quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

P869: A PROPÓSITO DE UM DESABAFO

ERRANTES E CAMINHANTES

Manuel Frazão Vieira
Uma saudação a todos os companheiros ex-combatentes, da Tabanca do Centro, em especial ao nosso companheiro-mor, Joaquim Mexia Alves.

Li, apreciei e notei a sua "revolta", face aos atropelos e devaneios que envolvem a nossa sociedade, ainda, instável, não obstante alguma serenidade e paz social e optimismo que se desejam, mas sem dinheiro nos bolsos, carente de valores e objectivos, em visível dificuldade.

Como eu compreendo o seu "desabafo" e "revolta", mister dos tempos que correm, numa luta pessoal de procura e apaziguamento contra a ordem e o paradigma societário dos anseios e comportamentos humanos que nos envolvem.

Neste mundo de virtudes, defeitos e contradições, todos somos errantes e caminhantes. Errantes, sim, porque somos humanos, falíveis e assíduos mergulhadores nas águas do mal. Caminhantes desde sempre, mas aliados com a imperfeição, o erro, a dúvida e a mesquinharia, procurando o equilíbrio e a segurança na obtenção do melhor esteio para a vida. Não nos é lícito parar - somos caminhantes.

Faz mal parar, porque quem está parado, quem não caminha, corrompe-se. Estou a lembrar-me da água parada, a água estagnada, a água que não corre ... fica corrompida. Para nós, seres pensantes, não basta "girar". Não se pode confundir o "caminhar" com o "girar". Os que giram são errantes, não têm caminho definido, nem rumo, porque giram para aqui, giram para ali, sem caminharem na vida. Não são caminhantes.

A "revolta" e o "desabafo" do bom amigo e camarigo Joaquim Mexia Alves são, no fundo, as necessidades, o anseio e a insatisfação resistente do que deveria ser e não é. É a luta de todos nós caminhantes.

Um bom "desabafo" com suporte, civismo e dignidade é salutar e faz-nos bem, se emitido na hora certa ou momento oportuno. Liberta-nos de um certo "quid" enrolado na garganta que nos afecta, alivia a mente e robustece o "animus".  Quantas vezes a nossa vida é um labirinto, porque vagueamos para aqui, vagueamos para ali e, porque, não sabemos caminhar. Falta-nos audácia e combatividade para caminhar e seguir em frente.

Há, na verdade, um momento único, belo e concertante na nossa vida de ex-combatentes da Tabanca do Centro, que são os encontros mensais de amizade e convívio consubstanciados em lautos e reconfortantes almoços. Aqui se alicerçam conversas e se reforçam amizades de antanho. É, de resto, um momento de libertação. Há um dever de memória nestes encontros em que, lado a lado, recordamos nacos da nossa história pessoal, militar e até familiar, deixando para trás o "silêncio dos arquivos".

São presenças com um alcance enorme onde se fala, recorda e, porventura, se desabafa. São encontros de vida e de vidas com histórias e acontecimentos que a cada um pertencem e a todos enriquecem. Somos os homens que, sem pedir ou requer, um dia nos levaram a conhecer novas terras, novas gentes e outras culturas. Suportámos a dureza da uma vida num ambiente desconhecido e soubemos ultrapassar as dificuldades reconhecidas e a incerteza futura criada num malfazejo cenário de guerra, onde a vida ou a morte marcavam os seus ditames.

Somos nós, aqueles jovens da década de 60 e 70 do Séc. XX que, hoje, nestes saudáveis convívios se reconfortam e dão asas ao coração recheado de saudade e afectos que impõem nestes encontros tempos de paixões, recordações, de encanto e desencanto.    

Na minha última presença no almoço-convívio, a certa altura, veio-me à mente a seguinte questão: afinal, o que é que arrasta toda esta "rapaziada" da minha geração, ex-combatentes, uns mais velhos, outros nem tanto, a estes convívios mensais imbuídos numa atitude afectiva sem limites, ao jeito de uma espiritualidade de sentimentos?

Poderão ser várias as respostas ou motivações. Para mim, retive-me numa: a necessidade de dar vida e manter uma amizade nascida num tempo de recruta ou de especialidade ou já no TO. Foram amizades criadas num tempo tão jovem, com idades entre os 19 e 22 anos, em que o lema requeria espírito de camaradagem, solidariedade e companheirismo, onde se compartilharam sentimentos, angústias, numa idade de sonhos, ambições e desilusões. Nestas idades tão jovens e sonhadoras tudo fica registado e formatado até que a memória o não ignore e o tempo o não apague. Criaram-se raízes, a árvore da amizade cresceu, há que a regar, cultivar e sustentar.

É o que se está a fazer, em Monte Real. Reforça-se a memória, enquanto  "consciência de um povo inserida no tempo" - Fernando Pessoa.

A foto com os dois amigos tabanqueiros que o nosso bom camarigo Joaquim Mexia Alves se dignou publicar no seu texto "Desabafo", in Tabanca do Centro, é a mensagem real do que se pretende, isto é,  a manutenção e continuidade de uma amizade presente que se quer reconhecida no tempo e para o tempo.

Leiria, 18 de Janeiro de 2017
Manuel Frazão Vieira 


3 comentários:

JD disse...

A revolta e o desabafo manifestados pelo Mexia Alves em virtude das dificuldades sociais, serão resultado do espírito crítico da educação cívica que terá adquirido por sua conta, ou herdada de família, já que o Estado, desde que me lembro, nunca teve essa preocupação de apetrechar o povo com o saber que estimula ao inconformismo, ao debate de diferentes problemas de âmbito colectivo, nem à cidadania activa; condições que valorizam o Bem Comum e protegem o Interesse Público.
A nossa sociedade ainda é manipulada com imensa facilidade, e ao Estado, como às organizações políticas, sobram meios colectivos para pagar assessorias convenientes sobre o domínio que exercem, enquanto desprezam a educação e formação cívica que valorize os cidadãos. Há, pois, que descobrir e incrementar fórmulas de auto-desenvolvimento social que nos apetrechem ao confronto com o isolamento subserviente em relação aos poderes organizados no sistema ditatorial. Não são os votos de quatro em quatro anos que garantem um sistema democrático, conforme, aliás, os últimos quarenta e picos anos são demonstração irrefutável de demagogia e desprezo pela Nação.
Abraços fraternos
JD

joaquim disse...

Meus queridos camarigos

Muito obrigado pelas vossas palavras, pela vossa solidariedade, mas sobretudo por me fazerem sentir que ainda há muita gente que pensa e acredita nos valores da honra, da honestidade, da franqueza, da verdade e da amizade.

Para todos vós, um enorme e amigo abraço do
Joaquim

Anónimo disse...

Parabéns Camarigo Manuel Frazão Vieira. Excelente texto que se lê e relê com pleno agrado.E que sinto necessidade em sublinhar quando se refere à necessidade de«... dar vida e manter uma amizade nascida num tempo de recruta ou de especialidade ou já no TO. Foram amizades criadas num tempo tão jovem, com idades entre os 19 e 22 anos, em que o lema requeria espírito de camaradagem, solidariedade e companheirismo, onde se compartilharam sentimentos, angústias, numa idade de sonhos, ambições e desilusões. Nestas idades tão jovens e sonhadoras tudo fica registado e formatado até que a memória o não ignore e o tempo o não apague. Criaram-se raízes, a árvore da amizade cresceu, há que a regar, cultivar e sustentar.» Termino recordando o lema da minha CCaç.675. (A Amizade) Nunca Cederá.JERO