sexta-feira, 4 de maio de 2018

P1020: JERO - LEMBRANÇAS DE ÁFRICA

SALEQUINHEDIM... FRENTE A FARIM

JERO
Conheci o Aníbal Albino, alfacinha dos quatro costados, no Hospital Militar Principal, à Estrela, em Lisboa, onde o tratávamos por  “six/five/ò/laring”(vá-se lá saber porquê…). A partir de Outubro de 1962 estivemos alguns meses juntos e ficámos amigos.

Depois… cada qual foi à sua vida em termos militares e voltámos a encontrar-nos em meados de Novembro de 1964… num local muito longe de Lisboa!

O Aníbal Albino era então o Furriel Enfermeiro da Companhia de Artilharia 732, recém-chegada à Guiné.  Eu desempenhava idênticas funções na Companhia de Caçadores 675, ao tempo já com a experiência de 4 meses de mato na região de Binta, a cerca de 20 kms. de Farim.

Na altura do nosso encontro eu estava integrado num pelotão da minha Companhia (o 3º.Pelotão), que garantia uma “testa de ponte” frente a Farim (na margem esquerda do Rio Cacheu) para uma operação da Companhia de Cavalaria 487 e o Aníbal Albino vinha com a sua Companhia de Bissau para se instalarem em Saliquinhedim, a 5 kms. de Farim.

Encontrámo-nos na noite de 5 de Novembro – conforme registo do “Diário” da minha “Companhia 675” – e o Aníbal Albino não exagera quando mais tarde me confessou que “tremia por tudo quando era sítio”.

A sua Companhia tinha partido na manhã do dia anterior de Bissau, em coluna-auto, via Mansoa-Mansabá-Olossato, e já tinha sido violentamente atacada por duas vezes, resultando dessas emboscadas um morto e cinco feridos.  Quando chegaram junto de nós os militares da “Companhia 732” vinham de cabeça perdida e completamente desorientados.

Ainda hoje me lembro de o Aníbal Albino me contar que os militares da sua Companhia tinham recebido as suas espingardas automáticas“G-3” na véspera e já tinham “passado” por dois ataques e muitos deles nem a bala na câmara “sabiam meter”! Praticamente a reação ao fogo inimigo tinha sido feita por um Sargento do Quadro, com uma metralhadora-pesada instalada numa viatura.

Aníbal Rebelo Albino
O resto da malta tinha-se mandado ao chão à espera que a “trovoada” passasse… A confusão tinha sido tanta que até as tropas de Saliquinhedim, que eles vinham render, tinha feito fogo sobre eles, pois não tinham informação de que iam ser rendidos nesse dia !!!

Recordo-me ainda do pormenor macabro de ter sido eu, mais o meu cabo-enfermeiro Martins, que fomos acima de uma viatura buscar o morto da “732”, para o confiar às tropas da “487”, que regressavam nessa noite a Farim, pois os seus camaradas nem tinham coragem de olhar para o corpo, já então envolto numa lona.

Refiro umas linhas do “Diário da minha Companhia 675: “Quase há dois dias sem comerem eles aceitaram como “dádiva” do céu” o nosso jantar de que prescindimos para lhes oferecer. Pouco a pouco conseguimos confortá-los e dar-lhes alento.
Não podiam cruzar os braços. Tinham que reagir, lutar, vingar os seus mortos e feridos.”

Foi uma longa noite para eles mas, quando chegou o novo dia, apesar de inexperientes estavam prontos para voltar à luta. Quando abalaram de novo nas suas viaturas para render a “487”, e continuar a operação, tinham um ar resoluto e uma nova confiança.

 «Obrigado 675», gritaram-nos.

 «Para a frente 732», incitámo-los na despedida.

No que diz respeito à "minha" operação, que estava prevista para três dias, acabou por prolongar-se por mais quatro – uma surpresa tão desagradável quanto imprevista! 

Mas na minha memória – mais do que essa semana terrivelmente desconfortável – o que perdura são os camaradas da “732” e, particularmente, o  Enfermeiro Aníbal Albino. Que muitos anos mais tarde vi a reencontrar na praia de São Martinho do Porto.

E, claro está, as primeiras palavras que trocámos tiveram a ver com a terrível noite da Guiné em Saliquinhedim… frente a Farim. Duas palavras, correspondentes a dois lugares da longínqua Guiné, que nos marcaram para toda a vida.

JERO


2 comentários:

Carlos Vinhal disse...

Saliquinhedim era conhecido por K3 por ficar a 3 quilómetros de Farim. Fui ao K3 inúmeras vezes, já com a estrada toda alcatroada, ao contrário do que sucedia no tempo do nosso amigo JERO.
No meu tempo, 1970/72, não se fazia o itinerário Mansoa-Mansabá-Olossato porque a picada a partir da estrada de Mansoa-Mansabá-Farim para o Olossato estava impraticável, cheia de abatizes. Ia-se ao Olossato só pelo itinerário Mansoa-Bissorã-Olossato.
A zona do Oio foi sempre muito problemática.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

JD disse...

As coisas de que te foste lembrar! Então, o pessoal nem sequer sabia pôr a bala na câmara, provavelmente, nem sabiam o que isso era. Ao menos estavam equipadas com o cão, ou também terias dado notícia. Só por milagre, ou porque os turras não queriam arriscar, salvou-se a maioria. Há tantas estórias do rídiculo que nos aconteceram. Abraço.