segunda-feira, 28 de maio de 2018

P1027: MEMÓRIAS DO JERO


OS ENCONTROS ANUAIS DOS
EX-COMBATENTES

Há sempre uma expectativa especial quando chega a data de mais uma confraternização. Como é que estarão os nossos velhos companheiros da guerra?

No nosso caso já passaram 52 anos (e 52 convívios) em relação à data de chegada a Lisboa em 3 de Maio de 1966 a bordo do navio “UIGE”, vindos de Bissau-Guiné. Este ano o encontro foi em Benavente e com os ex-militares e suas famílias juntaram-se 80 pessoas.

Antes da missa, em memória dos camaradas que tombaram em defesa da Pátria e dos que, segundo a lei da vida foram partindo já depois do regresso da guerra, o ex-alferes Belmiro Tavares procedeu à leitura dos nomes dos companheiros que já não estão entre nós, sendo cada nome saudado com um grito de “presente”.

Ainda na Guiné morreram em combate o furriel Álvaro Manuel Vilhena Mesquita e os soldados Augusto Gonçalves e João Nunes do Nascimento. E depois do regresso a Metrópole já nos deixaram mais 49 camaradas.

O primeiro que nos deixou depois do regresso foi o 1º Cabo Enfermeiro Martins, vítima de acidente e, em passado recente, por doença o soldado José Pires Carreira, por alcunha o “Lua”.
No ofício religioso estiveram presentes os familiares do Álvaro Mesquita - sua irmã Teresa e seu sobrinho Francisco Mesquita - que viajaram propositadamente de Vila Nova de Famalicão.

Em relação aos presentes no convívio, e no que respeita aos antigos militares, estiveram 26 ex-combatentes da 675, sob o comando do nosso eterno “Capitão do Quadrado”, Ten. General Alípio Tomé Pinto.

A novidade deste ano foi ter estado presente um ex-militar do Pelotão de Morteiros 980, que esteve a cumprir serviço militar na Guiné na mesma altura  da C.Caç.675.
Silvério Miranda, actualmente taxista, foi um dos sobreviventes do desastre que vitimou no rio Cacheu, nos primeiros dias do ano de 1965, 8 militares por afogamento.

Silvério Miranda
Silvério Miranda esteve no nosso convivio por mero acaso. Num dia de trabalho normal em Lisboa transportou no seu táxi um passageiro que estava a organizar o convívio da “675”. Nada menos nada mais que o ex-Alferes Tavares que, quando percebeu que estava a falar com um ex-militar do Pelotão de Morteiros 980, imediatamente o convidou para estar presente na nossa festa de 13 de Maio em Benavente. E ele compareceu e conviveu de “peito aberto” com todos os “velhotes” da sua idade.

Tivemos a oportunidade de conversar em privado com o Silvério e resumimos em seguida o que resultou dessa espécie de entrevista, com base nas suas “memórias” de mais de 50 anos.

De seu nome completo Silvério de Almeida Miranda nasceu em 1 de Janeiro de 1942 na freguesia de Pampilhosa da Serra, em Aldeia Cimeira. Conta portanto 76 anos.

Cumpriu serviço militar na Guiné no Pelotão de Morteiros 980, que foi adido ao Batalhão de Cavalaria 490, sediado em Farim. E esteve no desastre do Rio Cacheu, na operação que tinha como alvo principal o ataque a Sambuiá.

Iremos incluindo oportunamente alguns elementos do relatório da operação para melhor e mais correta leitura desta página da história da guerra na Guiné.

O Pelotão 980 participava na Op Panóplia que se realizava na Península de Sambuiá, entre o rio do mesmo nome e o rio Malibolon.

Naturalmente Silvério Miranda tem algumas confusões de memória em relação a essa “data aziaga” da sua vida. Começou por referir que o “seu” Pelotão de Morteiros 980 pertencia à Companhia 475, comandada pelo Alferes Almeida(?).

Na madrugada do dia da operação partiram num navio de Farim – o”Orion” - pelo Rio Cacheu “acima”. Não chegaram a instalar-se no local que lhes estava destinado porque o azar sobrepôs-se ao que estava planeado.

Para dar cumprimento à missão, o Pel.Mort. 980 embarcou na LFG Orion às 05h00 como estava previsto e foi transportado por esse meio na direcção E-W pelo rio Cacheu (Relatório da “operação”).

Como fora planeado, o navio passou pelo local de desembarque, local esse que fora reconhecido na véspera, até um ponto antes de Bigene.

Aí, o navio inverteu a marcha e, como também fora planeado, foi então que os militares do Pel.Mort. 980 desembarcaram para o bote de borracha no qual se faria o desembarque na Península de Sambuiá (Relatório da “operação”).

Quando entraram no bote de borracha, que foi atrelado ao “Orion”, foi passado um cabo por baixo do barco onde eram transportados os 25 homens, cabo esse amarrado a um ferro existente no fundo do mesmo bote. Pouco progrediram pois a corda que os ligava ao navio fez afocinhar o “zebro” e toda a gente caiu à água.

Silvério Miranda sabia nadar mas viu-se aflito. A arma e o capacete foram logo para o fundo do rio mas um camarada – que nunca soube quem foi – agarrou-se-lhe à “platina” do seu camuflado e viu-se atrapalhado. Puxando pela memória diz que “nunca na vida se viu tão aflito”.

Conseguiu agarrar-se ao fundo do bote de borracha,  que já se tinha virado, e aí se segurou “com unhas e dentes”… à vida. Até as unhas das mãos “se viraram ao contrário”. Viu momentaneamente ao seu lado o rádio-telegrafista, que se afundou de imediato e não mais apareceu.

Alguns militares não chegaram a vir à superfície uma única vez, talvez devido ao grande peso do equipamento, armamento e munições. Entre estes, dois eram bons nadadores. Este relato é do Tenente José Pedro Cruz, que comandava o Pelotão de Morteiros 980.

“Verifiquei então que se aproximava rapidamente um barco de borracha da Marinha, tripulado pelo próprio Cmdt da Orion, a qual se encontrava parada, afastada do barco sinistrado cerca de 80 metros (Relatório do Ten.Pedro Cruz)".

Depois de se efectuar o transporte de todos os sobreviventes para bordo do navio, efectuaram-se pesquisas em todos os sentidos e recolheu-se todo o material que se encontrava a boiar.

"Verifiquei imediatamente que tinham desaparecido no desastre alguns homens do meu Pelotão e variadíssimo material (Ten.Pedro Cruz)”.

Voltando às memórias relatadas pelo agora civil Silvério Miranda recorda este que, na madrugada desse dia 5 de Janeiro de 1965, quando da saída de Farim, um seu companheiro conhecido pela alcunha de “O Toureiro” dizia em voz alta que era para levar uma “merenda” para comer mais tarde mas que a ia comer já, "antes que morra". E foi efectivamente um dos que morreu quando do desastre do bote de borracha.

Em relação aos 8 camaradas desaparecidos nessa manhã nas águas do Rio Cacheu confessa que os recorda de forma muito esbatida. 

Quando regressou à Metrópole escreveu a alguns familiares desses camaradas desaparecidos, mas o contacto não se manteve ao longo dos anos.

Como recuperou de todas essas emoções da vida militar? Recuperou bem e entrou descontraído na vida civil.
Valeu a pena a guerra? Para ser honesto acha que não, respondeu. “Não sou político mas, afinal morreram milhares de homens para quê!?”
Para milhares de civis estabelecidos nas antigas Colónias voltarem para Portugal. Não lhes chamou “retornados” mas era, obviamente, a eles que se referia.

Por minha conta e risco recordo os nomes dos militares que perderam a vida no longínquo dia 5 de Janeiro de 1965:-

1.º Cabo n.º 1295/63- Arlindo dos Santos Cardoso
1.º Cabo n.º 2143/63- João Machado
Soldado n.º 2481/63- António Ferreira Baptista
Soldado n.º 2517/63- António José Patronilho Ferreira
Soldado n.º 2540/63- António Domingos Félix Alberto
Soldado n.º 2594/63- Joaquim Gonçalves Monteiro
Soldado n.º 3021/63- João Jota da Costa
Soldado n.º 3029/63- António Maria Ferreira.

Termino com a mensagem que o nosso Ten. General Alípio Tomé Pinto nos dirigiu :


”É com muita alegria que vos volto a encontrar e a ver que a Companhia continua a crescer. Aos jovens de 22 e 23 anos que conheci na Guiné há mais de meio século juntam-se agora filhos e netos, que são a mais-valia dos valores morais que crescem ao longo dos anos com a família. Esses valores que transportaram do passado estão aqui bem presentes.

O nosso Alferes Tavares telefonou-me há poucos dias manifestando-me a sua tristeza de haver menos militares inscritos do que no ano passado mas verifica-se hoje que há muitos familiares dos ex-combatentes. E isso é muito importante. 

Peço aos mais novos que acreditem naquilo que os vossos avós vos contarem sobre a Guerra do Ultramar. Obrigou a muito sacrifício porque as guerras não trazem coisas boas. Houve que conseguir a superação de enormes dificuldades que motivaram o crescimento de uma amizade especial que perdura tantos anos depois do regresso em 1966. 

Peço finalmente aos ex-combatentes que resistam. Que aguentem até aos 90 ou mesmo até aos 100 anos porque senão o nosso Alferes Tavares fica sem clientela. Renovo o meu agradecimento por toda a simpatia que sempre manifestam por mim e pela minha mulher. E até para o ano se Deus quiser.”

O tempo passou e não para…
Escrever é também uma tentativa de prolongarmos a vida para além de nós...

JERO

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigada ao JERO por este relato de mais um convívio da sua companhia.

É muito gratificante para todos os que ainda estão entre os vivos, conviverem e trocarem relatos de odisseias por si vividas , para lembrarem a muitos, o seu passado repleto de sacrifício e de muitasemoções.

Um abraço amigo.

M. Arminda