segunda-feira, 24 de março de 2014

P463: HISTÓRIAS DE VIDA, DO JERO



TUUDO ÉÉÉ PRECISO NASSS PASSAGENS DEEESTA VIDAAAAA!!

Foi durante muitos anos uma referência na pacata vila de Alcobaça. O seu nome era Joaquim Miguel e a alcunha de “Cafezinho” ganhou-a quando foi preso por contrabandear café durante a guerra civil espanhola. Uns tiveram sorte, ele teve pouca.

Toda a gente o conhecia. Era uma figura simpática, que nos habituámos a ver passar numa pasteleira enorme, onde se gingava no selim para chegar com os pés aos pedais. 

Parecia que pedalava em câmara lenta! Infelizmente o combustível da bicicleta era normalmente “tinto”. 

Um dia alguma coisa correu mal e caiu da bicicleta. E feriu-se com alguma gravidade na cabeça. Teve que ir ao Hospital de Alcobaça.

Depois de tratado veio até à saída amparado pelo enfermeiro. O “Cafezinho” deu dois ou três passos titubeantes e regressou ao exterior. Um penso na cabeça denunciava o traumatismo que a queda lhe tinha causado.

Pequeno , com ar teatral, abriu os braços e num gesto de quem está num palco cantou com voz pastosa:
- Tuudo ééé preciso nasss passagens deeesta vidaaaaa!! 

O filho que o esperava fora da sala, abanou a cabeça e disse:
- Pois, e agora cantas.

Quem por ali estava riu-se e o Cafezinho, aproveitou para tentar logo vender lotaria aos presentes. Assumia-se como um autêntico vendedor de “jogo branco”.

Mas não enganava ninguém. E apregoava assim a sua lotaria: «O “Cafezinho” tem jogo branquinho!!!». E rematava: «Se eu soubesse que ela estava aqui não a vendia a ninguém».

Quem é que podia resistir a este apregoar tão original? Poucos, está claro.

O seu “posto de vendas” era normalmente na esquina da “Pharmácia Campeão”, na Rua das Lojas.

Ainda sobre a alcunha do “Cafezinho”, que “ganhou” quando foi preso por contrabandear café durante a guerra civil espanhola, há que referir que a justiça ao tempo não era tão lenta como nos tempos actuais. E nada meiga…

A pena que teve de cumprir na Cadeia de Alcobaça foi de 27 meses. Era então carcereiro o João Machaqueiro.

 O “Cafezinho” era um detido bem comportado e da máxima confiança do carcereiro, fazendo com alguma frequência serviços no exterior de transporte de lixo sem qualquer guarda à vista.

Numas férias do João Machaqueiro – na falta dum carcereiro substituto – foi o “Cafezinho” quem, com o conhecimento dum Oficial de Justiça do Tribunal de Alcobaça, ficou a tomar conta da cadeia, sem se ter registado qualquer problema de monta.

Só um pequeno barril de vinho, propriedade do carcereiro, terá descido alguma coisa no seu nível, eventualmente com a ajuda de algumas libações do Joaquim Miguel…

O que só prova que somos um povo de brandos costumes. Um preso – na ausência do carcereiro - a tomar conta da Cadeia por alguns dias marca, sem dúvida, um tempo e um povo…

Bons velhos tempos…

JERO

4 comentários:

manuel maia disse...

MUDAM-SE OS TEMPOS ,MUDAM-SE AS VONTADES, AFIRMOU O VATE...

VEM ISTO A PROPÓSITO DESTE BONITO TEXTO/HOMENAGEM QUE O JERO AQUI NOS TROUXE SOBRE O "CAFEZINHO" FIGURA TÍPICA ALCOBACENSE POR QUEM A POPULAÇÃO NUTRIA SIMPATIA...

POIS NOUTROS TEMPOS O "CAFEZINHO" ESTEVE PRESO POR CONTRABANDEAR O OURO NEGRO VICIANTE MAS SABOROSÍSSIMO(POR ALTURAS DA GUERRA CIVIL ESPANHOLA,36-39...) E COMO PESSOA EM QUEM SE PODIA CONFIAR, CHEGOU A SER-LHE DADA A CHAVE DO EDIFÍCIO QUE FUNCIONAVA COMO CADEIA...)

UNS ANOS LARGOS MAIS TARDE,JÁ NOUTROS TEMPOS, O CONTRABANDISTA-MOR DO REINO,CURIOSAMENTE DO MESMO RAMO DO JOAQUIM MIGUEL,O CAFÉ, TENDO CHEGADO A "ANDAR A MONTE" POR FUGA AOS IMPOSTOS RESPEITANTES À VENDA DO MESMO PRODUTO,(TAL QUAL FIZERA O "CAFEZINHO"...),TERIA UMA SORTE DIFERENTE CORROMPENDO QUEM QUERIA SER CORROMPIDO,COM CHORUDA CONTRIBUIÇÃO PARA CAMPANHA E VENDO DESSA FORMA SER ESQUECIDA A COIMA E O VALOR DO IMPOSTO...

DOIS CASOS DUAS MEDIDAS,DOIS DESFECHOS DIVERSOS EM TEMPOS DIFERENTES...

GOSTEI DA HISTÓRIA DO JOAQUIM MIGUEL QUE O NOSSO JERO AQUI TÃO BEM EXPLANOU E QUE FAZ REFLECTIR PARA RELEMBRAR A FRASE QUE TITULA ESTE COMENTÁRIO...

MUDAM-SE OS TEMPOS MUDAM-SE AS VONTADES...

Hélder Valério disse...

Caros

Esta história do Jero fez-me relembrar que existem muitas 'figuras típicas' do género da que o Jero aqui nos trouxe e isso parece que era 'normal' em quase todas as terras.
Por exemplo, em Vila Franca, havia um que dava pelo nome de "Feijão" e que era uma figura característica da 'borda d'água', com os seus conceitos de 'salvados', de tal modo que recordo um dia em que numa audiência de primeira instância em que era acusado de ter roubado uma bobina de arame dum armazém de ferro o Dr. Juiz perguntou-lhe o que tinha a alegar em defesa e ele disse: "saiba V.Exa Sr. Dr. Juiz que não roubei o molhe de arame pois ele vinha a boiar ao de cima d'auga"...

Aqui por Setúbal também existiam figuras características, quase todas alentejanas ou algarvias (dizem) como o "Nelsinho de Palhais", o "Roliça", o "Fatica", o "Carlinhos das roupas", etc., mas por 'outras guerras'....

Hélder S.

joaquim disse...

Bela história, Jero, contador de histórias!

Faz-me ter saudades de uma época, mais calma, mais vivida, mais sentida.

Um abraço do
Joaquim

Anónimo disse...

Engraçada esta história do Jero, sobre o cafezinho e com um título bem sugestivo; "Mudam-se os tempos mudam-se as vontades". Olha se fosse nos tempos que correm, até o barril do vinho voava. O "cafezinho", era bem honesto e tinha que fazer pela vida, da melhor maneira que lhe era possível. Como diz o Hélder Valério também por aqui existiram figuras muito típicas, que os mais velhos da cidade recordamos, mas só não temos o dom como o do Jero e colocar as suas histórias, para conhecimento dos camarigos. Um abraço. Mª Arminda