domingo, 20 de agosto de 2017

P939: JERO - LEMBRANÇAS DE ÁFRICA

O “CAMPO DE OURIQUE”

JERO
Embora ainda algo “chateado” por razões que são conhecidas da maioria dos ex-combatente – e que me dispenso de recordar - confesso que raramente perco as crónicas de António Lobo Antunes, que semanalmente são pulicadas na revista “ VISÃO”.

Na edição nº. 1275 (10/8 a 18/8/2017) recordava ele um militar dos seus tempos de Angola, tratado na Companhia pelo Pontinha mas que não se chamava “Pontinha”. Mas que gostava que lhe chamassem Pontinha, que era o nome do sítio perto de Lisboa onde morava, um bairro pobre cheio de malta baril.

Nessa unidade militar, que cumpriu parte da sua comissão na Baixa de Cassange, o “Pontinha” fez a sua “guerra” na Messe de Oficiais e tratava pessoalmente das refeições do Alferes-Médico António Lobo Antunes. Que ganhou uma amizade especial pelo Pontinha e que o veio a reencontrar várias vezes já na vida civil quando dos convívios que a maioria dos militares faz anualmente, recordando os velhos tempos da guerra do Ultramar. Um dia António Lobo Antunes perguntou pelo Pontinha e disseram-lhe que tinha morrido, depois de uma vida familiar complicada que metia demasiados copos de vinho tinto.

Termina o seu conto recordando as saudades que tem dele e da esperança de o voltar a encontrar quando Deus o chamar. Está certo que o Pontinha, esteja onde estiver, quando o reencontrar na vida eterna continuará a tratar de si.

Esta crónica, que conto resumidamente, fez-me lembrar alguns militares dos meus tempos da Guiné.

O "Campo de Ourique"
Carlos Dias Rodrigues era um alfacinha de gema. Cenógrafo na vida civil foi na Companhia “675” 1º Cabo condutor. Opinioso e de palavra fácil, percebia-se que se sentia melhor junto de Sargentos e Oficiais do que junto dos seus «pares».

Era metódico e cuidadoso na sua especialidade e, sempre que podia, questionava as ordens e... não deixava de dar troco ao seu furriel das «viaturas»... Era conhecido pelo «Campo de Ourique», bairro do seu nascimento e criação em Lisboa.

Durante a fase mais complicada da vida da Companhia em termos operacionais «apanhou» com um mini-estilhaço de granada que o fez cliente assíduo do Posto de Socorros.

Queixava-se da cabeça e tantas queixas fez que a sua crónica dor de cabeça nem sempre foi levada muito a sério. Pelo menos com a «seriedade» que o «Campo de Ourique» jul­gava que merecia. Julgamos que o seu «mini-estilhaçado» nunca foi localizado!

Depois de um ano de guerra muito dura ganhámos a paz e foi possível o regresso das popula­ções e a execução de melhorias do aquartelamento. O “Campo de Ourique” foi sempre colaborante, embora com pecadilho de anunciar «super-produções»… que demoraram o seu tempo a realizar. Mas finalmente fez obra e foi o grande responsável pelo embelezamento da “Avenida Capitão de Binta”, com uma gi­gantesca “estrela” feita com garrafas de cerveja... Garrafas va­zias, está claro...

Depois... no regresso foi sempre presença assídua nos con­vívios da Companhia – referindo sempre que estava por perto de alguém ligado ao Serviço de Saúde o célebre estilhaço da cabeça.

Com estilhaço ou sem ele, esteve ligado a um dos mo­mentos mais conseguidos de uma das festas realizadas em Lisboa. Ligado ao teatro – recordamos que era cenógrafo – conseguiu bilhetes para a malta da “675” que, depois do almoço, foi assistir a uma peça que era protagonizada por Ja­cinto Ramos e Irene Cruz.

Durante a representação o actor princi­pal – um “grande senhor” do teatro e do cinema – in­terrompeu a cena para dedicar algumas simpáticas palavras aos ex-combatentes da “675”, que se encontravam na plateia. Foi um momento muito bonito que ficámos a dever ao... Campo de Ourique.

Depois os anos passaram e... o «Campo de Ourique» foi sempre aparecendo, mas percebia-se que já não era o mesmo.

Num dos últimos convívios ficámos ao pé dele. Conversá­mos muito e ouvimos da sua boca um testemunho impressio­nante. Tinha um filho apanhado pela droga. Estava a fazer uma autêntica «Via Sacra» pelos locais onde se vendia e consumia droga para tentar perceber o que tinha levado o seu filho para aquela «zona da vida»... tão perto da morte. Já tinha ido vezes sem conta ao Casal Ventoso e não conseguia perceber a opção de vida dos drogados.

Era um homem amargurado. Muito amargurado. Desconhecemos como acabou o drama que o atormen­tava. Julgamos que não acabou bem.

Um homem da cidade, da grande cidade, refugiou-se nos últimos anos da sua vida na Madeira. Na Ilha de Porto Santo. Onde veio a falecer em 18 de Outubro de 2005.
Recordamos com respeito o «Campo de Ourique». E o Pontinha.

E que o Mestre António Lobo Antunes nos perdoe a ousadia de lhe fazer “concorrência” com as minhas “Lembranças de África”.


JERO

1 comentário:

joaquim disse...

Um texto cheio de sensibilidade, com tu, Jero amigo, sabes expressar em tudo o que escreves.

Deixa lá o Lobo Antunes, o António, claro, que aproveita para escrever umas ficções sobre a guerra, mas não te chega aos calcanhares em humanidade.

Grande abraço
Joaquim