JUNTO
AO FORTIM DO DANGE, DEMBOS, ANGOLA
EM
TEMPO DE PAZ ACONTECEU TRAIÇÃO
Na década de
sessenta/setenta, de 1961 a 1975, tempo que durou a guerra do ultramar, os
soldados que foram chamados e obrigados a entrar na guerra eram rapazes na flor
da idade, obrigados a deixar para trás uma vida, e mais importante, a sua juventude,
para se tornarem Homens com “H” grande,
responsáveis - como se dizia, homens de
barba rija – que, sofrendo, souberam dignificar com sangue, suor e lágrimas
a sua linda Bandeira e o bom nome da sua Pátria, Portugal, e que entre si
souberam criar dentro do seu peito uma amizade pura, respeitando o lema “Um por Todos e Todos por Um”.
A verdadeira e
triste história que vou contar mostra como era cumprido esse lema “Um por Todos, Todos por Um”. Aconteceu
depois do 25 de Abril de 1974, já quando se falava que a guerra tinha terminado
e que passava a haver paz.
No Norte de
Angola, nos Dembos, fazíamos as colunas pela estrada que ligava Luanda a
Carmona - apelidada de estrada do café.
A coluna era comandada pelos nossos militares, era a nossa tropa a proteger os
camionistas assim como todos os veículos civis; havia por esse motivo controlo
na zona protegida pelo meu Batalhão BART/6222/73 - no Piri, onde se encontrava
uma Companhia nossa. Era uma altura
em que os grupos dos partidos de libertação já tinham começado a deixar as
matas e a aquartelar-se nas povoações.
Quando ninguém
o imaginava aconteceu o pior junto ao Fortim do Dange, com duas viaturas
militares nossas. Não recordo a que Quartel pertenciam mas, ou eram de Nambuangongo,
ou de Santa Eulália, ou do Zemba. As viaturas dirigiam-se ao Quartel do PAD (*), na
vila de Quibaxe, local onde se encontrava a minha companhia. Tinham como missão
recuperar uma viatura que tinha sido reparada naquela unidade.
Os militares
dessas Berliet aproveitaram para se incorporar na coluna desse dia,
colocando-se na frente. Depois de já terem passado a ponte do rio Dange
inesperadamente repararam que havia barro na estrada. Tinha chovido
torrencialmente e a Berliet que ia à frente ao passar por aquela mancha de
barro entrou em despiste e tombou, tendo os militares sido projectados pela
mata fora.
Nesse momento,
do outro lado da estrada rebentou uma granada perto da viatura tombada e dos
militares espalhados pela mata, feridos. O rebentamento não causou ferimentos
corporais a ninguém, felizmente, embora fosse intenção do IN causar danos,
matar.
Do acidente
não houve mortos, mas um ficou com uma perna partida, outro com um braço
partido e os restantes com vários ferimentos, e aterrorizados.
O nosso
quartel era o mais próximo; fomos por isso chamados, tendo-nos deslocado de
imediato com o piquete e a ambulância em socorro dos acidentados.
Ao chegarmos
encontrámos um cenário aterrador; ainda hoje, ao recordar, custa-me muito,
caiem-me as lágrimas por tudo o que presenciei - o sofrimento e os rostos
aterrorizados dos militares e dos civis que integravam a coluna, estes últimos prontificando-se
a fazer a protecção com as suas armas, utilizando para o efeito as armas dos
militares feridos.
Na ambulância seguiram
os mais necessitados - os feridos mais graves - sendo os restantes transportados
para a nossa enfermaria em viaturas civis.
Foi então que percebemos
as causas do acidente. Os elementos do grupo IN daquela zona, para mostrarem a
sua força aos grupos rivais de outros Partidos, colocaram, metidos e cobertos
com o barro, uns engenhos artesanais em aço, tipo aranha, com várias bases em
bicos afiados.
Resultou daí o rebentamento dos pneus, o que fez com que a Berliet
se despistasse, sem que o condutor pudesse fazer algo para o evitar. Para
agravar a situação lançaram então uma granada para causar danos aos nossos
soldados e civis.
Na enfermaria
o trabalho foi todo feito sem olhar a esforços pelo nosso médico e por nós,
enfermeiros, tendo também participado o enfermeiro do PAD. Aos dois militares
com a perna e braço partidos foi-lhes aplicado gesso, tendo sido evacuados para
o hospital militar de Luanda. Os outros feridos ligeiros foram todos socorridos
por nós; o pior de tudo era o trauma que todos eles apresentavam, pois, nada tinha
previsto tal acontecimento. Na nossa cabeça reinava a paz e não a guerra - era
o que nos transmitiam a todos nós militares no norte de Angola.
Tudo aquilo
foi muito doloroso para aqueles nossos camaradas. O alferes e o furriel das
duas viaturas queriam regressar ao seu quartel e o nosso médico aconselhou que
eles passassem a noite na nossa enfermaria. Nós enfermeiros, sem regatear, para
haver mais espaço juntámos as camas, onde a muito custo os deitámos um por um.
O mais
traumatizado, que precisava de mais atenção, era o enfermeiro dos acidentados;
ofereci-lhe a minha cama, onde o deitei e amarrei cuidadosamente com os
lençóis, tendo passado a noite toda sentado numa cadeira na enfermaria, de
vigia aos nossos camaradas que sofriam. A muito custo lá adormeceram mas,
durante a noite um levantou-se aterrorizado a gritar, eu tentei calmamente
deitá-lo mas ele caiu na cama inanimado.
Chamei então o médico, que o socorreu,
tendo-o colocado a soro; aconselhou-me a vigiá-lo de perto, pois estava sob o efeito
do que se tinha passado. A situação deste camarada acabou afinal por não
melhorar, tendo que ser também evacuado para o hospital militar de Luanda.
Durante a
noite alguns destes camaradas, perturbados por sonhos ou pesadelos, gritaram em
altos gritos de terror, o que me levou a tentar ajudar a acomodá-los, aconchegando-os
nas camas com as mantas. Ainda hoje choro ao recordar aquele cenário de
sofrimento, mas, sinto um fiozinho de satisfação no meu peito pelo meu dever
cumprido - o que fiz foi feito de coração aberto, para bem dos meus camaradas,
combatentes como eu.
No dia seguinte
depois do almoço já se encontravam um pouco mais calmos; o nosso pessoal foi
escoltá-los ao quartel deles, sendo que muitos não recordavam o que tinha
acontecido.
A amizade que
une esta geração sofredora soube criar entre si laços de companheirismo e
solidariedade que irão durar até ao último momento da sua vida. Estes
rapazinhos, que as circunstâncias transformaram rapidamente em Homens
com H grande, não precisam que os tratem por heróis, mas sim que os
respeitem e que lhes dêem o que merecem, que é a devida atenção.
Manuel “Kambuta dos Dembos” Lopes
(*) DAP - Grupo de apoio de militares com especialidade de mecânicos - auto, electricistas-auto, que davam apoio aos batalhões da zona, neste caso na zona dos Dembos, Quibaxe.
1 comentário:
Obrigada Manuel Lopes por mais estória de vida, com sofrimento, mas também com a satisfação do dever cumprido.
"Elas não matam, mas moem"!.. e, por muitos anos passados, estas vivências vêm quási sempre, à memória e tocam-nos profundamente.
Um grande abraço.
Mª Arminda
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