António Freitas Barbosa, vilanovense,
com ascendência nas famílias Freitas e Salgueiro, ambas da mesma freguesia,
nasceu em 02/05/1912, numa casa pertencente a outra prestigiada família local (os
Pedro) e veio a falecer a 09/08/1981, após uma vida com expressão pouco
consentânea com os hábitos tradicionais de uma família dita normal.
Cá fez o estudo primário, rumando
então ao Porto para o secundário, onde evidenciou grande capacidade para o
cálculo matemático.
Acabou por interromper o promissor
trajecto aos 16/17 anos face a uma fortíssima crise depressiva, a que
alguns atribuem origem no "cansaço de estudar" e outros à severidade
excessiva de que a educação doméstica se revestia, a fim de controlar os
impulsos do jovem António.
Fez-se homem numa casa da família Salgueiro (da qual a
mãe provinha), conhecida como a "Casa da Barranha", mudando-se, já
com cerca de vinte anos, e acompanhado da família chegada, para o lugar
de Cambados, na mesma freguesia de Vila Nova da Telha, onde se viriam a
estabelecer em definitivo...
Eram visíveis as melhoras em termos
de saúde. Como prova de confiança, os Salgado
(outra conhecida família de agricultores do local...) convidam-no para
apadrinhar o baptismo de uma sua filha...
O desgosto e a impotência para
contornar esse obstáculo provocarão a recaída depressiva acabando por criar
rupturas no seio familiar, levando-o a procurar refúgio e apoios no exterior da
sua casa de lavoura, junto da vizinhança...
É nesta fase que inicia uma
vida desregrada, errante, percorrendo a distância entre a sua zona de habitação
familiar e a estação de Pedras Rubras (uma boa meia dúzia de quilómetros...).
Tem ainda um tempo de acalmia, provavelmente
reflexo de qualquer tratamento médico a que tenha sido sujeito, e, perdida a
eleita dos seus sonhos, vira atenções para outra cujo acesso lhe seria ainda
mais dificultado, desta vez pela própria família, que não via na humilde
funcionária dos Caminhos de Ferro, no então apeadeiro de Vilar do Pinheiro, a
"forma para o seu pé" - como soe dizer-se - desprovida que era dos
"dotes" suficientemente valiosos que preenchessem os quesitos de uma
família terra-tenente interessada em "engordar" património ao
invés de o retalhar...
Terá ficado desde logo evidente que
a fixação que António Freitas manifestou ao longo da sua vida pelos comboios e
tudo aquilo que a eles dissesse respeito, como iremos ver mais para a frente,
terá tido algo a ver com este traumatizante episódio...
Surge uma nova recaída, desta feita
mais violenta, e com ela aparecem incursões mais significativas nos
excessos do álcool, não fosse ele um "truca" (alcunha que a família
ostentava ao que parece porque utilizavam o garrafão como vaso, por onde
directamente emborcavam o vinho... «se tiveres sede, pegas no garrafão e “truca”»,
era comum ouvir-se por lá...).
O seu plano existencial vai
inclinar-se inexoravelmente para o abismo...
Por lá aparecia de hora a hora
porque era essa a frequência da passagem das composições, as que se
destinavam à grande urbe, conhecida então pela cidade do trabalho, esse
Porto de Garrett, epitetado então de capital do Norte, com
"artistas" e estudantes que por lá procuravam realizar as suas vidas,
e as que regressavam para a Vila (do Conde) de José Régio, onde semanalmente
tomava lugar uma importante feira de gado, terminando a viagem na Póvoa
de Eça de Queiroz, conhecida pelo Casino, pelas piscatórias artes e demandada
em período balnear pelas gentes do interior.
O "trama", o das
"leiteiras", todos o Freitas "inspeccionava" a cada
sessenta minutos, recebendo em troca uma moedita e um cigarro, que o
maquinista, fogueiro, revisor ou chefe lhe ofertavam pelo seu trabalho de
"inspecção"...
Socos debaixo do braço, calça
arregaçada como se fora regar milho, camisa à padre (sem colarinho) demasiado
puída para se lhe detectar a cor que em tempos provavelmente fora branca,
colete coçado e aberto, deixando à vista num dos bolsos, um ou dois cigarritos,
ou até mesmo um pequeno maço de Kentucky, em dias de maior fartura...
Naqueles em que isso se não notava (a
maioria esmagadora, mau grado como atrás referido, ser o filho varão de ricas
famílias de agricultores...) passava uma boa parte do tempo catando beatas que
desfazia para embrulhar depois esses restos de tabaco em papel comum, tantas
vezes de jornal, enrolando-o em forma de cigarro que, aceso, ardia em chama em
vez de brasa...
No inverno, uma samarra de gola de
pele de coelho defendia-o da frialdade...
O seu velho chapéu de feltro cinza
rato era de quando em vez substituído por um boné de ferroviário oferta de
algum carregador ou mesmo revisor, já que todos o respeitavam e acarinhavam
cumulando-o com pequenas ofertas...
Em alternativa também usava uma
negra boina basca, enterrada até às orelhas, deixando à vista, descansando, a
beata acabada de apanhar ou um cigarro à espera de fósforo...
Todos os meses, ao dia cinco,
cumpridas as "obrigações" de inspecção e enchimento de água, sempre
que disso carecessem as já velhas máquinas a vapor, irrompia no escritório do
chefe da estação reclamando o vencimento mensal de que alguém o
convencera ser seu de direito na qualidade de "inspector"...
Invariavelmente o informavam que não
houvera tempo para o seu processamento pelo que deveria passar no mês seguinte
em que lhe seriam pagos todos os atrasados...
Praguejando, abandonava o gabinete e
retomava a "rota do bagaço", que conhecia melhor que ninguém...
Um dia o chefe Emílio presenteou-o
com um boné branco que já não usava, deixando Freitas numa alegria incontida.
Não fosse ficar estragado e por
isso, Freitas só o colocava quando já se encontrasse em terrenos da companhia.
Até aí, colocava-o debaixo do braço, em bom recato...
De volta à "rota do
bagaço" e já depois da primeira dose no armazém de J.Barbosa, onde
havia um pequeno pipo que aguardava a sua visita bi-diária que o armazenista de
produtos alimentares tinha à sua disposição, Freitas demandava o Café do
Branco, frente aos soldados da paz, para quase "exigir" ao primeiro
que ali encontrasse (eram quase sempre os mesmos...) a costumeira aguardente.
- "Pagas um bagacinho" ?
A resposta não variava muito...
-" Só se declamares a Nau
Catrineta"...
Moeda no balcão, bagaço no copo (por
pouco tempo) e lá começava a "dizer" a lenda que Almeida Garrett
imortalizou.
"Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito p`ra contar !
Ouvide agora senhores
uma história de pasmar"...
Como se não lembrasse momentaneamente
de mais, soltava uns impropérios em vozeirão de baixo, regra geral ininteligíveis,
e saía...
Certa noite, já madrugada, depois do
último bagaço, Freitas cirandava pelo passeio fronteiriço ao café quando foi
barbaramente agredido com um encharcado de água a ferver despejado de cima pela
mulher do proprietário, alegadamente porque os berros que Freitas soltava impediam
o seu curto repouso, dada a necessidade de reabrirem por volta das cinco/seis
da manhã...
Como se tal pudesse constituir
atenuante para um acto tão irracional e criminoso que teve...
Clientes houve que, dando largas à
mais veemente revolta, não mais puseram os pés naquele estabelecimento...
"- Freitas, quantos são oito
vezes sete" ?
Ele respondia de imediato...
"-Cinquenta e seis",
cinquenta e seis, não é " ?
"-E sete vezes oito?",
inquiria um outro mais espevitado, à espera dum falhanço...
"-Cinquenta e seis" ...
Freitas sabia que dali não
viriam proventos, por isso, retirava-se praguejando sonoramente...
-" Sou um mártir" ! "
Sou um mártir" ...
Gato escaldado de água fria tem
medo, diz o ditado, e Freitas deixou de frequentar o café do Branco para
visitar com mais assiduidade o "Apolo", ali a dois passos, onde
recebia o carinho dos presentes...
- " Pagas um bagaço?”, berrando
enquanto tirava a boina ou o boné...
-" Só se nos disseres porque é
que o Salgueiro é rico"...
Emborcada a aguardente, Freitas
apelando à sua voz de baixo não se fazia rogado e atirava:
-" Tem um cão que caga
"lão"...
Tem um gato que caga farrapo...
tem uma mulher que dá o ...
Por isso o Salgueiro é rico...
E saía para a rua, que a vida
custava e havia pequenos serviços a fazer por ali, que lhe garantiriam a
almejada moeda, permitindo que pudesse estar a horas para a sua "inspecção
profissional" de hora a hora na estação...
Enchia tanques através da
bomba braçal, tirava "água choca" das fossas, já que o saneamento
ainda estava por nascer, cobrando uma "taxa fixa"- de dois cigarros mais vinte e cinco
tostões...
Corria depois na primeira
oportunidade de tempo que tivesse a levar as pequenas caravelas à
"Melindra", à "Plácida", ao Bernardino, à
"Sameira", ao "Tone Careca", as tascas da zona envolvente
da estação, onde as trocava pelo precioso líquido que aviava "em
menos de um fósforo"...
Morreria aos sessenta e nove anos,
em Agosto de 1981, depois de uma vida atribulada, como vimos, ou de mártir,
como frequentemente afirmava.
Terá levado consigo a revolta
provocada pela opressão arcaica e pouco escrupulosa que o vitimou...
Manuel Maia
2 comentários:
QUERIA DEIXAR AQUI EXPRESSOS OS MEUS VOTOS DE UMA PÁSCOA COM SAÚDE E MUITA ALEGRIA A TODA A MALTA DA TABANCA DO CENTRO.
ABRAÇO
Amigo Maia. Comovente e impressionante história esta que nos acaba de narrar. É bem verdade que sabemos como nascemos, mas não como acabamos!.. A vida de um homem, que ao nascer, parecia ter o indispensável para ser um ser feliz e realizado sob todos os aspetos.A repressão de uns, a incompreensão e a avareza de outros e o seu inconformismo e falta de força para lutar, levou-o a refugiar-se no álcool, apesar de ser estimado por uns, mas como se viu odiado por uma pessoa que merecia prisão pelo ato desumano, que infringiu ao pobre. Ficou com dois amores na vida; os comboios e o álcool. Talvez atempadamente, compreendido e encaminhado psicologicamente, teria sido outra pessoa e a sua história poderia ter sido bem diferente.E quantas histórias parecidas, não haverão, por falta de um acompanhamento atempado?. Narradores, é que há poucos. Obrigado por nos ter dado a conhecer, mais uma figura típica do seu conhecimento, que me tocou fundo. Um abraço e agradeço os votos de Boa Páscoa, que enviou. Mª Arminda
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