sábado, 8 de junho de 2019

P1142: NÃO ESTÃO ESQUECIDAS...


ALCUNHAS DO TEMPO DA VIDA MILITAR
QUE NÃO ESQUECEM / 1

Já passaram mais de 50 anos e não esqueci algumas das alcunhas de “rapazes” que passaram dois anos na Guiné integrados na “minha” C.Caç. 675. E como tenho nos meus arquivos alguns “testemunhos” desses velhos tempos posso de vez em quando “mergulhar” fundo no passado “sem perder o pé”…

Posto isto vamos a factos.

No longínquo dia 4 de Julho de 1964 dois grupos de combate da C.Caç. 675 saem para o mato, no Norte da Guiné, e têm um tremendo “baptismo de fogo”, que incluiu um ataque bem sucedido a uma tabanca inimiga e duas emboscadas no itinerário de regresso ao quartel, de que resultam vários feridos graves e um ligeiro.

A evacuação para o Hospital de Bissau foi feita por dois helicópteros e, no segundo - no meio de alguma confusão - seguiu também o “Salvação”, ferido numa perna e nas costas por estilhaços de granada, feridas no entanto superficiais e que não teriam justificado a sua evacuação.

O Salvação
Quando “a poeira assentou” tivemos informações via rádio dos feridos que inspiravam mais cuidado e nos dias seguintes a vida no aquartelamento teve alguma acalmia, esperando-se que o “Salvação” regressasse `”às lides” nos dias mais próximos. Esta palavra (as lides) tinha alguma razão de ser pois o rapaz era de Salvaterra de Magos,uma terra de touros e toureiros.

Cabe aqui e agora dizer que o “Salvação” tinha físico de artista de cinema e cuidava bastante do seu aspecto. Tinha apanhado um grande cagaço na segunda emboscada do “célebre” dia 4 - ele e muitos outros, com o autor destas linhas incluído - e aproveitou a sua estadia em Bissau para, além de tratar dos ”arranhões” dos estilhaços, cuidar dos dentes, de quistos sebáceos, de calos cutâneos, da neurose de compensação, da goteira do cotovelo, da prevenção para picadas de mosquitos e mosca tsé-tsé, de perturbações causadas pelo calor, de alopecia, de sonambulismo, da falta de apetite depois de comer, etc., etc.

Quando apareceu na Companhia uns dois meses depois já quase que ninguém o conhecia. Daí para frente o Condutor-Auto nº. 2572/63 Francisco Augusto da Costa Salvação só passou a ser conhecido por “São e Salvo” ou “Salvação”. Pegou melhor o “Salvação”, até porque condizia com o apelido. E de apelido a al(cu)nha foi só um passo... Até porque quem tem (cu) tem medo e o “Salvação, regressou são e salvo à Metrópole em 8 de Maio de 1966!

Chega agora a vez do “Sorna”, um jovem nascido e criado na Costa da Caparica, com a especialidade de atirador (Soldado nº. 2227/63, Henrique Manuel Pereira Cambalacho) e com uma doença congénita de “preguicite aguda”. Dormir era com ele e rapidamente começou a ser conhecido na Companhia como o "Sorna". Com alguma esperteza e matreirice à mistura conseguiu passar ao fim de pouco tempo a “ajudante” da Cantina e ficou dispensado de patrulhas no mato, que eram as partes mais desagradáveis da “especialidade” de atirador.

O guarda-redes “Sorna”, assinalado por um círculo, com os habituais titulares da equipa de futebol da CCaç.675, apadrinhada pelo Cap. Tomé Pinto.
Como era normal ao tempo nos “intervalos da guerra” havia malta que jogava futebol e nesse grupo de predestinados para o “desporto-rei” fazia parte o “Sorna” que, para não se cansar muito, jogava a guarda-redes que, como é sabido, é o lugar mais parado numa equipa de futebol.

Não era bom nem mau, antes pelo contrário, mas um dia fez uma defesa tão aparatosa que acabou... no Hospital de Bissau! Mas até lá chegar... é que foi o cabo dos trabalhos.

Ainda hoje não se sabe se o “Sorna” defendeu a bola sem querer, se levou com a bola na cara ou se bateu com a cabeça na trave e... mordeu a língua! Das duas... três. O que é certo é que não foi golo e o que é ainda mais certo é que mordeu a própria língua violentamente. Saiu em braços – não em ombros - e quando meia hora mais tarde o “Sorna” ,deitado na sua cama, começou a pedir ajuda por sinais, porque já não conseguia falar... os vizinhos da camarata não lhe ligaram nenhuma.

O rapaz começara a ficar roxo e, quando finalmente o médico e o enfermeiro da Companhia foram alertados para o seu estado, a língua já estava tão inchada que o “Sorna” corria riscos de asfixia. E para obviar a males maiores o médico fez-lhe uma traqueotomia, com os meios disponíveis na Enfermaria do aquartelamento. Quando o infortunado «guarda-redes» estabilizou foi evacuado de helicóptero para o Hospital de Bissau. Passou um mau bocado mas... voltou ao Quartel menos “Sorna”.

Mas a alcunha ficou e... mais ninguém lha tirou! Aqui está um caso em que a primeira função das alcunhas (a identificação) não ajudou nada. És “Sorna” e quando estás doente a sério... ninguém acredita! Está claro que esta situação complicada nunca teria acontecido com o “Salvação”...

Faz tempo...
JERO

PS - E em breve vos trarei mais alcunhas...

9 comentários:

Hélder Valério disse...

Ora bem.....

O meu amigo Jero deu-lhe agora para desencantar a questão das alcunhas!
Não está mal, não senhor, até porque, como se comprova por esta amostra de duas (ele promete mais...) elas, as alcunhas, acabam quase sempre por ser o reflexo de alguma característica dos "baptizados".

Tenho para mim que essa coisa das alcunhas caiu um bocado em desuso, mas pode ser só impressão minha, já que, naturalmente, ando menos em cima das novidades.
Na minha aldeia, em Vale da Pinta, recordo de várias alcunhas ou complementos de nomes que identificavam as pessoas. Era a "Estrudes da Cagueira", o Pitota, o Zé Manel da Santana, o Catita, o "Bechaça", o Zé da Leonor, o Borda d'Água, etc.
Em Vila Franca de Xira também as alcunhas (acho que é "mais fino" dizer "nick names") existiam e serviam para caracterizar quem elas identificavam, por exemplo o "Toninho Canita", o "Zé d'Otíla", o "Bate Orelhas" (meu colega de escola e camarada da Guiné que tinha a habilidade de movimentar os "abanos" com a contracção dos músculos faciais, o "C..ão grande" (este jovem, na sua descoberta de partes do seu corpo verificou, e fez disso alarde, que tinha um atributo maior que o outro...), o "Polícia" (o pai dele é que era), o "Garrafinhas" (amigo da Azambuja, já falecido, que tinha sempre no seu farnel para o almoço que vinha de casa uma garrafinha de vinho) e por aí fora. Tudo dentro do normal.
A mim também me colocaram alguma, injustamente, diga-se! Chamavam-me "cafeteira" porque, diziam, "fervia em pouca água", ou seja, rapidamente entrava em conflito... Depois acalmei, como podem comprovar pela minha quase infinita paciência para "aturar" tantos desmandos que se vão lendo e vendo por aí...

Das recordações do Jero quero ainda fazer algumas observações.
A primeira tem a ver com o que eu reputo de "falta de cultura tauromáquica". Reduzir a "coisa" a "terra de toiros e toureiros" é muito redutor. Isso é coisa para a anedota, mas é preciso que se saiba que para que haja a festa de toiros e toureiros devemos também considerar os "bandarilheiros", os "peões de brega" (cuja profissão não pega, como se dizia na canção do Tordo), evidentemente os "forcados", os "cavaleiros", os cavalos, os cabrestos, os campinos, etc. etc. e, não esquecer, o "inteligente"!

Quanto ao "Salvador" e ao "Sorna", pois acho que foram alcunhas colocadas a propósito. Bem aplicadas e que se calhar para a maior parte dos seus camaradas de então e ainda hoje será assim que serão reconhecidos. Aliás essa coisa das alcunhas às vezes passa gerações. Para aqueles que acompanham as questões do "pontapé-na-bola" fiquem a saber que o Bruno "Lage" não é "Lage", isso foi alcunha que colocaram ao pai dele e que "transitou". O jovem, já agora, foi colega de Escola (Bela Vista...), de Curso, de Turma e de Carteira do meu filho mais velho e nas reuniões de pais ele era "Bruno Nascimento".
Voltando ao "Sorna" pois é claro que teve sorte. Começando logo pela defesa portentosa que protagonizou, depois por, ainda atempadamente terem dado pela sua aflição e também pela existência de médico que lhe fez a traqueotomia, coisa nada fácil de se fazer e com as condições existentes "no mato".
Sobre o "Salvador" retive que para além dos necessários tratamentos aos arranhões dos estilhaços aproveitou, e bem, o tempo para cuidar mais aprofundadamente do seu corpinho. Há que aproveitar as oportunidades e isso, na Guiné, fazia toda a diferença.

Aguardamos por mais alcunhas...

Abraço.

Hélder Sousa

Anónimo disse...

Boa noite gente boa.
Habemus um comentário !
E que comentário !!!
Obrigado Hélder de Sousa.
Demonstraste à saciedade que o tema tem pano para mangas e que és um analista nato.
Grande abraço e fica sabendo que me destes forças para continuar.
Noite descansada e até amanhã se Deus quiser.
JERO

Anónimo disse...

Lembrei-me agora que quando regressei de Guiné para Alcobaça falava tanto dos meus tempos da vida militar que me chegaram a pôr a alcunha do "Zé Africano".
Faz tempo.
JERO

Miguel disse...

Caro Helder
Com a vivacidade com que rediges os teus comentários, bem podias mandar prá gente uns textos para publicarmos! A gente agradecia, que o material não abunda... E de certeza que o pessoal ia gostar de ler. Fico à espera!
Abraço. Miguel Pessoa

Anónimo disse...

Bom dia Hélder
Subscrevo inteiramente o comentário do n/Camarigo Miguel Pessoa, a quem tanto devemos na "vida" do blogue da Tabanca do Centro e da Revista Karas.
Abraço e votos de bom domingo.
JERO

joaquim disse...

Caro Hélder

Faço minhas as palavras dos oradores antecedentes.

Grande abraço
Joaquim

Hélder Valério disse...

Bem.... se não fizer mais qualquer coisa... fico envergonhado.

Pois tentarei ver o que se arranja, em termos de "fait divers" pois que "histórias de guerra", essas, são escassas, felizmente e as mais dramáticas (como a do dia do conhecimento da minha mobilização para a Guiné, ocorrida em 1 de Setembro de 1970, no RTm no Porto e as ocorrências em Piche aquando da "Operação Mabecos" no Carnaval de 1971) ou as mais divertidas, como o caso do 1º Sargento "Bonzinho", da minha falta de paciência para as bazófias proferidas no Bar de Sargentos de Santa Luzia e a que eu chamei de "A Bazooka em rajada", etc., já foram há bastante tempo publicadas no "Blogue-Mãe".

Mas vou rebuscar a memória e talvez redescubra algo passado aquando da minha estadia em Tancos.

Abraços
Hélder Sousa

Miguel disse...

Caro Helder
Para além das histórias novas que nos puderes vir a disponibilizar não enjeitamos a possibilidade de publicar ("com a devida vénia ao autor e à TG") textos já saídos na Tabanca Grande - os leitores não são necessariamente os mesmos e muita gente não vai rebuscar nas mensagens antigas os textos já algo datados que para ali ficaram guardados. Por isso encaramos a hipótese de ir lá procurar histórias tuas para (re)publicar, agora na Tabanca do Centro - a começar por aquelas que mencionaste no teu comentário anterior.
Conta com um contacto meu para concretizarmos esta ideia. Já não te safas...
Abraço. Miguel

Miguel disse...

O Miguel do comentário anterior é o Miguel Pessoa, como alguns terão calculado...