quarta-feira, 18 de novembro de 2020

P1259: PARA QUEM FEZ A COMISSÃO DE SERVIÇO NA GUINÉ...

                                 O MONÓCULO

Carlos Pinheiro
Iniciava-se a década de 1970. A guerra colonial, que veria o seu termo com a revolução de 25 de Abril de 1974, atravessava então um período particularmente complicado na província ultramarina da Guiné Portuguesa, após o que fora a invasão a Konacry (operação Mar Verde), o célebre episódio da morte dos majores e o assassinato de Amílcar Cabral. Na capital da província, porém, a actividade bélica não se fazia ainda sentir com a intensidade dos anos de 72 e 73, época em que a própria baixa do burgo não foi poupada ao bombardeamento com foguetões 122, a que o comum dos cidadãos dava, completamente borradinho, a pomposa designação de mísseis.

O consumismo em Bissau, naquele tempo (excluindo o negócio da restauração e do divertimento, garantidos sobretudo pelo "Pelicano", pelo "Solar do Dez" e pelo "Gato Negro"), era dominado por menos do que meia dúzia de casas comerciais, das quais destaco em primeiríssimo lugar a "Casa Gouveia" (grupo CUF), comércio geral, alimentação, vestuário, artigos para a casa, etc.

Seguiam-se outras de menor volume de negócios mas não menos importantes no tecido económico da cidade, tais como a casa "Taufik Saad", especializada em livraria (até alguma literatura da tal que não se podia vender em Lisboa), música, material escolar e fotografia; "Os Correias", que detinham o exclusivo da venda de viagens marítimas e aéreas de e para o continente; a "Casa Pintozinho", que era o representante da Renault na Guiné Portuguesa, mas que detinha também o único oculista de Bissau, frente à fortaleza da Amura, na baixa da cidade, já que era essa a profissão base do seu proprietário, o distinto senhor António Pinto.

É sobre a particularidade de um infeliz desfecho de diálogo aos balcões da "Óptica Pintozinho" que me dedicarei nos próximos parágrafos. Mais uma vez declaro que me limito a transcrever ipsis verbis o que me foi contado, ainda que nas presentes circunstâncias as minhas dúvidas quanto à verosimilidade do caso sejam tão evidentes, que me proponho mesmo, com convicção, a classificar o episódio como mero fruto de alguma fecunda imaginação, sem a menor parcela de fundamento real, como se verá.

Mas cá vai:

Era então Governador-Geral e Comandante-Chefe das Forças Armadas naquela província ultramarina da África Ocidental o general António Sebastião Ribeiro de Spínola, personagem incontornável pelo seu carisma enquanto líder incontestado e senhor de uma austera personalidade de militar (homem de cavalaria) da velha guarda, cuja imagem de marca passava pelo uso de luvas pretas de pele, pingalim e monóculo na vista direita.

Ora constava que, durante uma consulta de rotina, teria o médico oftalmologista do Hospital Militar de Bissau prescrito ao general uma actualização da graduação da sua prótese ocular, pelo que este despachou de imediato o cabo-motorista do seu velhinho Mercedes 180D (que lá não havia carros de luxo), de receita em punho, direitinho ao oculista "Pintozinho", com a missão de mandar executar com a brevidade possível um novo monóculo para Sua Excelência.

Regressou o dito motorista (na tropa diz-se condutor) ao palácio do governo com a informação de que a lente estaria pronta nesse mesmo dia, pelas quatro, quatro e meia da tarde, e entregando ao governador a guia que permitia o oportuno levantamento do dito artefacto óptico.

E até aqui, tudo bem.

Fazendo justiça ao seu exigente espírito de pontualidade, e munido da referida guia, Spínola apresenta-se aos balcões da "Casa Pintozinho" exactamente às quatro horas e trinta minutos dessa tórrida tarde tropical (igual, aliás, a todas as outras), a fim de experimentar, levantar e pagar tão importante adereço da sua imagem.

O profissional António Pinto, que estava algures lá para dentro no laboratório, apercebendo-se da presença do governador na loja, deixa imediatamente o trabalho que tem entre mãos para vir rápido ao balcão, fazendo questão de ser ele a atender pessoalmente o ilustre cliente.

Cumprimentos para aqui, salamaleques para acolá, como é da praxe, e eis que um empregado avança com um pequeno tabuleiro forrado interiormente a veludo azul, em cujo centro se apresenta, resplandecente e faiscante, um minúsculo círculo de vidro, que o general inspecciona e experimenta, declarando-se confortável, e que devolve em seguida ao tabuleiro, sendo entretanto criado um compasso de espera para emissão da factura e regularização do respectivo pagamento.

Então, solícito como convém, o senhor António Pinto pega no precioso objecto, desembacia-o e limpa-o cuidadosamente com uma fina camurça, saca de um pequeno estojo de cabedal e, exibindo a amabilidade do seu melhor sorriso, questiona o velho militar:

"- Senhor general, devo embrulhar, ou Vossa Excelência vai levar no olho???"

Carlos Pinheiro

 

5 comentários:

Carlos Pinheiro disse...

Peço desculpa mas este texto não é de minha autoria se bem que o tivesse apreciado e por isso partilhei-o por vários amigos. O seu a seu dono. Se quando o enviei para o Miguel não ia indicado o autor, penalizo-me, peço imensa desculpa e agora será dificil identificálo nestas coisas da net. Mas esta é a verdade. Obrigado pela vossa compreensão. Um abraço colectivo e... virtual.

Juvenal Amado disse...

Aconteceu ou não , mas que tem imensa graça e bem escrito

Valdemar Silva disse...

O 'quer qu'embrulhe ou leva no olho', tem muita piada.
Já, por cá, se contava como anedota, muito antes de ser relacionada com o "Kaco" Baldé. Mas, se realmente aconteceu, com o Pintozinho, sem querer, deveria ter sido hilariante.

Abracelo
Valdemar Queiroz

Hélder Valério disse...

Caros amigos

Na verdade, agora será difícil aferir até que ponto a "história" está correcta ou completa.
Claro que faz sentido, a "coisa" está bem engendrada, mas pode ser verdade até ao "complemento circunstancial de lugar" "no olho"...
Abraço
Hélder Sousa

Anónimo disse...

Texto engraçado mas dá para ver que a língua portuguesa é muito traiçoeira. Por vezes o seu significado, tem muito, que se lhe diga.
Um abraço
M Arminda Santos