sábado, 5 de janeiro de 2019

P1091: A SAÚDE NO NORTE DA GUINÉ EM 1965


No blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" foi há algum tempo publicado o Poste 19224 em que era exposta a dramática situação da farmácia do PAIGC na logística da saúde na frente Norte, em 1965. 

Comentando o tema, foi posteriormente editado o Poste 19279 em que o nosso camarada JERO analisava a situação naquele território naquele mesmo período, com base na experiência vivida na sua própria Companhia, a CCAÇ 675.
É este último texto que resolvemos reproduzir no nosso blogue, juntando-lhe ainda um comentário igualmente interessante do Cherno Baldé, inserido no P19279.

Com a devida vénia ao JERO, à Tabanca Grande e ao Cherno Baldé.


SOBRE OS PROBLEMAS DE SAÚDE NA FRENTE NORTE, NO PERÍODO EM QUE A CCAÇ 675 ESTEVE NO TERRENO


JERO
O tema é de facto do meu tempo e da “frente” Norte da Guiné - a “minha” CCAÇ 675 esteve, entre Maio de 1964 e Abril de 1966, numa “quadrícula” com sede em Binta (a 20 kms. da sede do Batalhão em Farim). 

E como Furriel Enfermeiro passei por muita coisa. Na guerra do “mato” e na paz do quartel. 

Começo pelo meu conhecimento directo com a população nativa que vivia em Binta e em Guidage, que também pertencia à “minha” quadrícula. 

Na nossa enfermaria de Binta tratámos alguns doentes com lepra, elefantíase, matacanha, malária, etc. Refiro-me a “clientes” da população nativa porque no que respeita a militares o que mais tivemos foram casos de paludismo. 

E apanhámos uma terrível epidemia de sarampo que matou dezenas de crianças da população civil em apenas um mês. 
Também havia algum “folclore” nativo de doentes habituais da nossa enfermaria que se queixavam de “toco-toco”, para engolirem umas saborosas colheres de xarope para a tosse. 

Os casos que atrás refiro dizem respeito a Binta. 

Também me calharam algumas “estadias” em Guidage e confesso que as longas filas vindas de “pessoal” do Senegal ainda me estão na memória pelo sofrimento e desesperança daquela gente, que procurava junto da tropa alguma ajuda para as suas enfermidades. Lembro-me especialmente das mulheres, sempre carregadas de crianças famintas e esqueléticas! 

A nossa vitória foi no segundo ano de comissão em que conseguimos recuperar população e “fazer” uma aldeia modelo, que chegou a ter mil habitantes. 

Essa memória consta do meu livro “GOLPES DE MÃO´s”, editado em Abril de 2009. 

E é tempo de referir os problemas do PAIGC na logística de saúde em 1965 entre a lucidez e o desespero de Lourenço Gomes, responsável pela área da saúde na frente Norte. 

Obviamente que os desconhecia à época mas deviam ser tremendos para “efectivos” que viviam na “clandestinidade”. 
Se em estudos recentes a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que há menos de cinco médicos para cada grupo de 100 000 habitantes no país …as percentagens para os tempos de Lourenço Gomes deveriam ser negativas, para não dizer que seriam “abaixo de zero” !!!! 

Os casos de malária afectam cerca de 9% da população. 
A esperança de vida ao nascer vem crescendo desde 1990, mas continua a ser baixa. De acordo com a OMS, a esperança de vida para uma criança nascida em 2008 era de 49 anos. Apesar da redução de casos em países vizinhos, taxas de cólera foram notificadas em novembro de 2012, com 1500 casos apresentados e 9 mortes. Uma epidemia de cólera em 2008 na Guiné-Bissau afetou 14.222 pessoas e matou outras 225. 

Em junho de 2011, o Fundo de População das Nações Unidas divulgou um relatório sobre o estado da obstetrícia do mundo, contendo dados sobre a força de trabalho e as políticas relacionadas com a mortalidade neonatal e materna em 58 países. Neste relatório foi apresentado que, em 2010, a taxa de mortalidade materna a cada 100.000 nascidos é de 1000 na Guiné-Bissau. 

Por maior que fosse a lucidez de Lourenço Gomes em relação aos problemas do PAIGC na logística de saúde em 1965 o seu desespero deveria andar próximo dos 100% ! 

Grande abraço e até uma próxima. 
José Eduardo Reis de Oliveira 
JERO 
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Comentário do Cherno Baldé ao texto do JERO:

Caros amigos,

O José Eduardo Oliveira, fala de uma epidemia de Sarampo que deve ter acontecido em 1965, provavelmente entre o primeiro e segundo trimestre. Na altura, como acontecia sempre, a epidemia espalhou-se rapidamente pelo território, atingindo quase todas as crianças com idades até 8/9 anos. Isto porque as crianças com 10 anos para cima eram sobreviventes de epidemias anteriores e como tal já estavam (vacinados) e imunes à doença que, na época, dizimava as crianças africanas.

Eu, na Altura, a viver em Cambaju onde a minha familia estava refugiada, com a idade de 5/6 anos apanhei a doença assim como todas as crianças dessa aldeia. Os soldados metropolitanos do destacamento (deve ter sido um pelotão da C.CAC 674) sediada em Fajonquito, apesar da boa vontade não puderam fazer nada e houve muitas mortes. A única terapia de que dispúnhamos era esperar pela saída do sol e tomar um banho de areia, rebolando no solo e esfregando o corpo fraco e esbranquecido com a areia quente junto à parada do destacamento militar. 

Sobreviveram os mais fortes ou os mais sortudos, como eu, para poder contar a história, passados que foram mais de 50 anos. 

Obrigado ao JERO por me lembrar uma parte da minha vida.

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé

PS: O ex-Furriel JERO deve ser da época que as mulheres das nossas aldeias da fronteira norte cantarolavam em grupos de idades durante as festas de "Mandjuandades" assim:

"O Capitão pode ser o Chefe, o mandão, mas quem me dá uma "picada" é o Furriel, meu Enfermeiro e amigaço". E ao pronunciar a palavra "picada", apontavam com o dedo lá para o sitio mais sagrado do corpo.

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigada amigo JERO, pelo excelente texto, que infelizmente de belo nada tem, mas que ilustra bem as condições de saúde daquela população, que nós tão bem conhecemos.
Actualmente o estado sanitário não deve ser muito melhor, porque com a nossa saída e após a independência, as estruturas de saúde montadas, sofreram uma destruição e abandono.
A minha filha esteve por duas vezes na Guiné, nos anos 2016/17, pelo Instituto Nacional de Saúde, Dr. Ricardo Jorge-(INSA), num programa da OMS, e relatou-me as carências, que existem, apesar de ter ficado muito sensibilizado com os naturais , ao ponto de desejar lá voltar.
Fotografou o antigo Hospital Militar, completamente abandonado, que eu ao ver as fotos, as lágrimas, afloraram aos meus olhos!...Coisas da vida... já passou por nós há muitos anos... mas não as esquecemos.
Um abraço amigo.
M. Arminda