terça-feira, 16 de novembro de 2021

P1317: RIOS QUE FICARAM NA NOSSA MEMÓRIA

Recuperamos um texto do nosso camarigo Juvenal Amado, publicado no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné há já uns aninhos (Julho de 2015), sendo por isso natural que muitos não o tenham ainda lido. Com a devida vénia ao autor e à Tabanca Grande, que o publicou.

                   A VIDA TAMBÉM CORRE COMO UM RIO

Na minha terra existem dois rios que se juntam, um vindo de Nascente e outro vindo de Poente formando assim um só rio denominado Alcobaça. São rios dóceis quase inexistentes, praticamente tapados por arbustos que crescem nos seu leitos e margens durante grande parte do ano, mas no entanto, não deixam de crescer e avolumar-se quando as chuvas caiem nalguns anos com maior precipitação sobre toda zona de Alcobaça.

Nessas alturas as águas descem as encostas, engrossam ribeiros que por sua vez descarregam no rio Baça ou no Alcoa provocando cheias, prejuízos, inundações em habitações, interrompem estradas e caminhos, inundam os campos de cultivo que vão desde Mendalvo até aos campos da Fervença com as outrora famosas Termas da Piedade, aos do Valado dos Frades, Cela Nova e por fim à sua foz na Nazaré, onde o mar fica barrento durante o tempo em que duram as chuvas.


É uma atração ir à Cela Velha, e lá do alto, admirar os campos todos encharcados pelo então rio Alcobaça, onde desapareceram os canais de irrigação para a agricultura e por vezes só se vêm as árvores de fruto acima do nível das águas. Quando vivia na Av. Bernardino de Oliveira onde morei entre 1962 e 1980, o rio Baça, que nasce na localidade de Vimeiro, passava do lado de lá das casas e da estrada. Nessa altura inundava os terrenos e lembro-me bem da aflição dos moradores do pátio do Joaquim do Talho mesmo à entrada da minha rua, também popularmente conhecida por Portas de Fora, quando as águas o invadiam a ponto de pôr em risco as moradias ao nível térreo. Não podíamos ir à Fonte Nova, que para além de local de namoro para os/as alcobacenses, também tinha água corrente e servia de passeio no Verão para ir buscar água numas bilhas de barro, que a mantinham fresca.

Dizia-se que quem bebesse água daquela fonte ficaria para sempre ligado à outrora vila de Pedro e Inês e daí o poema da canção que Tavares Belo escreveu e a cantora Maria de Lurdes Resende imortalizou, que diz “Quem passa por Alcobaça/ Não passa sem lá voltar”.


O rio atravessa grande parte da hoje cidade, por baixo de algumas ruas e acabava por galgar por cima da ponte, invadir a Avª João de Deus, arrastando alguns carros, pois os muros que o apertavam acabavam por ceder. Também ali exercitei a pontaria com espingarda pressão-de-ar atirando às ratas, que eram quase do tamanho de coelhos bravos e quem sabe, se não devo a isso a boa nota que tive na carreira de tiro em Coimbra durante a recruta.

As águas do Baça também invadiam tumultuosas o próprio Mosteiro, onde os monges construíram no curso do rio uma extracção de água, apelidada de Mãe de Água. Este foi o ponto de partida de uma canalização de 3,2 km, na sua maior parte subterrânea, que abastecia o Mosteiro com água fresca e limpa.

O Rossio pagava a factura durante os Invernos mais rigorosos e ficava cheio de lama e pedras que desciam empurradas pelas águas desde a encosta da Vestiaria ou do Casal Pereiro galgando passeios e entrando nas lojas e acabando por engrossar caudal, que por vezes o rejeitava de tão espartilhado estar, que saía pelas grelhas dos biqueirões ou pelas pias de despejo das casas mais baixas .

Quanto ao rio Alcoa, nasce em Chiqueda, era também atracção quando o seu nascente rebentava nos Olhos de Água ou Poçoão e as rápidas cheias que provocava. No Verão tomava-se banho nalguns locais e as mulheres iam lavar a roupa disputando o sítio e enxotando a garotada. Aí rio tomava a alcunha do dono das terras por onde corria e passava a chamar-se rio Narciso, ou Aníbal, num local que fica perto da Junta Nacional dos Vinhos. Era à vontade do freguês.

O rio Tejo também está para sempre ligado às minhas visitas aos meus tios na rua da Saudade, onde através da janela da cozinha eu via o rio e os barcos que lá navegavam. Saborosas foram também as travessias até Cacilhas no cacilheiro e a esperança de ver algum golfinho. Mais tarde este rio ficou associado a momentos dolorosos como a partida do meu irmão para Moçambique e mais tarde, a minha própria partida para a Guiné.

Mas como era de prever, ao ir para a Guiné deixei para trás o rio da minha terra, mas os rios continuaram a fazer parte da minha experiência além-mar, embora não houvesse nenhum em Galomaro.

Naveguei cinco vezes no Geba, deliciei-me com a abundância de água no Corubal, que banhava o Saltinho.

O Geba era uma artéria viva e indispensável ao reabastecimento da zona Leste e navegava-se até ao Xime ou até Bambadinca. Em Bafatá era majestoso e dava beleza à cidade.

Havia porém rios pequenos, daqueles que nós nos esquecemos que existem, pois eram insignificantes durante quase todo o ano, até que chegavam as chuvas e se tornavam num bico de obra.

Havia um desses rios no caminho para Cancolim, que nos deu como se pode chamar água pelas barbas, quando tentávamos abastecer a Companhia 3489. Mal começava a chover, o malvado engrossava e corria rápido por baixo de uma pequena ponte, que tinha parte do tabuleiro danificado por uma mina com que o IN a tentou destruir. Só tínhamos lugar para as rodas das viaturas passarem e, quando a águas submergiam a ponte, nós deixávamos de ver o trilho.

Era então preciso que os camaradas que iam fazer a escolta, dessem as mãos uns aos outros e assim com água pelo peito, indicarem-nos por onde podíamos passar. Não era fácil para eles nem para nós. Eu tirava as botas e as cartucheiras não fosse o diabos tecê-las.

Depois de passarmos, mais atascanço menos atascanço, lá chegávamos a Cancolim e começávamos a fazer contas de cabeça a respeito do regresso, pois o problema do rio estava lá à nossa espera, a não ser que entretanto as águas baixassem, facilitando assim o nosso regresso.

Uma vez o rio encheu de tal forma que não houve nada a fazer e as mercadorias tiveram que ser passadas em botes e carregadas em viaturas do lado de lá.

Como se pode ver, os rios foram uma constante na minha vida, mas a melhor experiência com eles, foi a minha viagem do Xime para Bissau quando o 3872 em Março de 1974 foi rendido. Pudera, era a peluda que se aproximava à medida que nós embarcámos e descemos aquele rio barrento, de cor acinzentada, na direcção de Bissau.

Cantávamos então: Galomaro/Tem mais encanto / Na hora da despedida, com música de uma conhecida balada de Coimbra logo seguida de Cheira bem / Cheira a Lisboa...

Juvenal Amado

7 comentários:

Carlos Pinheiro disse...

Obrigado ao Miguel e ao Juvenal por nos darem oportunidade de ler este texto magnifico, cheio de água por todos os lados, mas realistico, já que na altura própria me terá passado ao lado quanfo foi publicado no Blogue daTabanca Grande.
Mais uma vez obrigado.
Cumprimentos a todos os camarigos com um grande abraço do
Carlos Pinheiro

Anónimo disse...

Gostei amigo Juvenal.Também tenho familiares em Alcobaça e sei dos prejuízos que essas cheias provocaram e oxalá não continuem.
Também me transportou às paisagens dos vários rios da Guiné.
É das coisas que gosto na vida , é ver os rios e as lindas imagens projectadas nas suas margens.
Felizmente, posso ver o meu muitas vezes.
Saúde amigo e um abraço.
Que me desculpem, os autores de outros textos aqui colocados. Tenho-os lido todos, mas não os comentei.
São estados de alma...
Para o Miguel, o muito obrigada pela sua resiliência por manter vivo o Blogue.
Um abraço para todos.
M Arminda

joaquim disse...

Pois Juvenal os rios são lindos e nalguns deles as cheias até produzem riqueza.
Infelizmente o meu "Liz" em 2014 lixou-me bem as Termas.
A culpa não foi dele mas da incúria dos homens que deixaram de tomar conta dos seus recursos como deveria ser.
Um abraço e obrigado
Joaquim

Hélder Valério disse...

Juvenal, uma oportuna repescagem que o Miguel entendeu por bem fazer.
Podíamos então falar dos "rios das nossas vidas" e isso até acaba por ser relativamente fácil para quem vive na proximidade deles.
Como diz a amiga Arminda, nos dias de hoje olhar (mais até contemplar) o Sado, nos seus imensos reflexos azuis é bastante reconfortante e enche a alma.
Como também vivi, desde os 3 meses, à beira-rio, neste caso o Tejo, acho que entendi bem o que descreves.
Atá as cheias que hoje por hoje, não tanto pelas obras de defesa do homem mas mais pela escassez de chuvas (também provocadas pelo homem), vão rareando ou não tomam as dimensões que já conhecemos.
O Joaquim refere também o que se passou com o Liz e quanto isso afetou (irremediavelmente?) as Termas de Monte Real. Não deixa de apontar o dedo (e bem!) à incúria, ao desleixo, à irresponsabilidade, até a atitudes socialmente criminosas de quem tem atitudes de desprezo pelas coisas comuns.

Hélder Sousa

JB disse...

Os rios,ao contrário de muitos de nós,sabem sempre…..encontrar o mar!

Um abraço do J.Belo

Juvenal Amado disse...

Os rios são uma forma de vida que está a morrer. Muitos só encontramos o seu esplendor junto á foz.
São Riachos que correm entre pedras todos os anos menos.
Chove menos as nascentes não rebentam e temo que os rios da minha juventude sejam para sempre uma lembrança.
Um abraço amigos

Valdemar Silva disse...

Juvenal
Em Afife (Viana do Castelo) passa um rio que nasce no coruto do monte, e sempre a descer, passa por Cabanas, atravessa a aldeia e vai desaguar ao mar na praia da Mariana.
Na Quinta de Cabanas por lá viveu o poeta Pedro Homem de Melo, e pelos muros dos caminhos próximos havia vários azulejos com poemas dele.

ASCENÇÃO
O rio passa em Cabanas
Por entre fragas tão lindo
Que embora desça da serra
Parece que vai subindo!

ETERNIDADE
As águas são para o mar
As folhas são para o vento
Só as fragas se não mudam!
Nelas fica o pensamento....

Julho que os azulejos estão datados do ano de 1939, e eu há mais de 65 anos que os não vejo.

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz