O MOREIRA
JERO |
Era
(e é) transmontano, «duro», infatigável, leal e amigo do seu amigo, como é
apanágio das gentes daquelas regiões altas e pedregosas do nosso Portugal. E
altamente “desenrascado”.
São
inúmeras as histórias dos seus «desenrascanços» na vida militar, mas vamos só
contar uma muito especial que revela o seu invulgar sentido de humor.
Por
causa da minha mania das escritas deitei-me uma noite particularmente tarde.
Quando
cheguei ao meu “quarto particular”, que partilhava com outros militares, já
toda a gente dormia. No “quarto” ao lado, onde estavam hospedados mais uns 3 ou
4 furriéis, pareceu-me ouvir uns “cochichos” mas não liguei. Estava cheio de
sono.
Mal
levantei o mosquiteiro sai-me uma galinha do interior, situação de todo
inesperada que me fez desequilibrar e gritar acagaçado.
Depois,
com a ajuda de uma lanterna percebi que, até onde a minha vista alcançava, os
lençóis estavam todos borrados. Incrivelmente borrados e mal cheirosos!
Entretanto
já tinha uma quantidade de “amigos da onça” (e da galinha) perto de mim que
“gozavam a cena ” e que, entre gargalhadas, “lamentavam a sorte do Oliveira”.
De
facto, em tantos meses de mato, nunca tinha acontecido a ninguém uma
daquelas...
O Moreira |
Eis
se não quando aparece o Moreira com dois lençóis lavados.
Ajudou-me
a tirar os ”borrados” – a galinha já tinha sido corrida a pontapés – e fez-me a
cama de lavado. Que gajo porreiro!
Deitei-me
e poucos minutos depois tinha comichão por todo o lado e cada vez que me virava
parecia-me que estava a ser comido vivo...
Mais uma vez com o
auxílio da pilha lá investiguei o interior do mosquiteiro e pareceu-me ver
milhares de minúsculos “pontos negros”!
Os “pontos negros”
deslocavam-se e afinal eram piolhos!
Mais uma vez me
apareceu o Moreira para me dar uma “mão”. Ajudou-me a desmontar o “cenário”
para... sacudir os intrusos!
E mais uma vez me
esfreguei todo com álcool e tentei dormir. O que foi... mentira.
Meses depois, já a
bordo do “Uíge”, quando regressávamos a Lisboa é que soube que a galinha ”tinha
aterrado” dentro do meu mosquiteiro graças a uma mão malandra. A do Moreira,
está claro. Nessa altura chamei-lhe tudo menos “bom rapaz”…
Muitos anos depois do
regresso da Guiné o Moreira continua desenrascado e com uma “lata” que só
visto.
Numa determinada fase
da vida montou um negócio no ramo alimentar, que o obrigava a ir para a estrada
muito cedo. E a fazer muitas viagens.
Um dia dirigia-se a
Espanha com a carrinha carregada de presuntos. O livro das guias de remessa seguia,
como de costume, no porta-luvas.
Já perto da fronteira
foi mandado parar por uma brigada de trânsito. A continência da ordem e o
pedido habitual.
– Os seus documentos,
por favor.
O Moreira nem lhes
deu tempo para dizer mais nada.
– Oh Senhor Guarda, hoje
você e o seu colega deviam jogar no totoloto ou comprar lotaria. Mas que
pontaria com que vocês estão! Hoje vocês ganhavam o “Euromilhões”. Não vão
acreditar mas levo a carrinha carregada de presuntos, tenho aqui o livro das
guias de remessa e com a pressa saí de casa sem as preencher.
– Deviam jogar no
totobola, na lotaria... eu sei lá. Vocês estão cá com uma pontaria!
E... repetia-se,
repetindo os argumentos da sorte e do jogo até à exaustão.
Num dos intervalos do
“arrazoado” do Moreira um dos guardas pediu-lhe para se calar.
– Preencha lá as
guias e siga…
Poucos dias depois
estavam os três a almoçar algures na zona de Vila Franca de Xira. A atitude pedagógica
dos guardas granjeou dois novos amigos para o Moreira. E se não ganharam o “Euromilhões”
ganharam um amigo especial.
O Moreira além de “um
desenrascado” é também um ser humano de excepção. E um amigo que não esqueço.
JERO
1 comentário:
O MOREIRA- parte 2
Depois do nosso regresso da Guiné em Maio de 1966 encontrei-me nos anos seguintes vezes sem conta com o Moreira. Fui ao seu casamento, conheci os seus filhos e mais tarde os seus netos.
O tempo passa a correr e ao longo dos anos muita coisa aconteceu na vida do Moreira.
Em meados de 2012 telefonou-me e pediu-me para passar um dia ou dois com ele. Queria fazer o seu testamento e precisava da minha ajuda. Avancei de imediato e encontrei um amigo destroçado e carregado de angústias.
Devido a circunstâncias imprevisíveis vivia há cerca de 3 anos longe da família mais “próxima”: a sua mulher, os seus dois filhos e os seus dois netos.
O seu “calvário” começara numa fase difícil da sua vida comercial, em que não conseguiu cumprir as suas obrigações para com os fornecedores devido a atrasos de pagamento por parte dos seus clientes.
Vivia então no Porto e, por feitio e maneira de ser, não confidenciou nunca os seus problemas nem à mulher nem aos filhos. Esperava ser capaz de superar as dificuldades sem “partilhar” os seus problemas. Iniciou uma “guerra de silêncio” com os seus e o sofrimento permanente em que se transformou a sua vida não abrandou jamais.
Apareceu entretanto no “filme da sua vida” o marido da filha que,parecendo poder ser de início um “elo de ligação” com a família ,se veio a revelar uma personagem maquiavélica. O genro transmitiu à família que as suas dificuldades se deviam… “a uma vida de estroina”.
E este “bom rapaz” conseguiu minar a confiança da mulher e dos filhos, que esqueceram todo um passado de trabalho e dedicação do Luís.
Quando me chamou tinham passados 3 anos da sua rotura com a família. O que mais lhe custava era o afastamento dos seus netos: uma menina com 15 anos e um rapaz com 11.
De vez em quando falava com eles pelo telemóvel mas em condições que sentia que não eram espontâneas dada a proximidade da mãe, que impôs que tudo passasse por ela antes de falarem com o avô.
Por ironia do destino e para “ter um telhado” passou a viver e a tomar conta da mãe da sua mulher, viúva, doente e acamada. Passou os dias a cuidar da pequena quinta da sogra, que tem algumas árvores de fruta e canteiros de tomates, beringelas e outras “verduras” de primeira necessidade. Vê televisão, ouve rádio e dorme muito mal. Na parede do quarto onde dorme, bem perto da sua cama, tem várias fotografias dos netos. Que lhe sorriem mas…apenas no papel.
E é aqui que entro eu e os meus dotes de escritor, como o Moreira me chama, para fazer o seu testamento.
“Quando morrer o meu corpo irá para uma Faculdade de Medicina para ser estudado por futuros médicos. Quando estiver “todo estudado” já deixei instruções para ser cremado. As minhas cinzas devem seguir depois para o cemitério da terra onde nasci. Na minha campa quero apenas que fique a minha fotografia e seja colocada uma lápide com o meu nome e com o emblema da “675”, a minha Companhia de Caçadores dos meus tempos da Guiné. A minha última família.”
Passaram 5 anos. Estamos em 2017. A sogra do Moreira já partiu deste mundo. O meu amigo, divorciado e sem família, ficou sozinho e a viver em casa emprestada por um nosso camarada da Guiné.
Mas já não está sozinho. O mundo dá muitas voltas ... e o Moreira casou há dias com uma “menina” de 45 anos, também divorciada. O mundo não para !
Ainda quererá ir para a Faculdade de Medicina para ser estudado por futuros médicos?
Não me parece. Está agarrado à vida mais do que nunca.
E tenho a certeza que, se não rasgou o testamento que eu ajudei a escrever, já nem sabe onde ele está.
Bora viver Moreira.Dá um beijo meu à Filipa.
JERO
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