simplesmente... não o tinha. Escondeu embaraçado a nudez do tronco com a roupa e respondeu à minha mãe que não, que estava tudo bem. Parecia um «menino» encabulado! Lembro-me como se fosse hoje.
Raramente vi o Rato tão atrapalhado. O Rato irreverente, desenrascado, sem papas na língua... ficou sem palavras. Tinha sido um menino que teria crescido sem amor e que não estava habituado a que o tratassem tão bem!

JERO
É assim que o recordo. 
O seu sorriso de embaraço frente a alguém que o tratava como a um filho.

O “Rato” deixou a vida cedo. Vida que viveu a correr. Parecia adivinhar que a sua vida ia ser curta. Recordo-o com muita saudade.

Se isso pode ser considerado como um bem... permaneceu desde então, desde sempre na minha memória, como um jovem, misto de “malandro” e de menino que terá crescido para a vida... com falta de amor.

O Rato foi... tudo isto.
Se tivesse vivido nos tempos de Asterix teria sido, com certeza, também um irredutível.
Que saudades eu tenho do sacana do puto…
JERO


3 comentários:

joaquim disse...

Muito mais do que a história da alcunha, lê-se aqui, ou melhor vive-se neste texto uma ternura imensa de uma amizade daquelas forjadas na guerra, que molda os nossos corações, os enternece e faz viver em saudade.

Obrigado José Eduardo por tão belo e tocante texto.

Grande abraço
Joaquim

Hélder Valério disse...

Jero

O que o Joaquim escreve é bem verdade. Nota-se bem o teu carinho, empenho e até preocupação pelos (des)caminhos do "Rato".

Mas é, também, um retrato dos dramas tantas vezes vividos ao nosso lado (sentido figurado) sem que as pessoas se apercebam (e se interessem) podendo assim contribuir, ou não, para resolver ou amenizar esses dramas.
O percurso de vida (?) que ele fez depois do regresso reflecte um desenraizado, sem perspectivas do futuro, empurrado pelo dia-a-dia.
O seu final terá sido cedo demais mas, tal como o retratas, acho que em qualquer altura poderia acontecer.
Abraço
Hélder Sousa

Anónimo disse...

Uma história de amizade, comovente e cheia de ternura.
Pena foi que “Rato”, tivesse partido cedo.
Vidas difícieis e por vezes desenraizadas, tornam os homens em almas boas, capazes de se comportarem nos momentos mais atribulados, como os vividos pelo Rato, em verdadeiros heróis.
Obrigada Gero pelo seu testemunho.
Um abraço.
M Arminda