sábado, 17 de outubro de 2015

P708: NA RESSACA DE UMA TRAGÉDIA

MALDITO MAR

O naufrágio ocorrido há dias na entrada da barra da Figueira da Foz que causou cinco mortos trouxe-me à memória os gritos lancinantes que ouvia na minha juventude vivida ali mesmo no Largo da Má Língua, onde nos invernos mais rigorosos os botes e as bateiras repousavam serenos, fugidos das ondas alterosas que nas marés mais fortes lambiam as portas das nossas casas. Corriam os anos cinquenta e os naufrágios dos pequenos barcos de pesca costeira e também das traineiras ocorriam com alguma infeliz regularidade.

Numa vila eminentemente piscatória a esmagadora maioria dos meus amigos de brincadeira e companheiros de escola provinham de famílias de pescadores e desde cedo me habituei e aprendi a estimá-los e a respeitar a tão ingrata profissão de seus pais. 
Mantenho, felizmente ainda hoje, todas as amizades de então, feitas na melhor altura das nossas vidas de rapazes livres, independentemente dos percursos de vida de cada um de nós.

Se no meu tempo de miúdo de dez anos grande parte da população dependia da pesca, o mesmo acontecia, com muito maior acuidade, nos tempos do meu pai, nascido em 1910. Recordo-me de o ouvir contar, como só ele o sabia fazer, as grandes tragédias marítimas a que assistiu e que o marcaram também no apreço pelos pescadores de Buarcos.

Essa consideração e estima que o meu pai lhes dedicava levou-o a escrever com catorze ou quinze anos (1924/25?) o poema que ele intitulou de Balada do Mar e que é na realidade um grito de revolta contra o mar feroz, cruel e traiçoeiro.

Como foi também Outubro que me levou minha mãe e meu pai, achei por bem dar à estampa, pela primeira vez, o poema de meu pai.

Vasco da Gama       

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BALADA DO MAR

No mar imenso rugem procelas                                     
Que a vida roubam aos mareantes;
Fúria assassina que rasga as velas
Aos frágeis barcos dos navegantes

Mar traiçoeiro, mar de pavor
Monstro sinistro sempre a uivar
Orfãos, viúvas, pranto e dor
São obra tua, maldito mar.

A tua espuma- luar de Janeiro
De alva brandura, triste e gelado
Parece arminho imaculado
E é a mortalha do marinheiro.

Água maldita, lençol mortuário
De corpos frios, a balouçar
Brilhas na noite como um sudário
Num cemitério, feito ao luar.

        E como a fera, que em sua gruta
        Cheia de fome finge dormir
        E está alerta, d'ouvido á 'scuta
        Para melhor a presa atrair

        Assim o monstro finge um sossego
        Que é traição; mas de repente
        Ergue-se uivando, de furor cego
        E espalha a morte, raivosamente...

Goela sinistra e tenebrosa
Tudo engole sem distinção
Frágil batel ou nau alterosa
Loura criança ou velho ancião

Quantos mistérios desconhecidos
Maldito mar, em ti ocultas
Quantos cadáveres apodrecidos
E gangrenados em ti sepultas?

Oh! tantos, tantos, que o peito sente
Ondas de pranto em si brotar
Oh! tantos, tantos, que a nossa mente
De pavor treme só de o pensar!


 Vasco Traqueia da Gama                           



Nota:  No original, um pouco sumido, pode ler-se uma anotação manuscrita da sua professora e amiga,  
D. Christina Torres, figura grande da Figueira da Foz na luta pela Liberdade.

5 comentários:

Carlos Pinheiro disse...

Depois de mais uma tragédia, que, segundo se diz, popderia ter sido minimizada se os meios de socorro estivessem a funcionar, mesmo assim, dá gosto ler um poema destes que descreve bem o mar e a sua força que os pescadores conhecem tão bem e de quem têm todos os medos naturais.
Obrigado grande Almirante.

Juvenal Amado disse...

O descrito pelo o Vasco é o retrato de todas as vilas piscatórias, que foram contabilizando os naufrágios e as mortes no Mar, onde colhiam o seu sustento e era no fundo a sua vida.
Na Nazaré que conheci, lembro bem a linha de barcos alinhados à pedra do Guelhim, da ida para o mar dos homens, das tempestades, do Salva-Vidas, enorme bote a remos que ficava quase na perpendicular a cada vaga, do barulho das mulheres durante a noite a correrem para a praia envoltas nos seus xailes negros, as suas preces no areal. A fome no Inverno quando eles não podiam sair para a faina, muitas mulheres pediam depois esmola em Alcobaça.
As viúvas essas nunca mais passeavam no passeio marginal, costume esse que julgo que persiste bem como não usarem relógio, quando esse se tornou um bem ao alcance de todos.

Quanto ao poema só posso ter um comentário Maravilhoso e cheio de intensão.

Parabéns Vasco um abraço

Anónimo disse...

Bom dia Vasco da Gama Amigo.
Obrigado pela partilha,que ficará a constituir uma página inesquecível no nosso Blog.Os parabéns são extensivos a quem ilustrou (Miguel Pessoa).
É um grande privilégio tê-los por aqui tão perto.
Grande abraço,
JERO

joaquim disse...

Caro Vasco

Faço minhas as palavras do Jero.

Percebe-se agora claramente de onde te vem a veia poética.

Estes versos, este poema, tem uma força que toca e mexe com a gente.

Só alguém com um grande coração escreve assim e assim consegue transmitir o que lhe vai na alma.

Obrigado por partilhares connosco este tesouro.

Grande e amigo abraço
Joaquim

Anónimo disse...

Amigo Vasco.

Uma maravilha, os versos do seu pai, que muito bem descreve o resultado, de um mar embravecido.
Como sou de uma cidade piscatória, fez-me recordar algumas cenas de angústia e tristeza dos familiares dos pescadores, que testemunhei em criança.
Muitas vezes via as suas mulheres e viúvas irem pedir a proteção e eterno descanso, ao Senhor Jesus do Bonfim, cuja Capela se situava muito próxima da casa que habitei.
Obrigada por este grande presente!.. e sobre ele e mais um nefasto naufrágio na nossa costa, tudo está dito acima, pelos outros amigos. Vejo que herdou também do seu pai, a sua veia poética.
Um grande abraço.
Mª Arminda