domingo, 16 de março de 2014

P459: A "ESTREIA" DO JOSÉ BELO

O nosso camarigo José Belo, que divide as suas actividades entre Kiruna, na Suécia, e Key West, nos States (uma espécie de "quente e frio"...), decidiu presentear-nos com uma história dos velhos tempos. Consideramos ser este o primeiro texto por ele enviado - O que publicámos anteriormente afinal até fomos "roubá-lo" ao Blogue da Lapónia, com a devida vénia, claro!...
É possível que esta colaboração tenha continuidade. Pelo menos já temos uma outra história no prelo, para futura publicação...

Os Editores



HISTÓRIAS ESQUECIDAS DE SOLDADOS DE PORTUGAL
O SOLDADO SALVATERRA
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Uma daquelas manhãs húmidas, cinzentas, dos invernos de Abrantes.
O Pelotão ia formando na parada para mais um dia de instrução enquanto se aguardava o embarque para a Guiné.

Um dos Cabos Milicianos dirigiu-se para mim acompanhado por um Soldado:
- Meu Aspirante, este é o Salvaterra! Apresentou-se ontem. Faz parte da Companhia e foi colocado no segundo Pelotão.

Olhei-o pasmado. À minha frente estava o que aparentava ser uma figura de comédia barata. Uma doentia caricatura de Soldado.

Desde o quico ás botas, do cinturão à G-3, tudo nele estava mal vestido, mal "assentado".

Um sorriso contínuo, não irónico ou feliz, mas assustado e nervoso.
Uma cara conturbada por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um canto da boca.

Tentei, com a ajuda do Cabo Miliciano, melhorar dentro do possível todo o caos que era o fardamento do Soldado.

Foi o nosso primeiro contacto.
A partir daí o Soldado Salvaterra tornou-se o involuntário "palhaço" da Companhia.
Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhada de acentuado debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos, acertar o passo pelos outros quando marchava; coordenar os movimentos dos braços e, muito menos, os movimentos das pernas.

No manejo de armas tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante irritação crescente e falta de paciência dos responsáveis.

Nas aulas de ginástica o circo repetia-se. Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía desamparado ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada... O primeiro degrau da escada!

No Portugal dos anos 67/68 quem teriam sido os Excelentíssimos membros da Junta Médica que apurou o Soldado Salvaterra para todo o serviço militar?
Quem seriam os responsáveis militares que, depois de O VEREM, acabaram por lhe dar a especialidade de Atirador de Infantaria e o mobilizaram para a Guiné?

Guiné, onde o Salvaterra cumpriu o melhor que podia, todas as funções e missões que lhe foram atribuídas. Emboscadas, combates, picagem de estradas à frente de colunas de abastecimento, sentinela e muito outro trabalho físico.

Mais que o remorso e a vergonha, é a pergunta: - Como foi possível que o aspirante, militarão, ingénuo e estúpido, não tenha reagido?

Não tenha sequer exigido da parte dos superiores a atenção para o caso do pobre doente que era o Soldado Salvaterra!

Hoje, olhando-me ao espelho da memória, o que mais me assusta é que... ENTÃO... nem sequer me dei ao trabalho de nisso pensar!

(O Soldado Salvaterra faleceu pouco depois de regressar da Guiné)

Passaram-se já mais de quarenta anos.

Soldado de Portugal - Salvaterra Bernardes - Presente!

                         José Belo

5 comentários:

Unknown disse...

OLÁ JOSÉ BELO,

GOSTEI DO RETRATO DO SOLDADO SALVATERRA,INFELIZMENTE IGUAL AO DE TANTOS OUTROS AO LONGO DOS TREZE ANOS DE GUERRA.
MUITO PROVAVELMENTE AQUELE HOMEM FOI SUBSTITUIR ALGUÉM COMPLETAMENTE ESCORREITO MAS DE GENTE DE "CABEDAIS" A QUEM O GRUPELHO TRADICIONAL (QUE PASSAVA PELO OFICIAL MÉDICO,O SARGENTO ENFERMEIRO E ÀS VEZES O PÁROCO DA ALDEIA...) CONSEGUIA O "MILAGRE" DA SALVAÇÃO,ATIRANDO AQUELE INFELIZ PARA O SEU LUGAR...

TIVE NA MINHA COMPANHIA PELO MENOS UM CASO ASSIM BEM EVIDENCIADO COMO O QUE AQUI TÃO BEM NOS NARRAS...

GOSTEI DO TEU TEXTO E FICAREI À ESPERA DE MAIS.

UM GRANDE ABRAÇO AMIGO.

Anónimo disse...

Gostei desta história por várias razões, uma delas pela lucidez que a idade nos dá, ao contrário de tudo o que dizem sobre os mais velhos...

Um grande abraço para o autor.
BS

Tabanca do Centro disse...

Bela história José Belo.

A par com estes que desgraçadamente tiveram que fazer a tropa, afinal sem condições para tal, havia também os que, por diversas "artes" conseguiam enganar e assim baldar-se ao serviço militar, para além das cunhas, claro!

Grande abraço
Joaquim

Carlos Pinheiro disse...

Bom texto e bom exemplo do que se passava vezes de mais. Na "minha querra" tive um sobrevivente da CCaç 1790 que nunca foi capaz de fazer um recado quando ia à cantina comprar mais do que um produto. Só gostava de saber quem é que apurou uma pesoa daquelas para todo o serviço militar e porquê. Mas também conheci outro que teve que ser evacuado ao fim de alguns meses. Era assim, infelizmente.
Carlos Pinheiro

Anónimo disse...

Parabéns ao José Belo, por nos dar esta história tão real como triste, no meu entender. Muitos foram assim infelizmente mobilizados e aptos para todo o serviço militar. Na 1ª Base de Operações que fiz na Guiné, precisamente em Cufar, um dos evacuados, foi um soldado de apelido (Mil Homens), que mais jovem esteve várias vezes internado no Hospital de Santa Maria) e cuja causa deveria ter sido considerada impeditiva, da sua ida para a tropa. Fiquei estupefacta, quando aí o reencontrei. A vida tem destas coisas!.. Continue com as suas histórias, que as lerei com agrado.Um abraço. Mª Arminda