sexta-feira, 9 de março de 2018

P1005 - FALTA DE MATERIAL...


O FÉLIX E O “MORTEIRO 60"

Manuel Frazão Vieira
FÉLIX, nome próprio, nome de pessoa, nome de origem latina que significa favorecido dos deuses. Mas, deste Félix que vos falo, parece-me que a sua meninice, adolescência e juventude não foram assim tão bafejadas pelos afectos ou sorrisos dos deuses ao ponto de ter sido, na sua terra, uma das "crianças que nunca foram meninos". Contudo, soube crescer, soube vencer e fez-se homem.

O Félix era, é, natural da cercania de Torres Novas. Um torrejano humilde, bom rapaz, educado e alto quanto baste. Fazia parte do meu Grupo de Combate, o 1º Grupo da Independente CCAV 8351, tão zelosamente, comandada pelo meu bom amigo e nosso camarigo da Tabanca do Centro, o ex-Cap. Mil.º Vasco Augusto Rodrigues da Gama.

Conheci o Félix na noite de 10 de Julho de 1972, no RC3 (Regimento de Cavalaria 3), em Estremoz, vindo de Castelo Branco, onde ele e seus companheiros tinham terminado a recruta. Iam agora fazer a especialidade, dar corpo à CCAV 8351. Partiríamos todos em 27 de Outubro deste mesmo ano de 1972 para a Guiné-Bissau, donde regressaríamos a 27 de Agosto de 1974.

Já no Teatro das Operações, investi todos os companheiros do meu Grupo de Combate das principais tarefas e responsabilidades que se exigiam para o bom exercício da tarefa militar-operacional e que se impunham numa situação de guerra de guerrilha traiçoeira e subversiva com o sucesso ou insucesso aferido e dependente de uma atempada manobra de informação ou contra-informação. Todos e cada um, no meu Pelotão, sabiam o que fazer numa situação de conflito. Talvez, por isso, bem organizados e disciplinados, penso, os mesmos que embarcaram comigo para a Guiné, foram os mesmos que comigo regressaram. Viemos todos, graças a Deus!

Ao Félix coube a responsabilidade do transporte e manuseamento do "morteiro 60" em todas as operações. Não faço a mínima ideia, não me lembro, por que motivo lhe atribuí aquela tarefa e responsabilidade. Provavelmente, pelo seu espírito de total disponibilidade e iniciativa, admito ter sido ele próprio a disponibilizar-se para o efeito. 

Em 6 de Janeiro de 1973, pelas 06H00, o meu Grupo de Combate sai de "Berliet" do aquartelamento de Aldeia Formosa em direcção a Mampatá com o objectivo de fazer um patrulhamento a Colibuia, lá para os lados do inferno de Cumbijã em direcção a Guidali, passando por Dubichenque.

Alguns quilómetros depois de Mampatá, somos "descarregados" da "Berliet", estaríamos já a uns 25 Kms de Aldeia Formosa prontos para iniciar o patrulhamento a caminho do objectivo - Colibuia. É, então, aqui que surge a narrativa do "morteiro versus Félix".

Ainda alguns companheiros desciam da "Berliet", naquela manhã fresca de nevoeiro, quando o Félix se chega junto a mim, muito triste, cabisbaixo, enrolando as palavras que queriam sair, em catadupa e imperceptíveis, mas, que ouvi: "Oh!, meu Alferes, esqueci-me do morteiro, no quartel". Tremi, mas não caí. O Félix, naturalmente, temia o pior. Porém, nada lhe aconteceu, pois, teve a minha compreensão. Quem nunca falhou na vida que atire a primeira pedra!


A "Berliet" ainda não tinha regressado ao quartel e, depois de eu ter informado imediatamente o condutor do acontecido pedi-lhe para esperar um pouco. Num ápice dei a notícia ao pelotão e reuni rápido, no local, com os meus três excelentes Furriéis, o Albuquerque, o Costa e o Martins. A minha proposta era voltar ao quartel para trazer o "morteiro 60". Sentia-me confiante e protegido com aquela arma ultra ligeira de apoio de infantaria, por ser uma arma de grande precisão em todas as fases de combate no apoio de fogo ao nível de pelotão ou de companhia. Não arriscava sair dali sem aquela arma protectora.

Eu tinha de decidir e decidi. Decidi ir buscar o morteiro esquecido - não havia tempo a perder. Quem vai, quem não vai com o condutor - que, simpaticamente, se tinha apercebido da minha angústia e tinha cedido ao meu pedido. Fui eu próprio, acompanhado, também, do aflito Félix e mais quatro seguranças. Correu tudo bem, mas tenho consciência que fiz o que nunca deveria ter feito, em termos de NEP's e ordem militar, pelo facto de, unilateralmente, ter suspendido o comando do pelotão, numa zona de guerra, zona operacional.

Assumi a responsabilidade, arrisquei seguro e consciente do valor dos três bons Furriéis que tinha num Grupo de Combate adulto, homens bem formados e que nunca me abandonaram. Pretendi com a minha deslocação ao quartel  poder resolver males maiores de cariz superveniente e, caso fosse necessário, explicar aos meus superiores o porquê daquela aventura, nomeadamente, dar cobertura justificativa à louvável atitude do condutor que, voluntariamente, se tinha prontificado a ajudar-me. É que, é importante saber pedir! 

O Furriel Costa, o mais antigo dos meus Furriéis, ficou a comandar o pelotão na minha ausência. Ordenei que emboscassem na mata afastados da picada, sem fumar, silêncio absoluto e que descansassem... até ao meu regresso. Regressei, regressámos bem, aptos e disponíveis para prosseguir o patrulhamento no cumprimento do objectivo que nos fora pedido. Acompanhou-nos, passivamente, o "Morteiro 60" do Félix mas, felizmente, não foi necessária a sua requisição ou intervenção. 

Manuel Frazão Vieira

3 comentários:

ze manel cancela disse...

SÓ!!!!!Um grande abraço,camarigo Manuel Frazão Vieira...Pela tua nobre atitude.....

Anónimo disse...

Fizeste-me muita falta, Manuel Frazão Vieira.

Roubaram-me o melhor Alferes para a Chamarra, sem me darem cavaco; sorte a tua que não viveste o inferno do Cumbijã/Nhacobá!

Quanto aos teus furriéis- grandes homens- o Costa e o Azambuja Martins. Que bem se portaram para as bandas de Nhacobá!

O Felix continua meu amigo e a telefonar-me amiúde.Quando a saúde era mais robusta encontrava-me com ele com o Zé Carlos e com o Felício para trincar em casa de um ou de outro e também num restaurante que serve um bacalhau de se lhe fazer continência!

Grande abraço e até breve se me conseguir endireitar....

Vasco A. R. da Gama

Hélder Valério disse...

Caro Manuel Vieira

Só agora li este artigo.
Percebe-se a angústia da necessidade de uma tomada de decisão e das responsabilidades daí decorrentes.
Fiquei com a ideia que tudo foi muito bem 'pesado', muito bem pensado.
E, felizmente, saiu bem.

Um abraço
Hélder Sousa