segunda-feira, 25 de março de 2019

P1117: MEMÓRIAS DO ALFERO CABRAL

O CONDE DE BOBADELA 


Jorge Cabral
Estava no Tribunal de Mafra à espera de um julgamento, quando uma mulher me interpela: 
- É o Senhor Conde, não é? 
Hesito, mas para evitar mais conversa respondo: - Sou, sim. Como vai a senhora? 
- Ai, que já não se lembra da Aurora! Eu trabalhava em casa do Senhor D. Ilidío. O Senhor Conde ia lá muito. quando estava na tropa.
- Pois ia. Claro que já morreram, o Senhor D.Ilídío e a esposa, a Dona Florípedes. E a menina Francisca ainda lá habita? 
- Oh não! A casa ficou ao abandono. A Menina vive no estrangeiro.
Chamam-me para a Sala de Audiências. Despeço-me. No regresso a Lisboa, qual arqueólogo, colo os cacos da memória. Foi há mais de cinquenta anos, no início de Julho. que o meu velho vizinho Alvarenga, coronel reformado, me procurou. Sabendo que eu ia para Mafra, pediu-me que levasse uma encomenda ao seu amigo. Coronel Ilídio Montez, que morava na Achada, perto da Ericeira.
- Nem precisas de ir à casa.Vais ao M.E.F.D. mesmo ao lado do Convento. Ele passa lá os dias a montar a cavalo.
E assim, poucos dias depois de apresentado na E.P.I, fui procurar o Coronel. Logo no portão recebi uma reprimenda do 1ºCabo de serviço: - Dobre a língua. nosso Cadete! O Coronel Montez é Dom! Dom Ilídio, está bem?!
Conduziu-me ao picadeiro e conheci D.Ilídio. Um velho pequenino, sem dúvida já octogenário, de bigode branco, pose altiva, mas simpático. Abriu à minha frente a encomenda e rejubilou - umas bonitas esporas prateadas.
- Hoje vais jantar a minha casa - ordenou. A minha mulher deve estar a chegar.
Pouco tempo depois, eis-me metido no carro conduzido por Dona Florípedes, a mulher. Uma senhora muito branca, talvez triste, com ar de tédio e algo de snobe. Jantei nessa noite e em muitas outras. Bebia os conhaques do Coronel. Declamava para a Dona Florípedes. Comentava o Maio francês com a filha Francisca, mas à noite era com a empregada Aurora, que sonhava. Dona Florípedes sentia-se exilada em terra de saloios. Trocar o Estoril pela Achada... E tudo por culpa dos cavalos... E logo ela, neta do Marquês de Pintéus, sobrinha do Barão da Marateca...
Para não destoar, confessei-lhe que também eu era Conde. Mas não usava o título. nem aliás o nome completo - D.Jorge Almeida Cabral y Athouguia de Vasconcelos, Conde de Bobadela.
Às vezes discutia-se o meu futuro militar. D. Ilídio tinha esperança que eu fosse parar a Santarém, à Cavalaria. Possuía perfil e estatura de grande combatente dizia, contra a opinião de Dona Florípedes:- Um rapaz tão sensível. Até faz versos... - E daí? - retorquia o Coronel -  Camões também andou na guerra! D. Ilídio tinha uma teoria, segundo a qual. os mais valentes são sempre os Homens mais pequenos.
- Olha o Napoleão, já para não falar do nosso Marechal Carmona! Ele nunca fora a África. mas falava das savanas de Angola, com tal propriedade, que era fácil imaginá-lo à frente do Esquadrão a galope, perseguindo o inimigo. Conhaque e cavalos. Cavalos e conhaque, constituíam os interesses do Coronel. Nos conhaques ainda o ia acompanhando: - Prova-me este Courvoisier! Que achas do Remy Martin? Gostas do Henri lV?
Mas nos cavalos... Bem, convidou-me muitas vezes a ficar em Mafra, um fim de semana, para montar e escusei-me sempre. A apendicite da mana... A úlcera do Avô... O reumático do tio... O certo é que nunca cheguei a demonstrar os meus dotes equestres. Acabou a recruta. Deixei Mafra e rumei a Vendas Novas.
Ainda nem tinha passado quinze dias quando sou chamado ao Comandante da Bateria.
- Qual é o seu nome completo. nosso Cadete?
Jorge Pedro de Almeida Cabral, meu Capitão.
- Então esta carta é ou não é para si?
- E entrega-ma. Estava endereçada a Dom Jorge Almeida Cabral y Athouguia de Vasconcelos, Conde da Bobadela.
- Alguma brincadeira, meu Capitão.
- Brincadeiras estúpidas, nosso Cadete!
A carta era de Dona Florípedes.
Trazia um poema, com muitas açucenas, tardes amenas e até metia o pão de ló da avó... Bem, rimar, rimava... Não respondi. Embora tivesse ficado como Aspirante em Vendas Novas, nunca o Capitão. depois Major, me voltou a tocar no assunto.
Escrevi-lhe da Guiné.
E assinei - Jorge Alfa Mamadú Cabral Embaló Baldé, Conde de Missirá e Barão da Bolanha de Finete.
Texto recolhido do Facebook pelo nosso camarigo JERO. Com a devida vénia ao  JERO, pela iniciativa, ao Jorge Cabral (o tal Alfero), pela escrita, ao Blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné", pelas imagens. 


1 comentário:

Alberto Branquinho disse...

Ora, aqui está o Jorge Cabral, no seu melhor!
Muito bom para tratar do fígado (depois de tanto conhaque).
Um abraço ao Autor

(e, também, a quem o recolheu e a quem o publicou)
Alberto Branquinho