domingo, 11 de outubro de 2015

P706: MEMÓRIAS DO KAMBUTA

JUNTO AO FORTIM DO DANGE, DEMBOS, ANGOLA
EM TEMPO DE PAZ ACONTECEU TRAIÇÃO


Na década de sessenta/setenta, de 1961 a 1975, tempo que durou a guerra do ultramar, os soldados que foram chamados e obrigados a entrar na guerra eram rapazes na flor da idade, obrigados a deixar para trás uma vida, e mais importante, a sua juventude, para se tornarem Homens com “H” grande, responsáveis - como se dizia, homens de barba rija – que, sofrendo, souberam dignificar com sangue, suor e lágrimas a sua linda Bandeira e o bom nome da sua Pátria, Portugal, e que entre si souberam criar dentro do seu peito uma amizade pura, respeitando o lema “Um por Todos e Todos por Um”.

A verdadeira e triste história que vou contar mostra como era cumprido esse lema “Um por Todos, Todos por Um”. Aconteceu depois do 25 de Abril de 1974, já quando se falava que a guerra tinha terminado e que passava a haver paz.

No Norte de Angola, nos Dembos, fazíamos as colunas pela estrada que ligava Luanda a Carmona - apelidada de estrada do café. A coluna era comandada pelos nossos militares, era a nossa tropa a proteger os camionistas assim como todos os veículos civis; havia por esse motivo controlo na zona protegida pelo meu Batalhão BART/6222/73 - no Piri, onde se encontrava uma Companhia nossa. Era uma altura em que os grupos dos partidos de libertação já tinham começado a deixar as matas e a aquartelar-se nas povoações.

Quando ninguém o imaginava aconteceu o pior junto ao Fortim do Dange, com duas viaturas militares nossas. Não recordo a que Quartel pertenciam mas, ou eram de Nambuangongo, ou de Santa Eulália, ou do Zemba. As viaturas dirigiam-se ao Quartel do PAD (*), na vila de Quibaxe, local onde se encontrava a minha companhia. Tinham como missão recuperar uma viatura que tinha sido reparada naquela unidade.

Os militares dessas Berliet aproveitaram para se incorporar na coluna desse dia, colocando-se na frente. Depois de já terem passado a ponte do rio Dange inesperadamente repararam que havia barro na estrada. Tinha chovido torrencialmente e a Berliet que ia à frente ao passar por aquela mancha de barro entrou em despiste e tombou, tendo os militares sido projectados pela mata fora.
Nesse momento, do outro lado da estrada rebentou uma granada perto da viatura tombada e dos militares espalhados pela mata, feridos. O rebentamento não causou ferimentos corporais a ninguém, felizmente, embora fosse intenção do IN causar danos, matar.

Do acidente não houve mortos, mas um ficou com uma perna partida, outro com um braço partido e os restantes com vários ferimentos, e aterrorizados.

O nosso quartel era o mais próximo; fomos por isso chamados, tendo-nos deslocado de imediato com o piquete e a ambulância em socorro dos acidentados. 

Ao chegarmos encontrámos um cenário aterrador; ainda hoje, ao recordar, custa-me muito, caiem-me as lágrimas por tudo o que presenciei - o sofrimento e os rostos aterrorizados dos militares e dos civis que integravam a coluna, estes últimos prontificando-se a fazer a protecção com as suas armas, utilizando para o efeito as armas dos militares feridos.

Na ambulância seguiram os mais necessitados - os feridos mais graves - sendo os restantes transportados para a nossa enfermaria em viaturas civis.

Foi então que percebemos as causas do acidente. Os elementos do grupo IN daquela zona, para mostrarem a sua força aos grupos rivais de outros Partidos, colocaram, metidos e cobertos com o barro, uns engenhos artesanais em aço, tipo aranha, com várias bases em bicos afiados. 

Resultou daí o rebentamento dos pneus, o que fez com que a Berliet se despistasse, sem que o condutor pudesse fazer algo para o evitar. Para agravar a situação lançaram então uma granada para causar danos aos nossos soldados e civis.

Na enfermaria o trabalho foi todo feito sem olhar a esforços pelo nosso médico e por nós, enfermeiros, tendo também participado o enfermeiro do PAD. Aos dois militares com a perna e braço partidos foi-lhes aplicado gesso, tendo sido evacuados para o hospital militar de Luanda. Os outros feridos ligeiros foram todos socorridos por nós; o pior de tudo era o trauma que todos eles apresentavam, pois, nada tinha previsto tal acontecimento. Na nossa cabeça reinava a paz e não a guerra - era o que nos transmitiam a todos nós militares no norte de Angola.

Tudo aquilo foi muito doloroso para aqueles nossos camaradas. O alferes e o furriel das duas viaturas queriam regressar ao seu quartel e o nosso médico aconselhou que eles passassem a noite na nossa enfermaria. Nós enfermeiros, sem regatear, para haver mais espaço juntámos as camas, onde a muito custo os deitámos um por um.

O mais traumatizado, que precisava de mais atenção, era o enfermeiro dos acidentados; ofereci-lhe a minha cama, onde o deitei e amarrei cuidadosamente com os lençóis, tendo passado a noite toda sentado numa cadeira na enfermaria, de vigia aos nossos camaradas que sofriam. A muito custo lá adormeceram mas, durante a noite um levantou-se aterrorizado a gritar, eu tentei calmamente deitá-lo mas ele caiu na cama inanimado. 

Chamei então o médico, que o socorreu, tendo-o colocado a soro; aconselhou-me a vigiá-lo de perto, pois estava sob o efeito do que se tinha passado. A situação deste camarada acabou afinal por não melhorar, tendo que ser também evacuado para o hospital militar de Luanda.

Durante a noite alguns destes camaradas, perturbados por sonhos ou pesadelos, gritaram em altos gritos de terror, o que me levou a tentar ajudar a acomodá-los, aconchegando-os nas camas com as mantas. Ainda hoje choro ao recordar aquele cenário de sofrimento, mas, sinto um fiozinho de satisfação no meu peito pelo meu dever cumprido - o que fiz foi feito de coração aberto, para bem dos meus camaradas, combatentes como eu.

No dia seguinte depois do almoço já se encontravam um pouco mais calmos; o nosso pessoal foi escoltá-los ao quartel deles, sendo que muitos não recordavam o que tinha acontecido.

A amizade que une esta geração sofredora soube criar entre si laços de companheirismo e solidariedade que irão durar até ao último momento da sua vida. Estes rapazinhos, que as circunstâncias transformaram rapidamente em Homens com H grande, não precisam que os tratem por heróis, mas sim que os respeitem e que lhes dêem o que merecem, que é a devida atenção.

Manuel “Kambuta dos Dembos” Lopes

(*) DAP - Grupo de apoio de  militares com especialidade de mecânicos - auto, electricistas-auto, que davam apoio aos batalhões da zona, neste caso na zona dos Dembos, Quibaxe.

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigada Manuel Lopes por mais estória de vida, com sofrimento, mas também com a satisfação do dever cumprido.
"Elas não matam, mas moem"!.. e, por muitos anos passados, estas vivências vêm quási sempre, à memória e tocam-nos profundamente.
Um grande abraço.
Mª Arminda