domingo, 25 de fevereiro de 2018

P1000: JERO - LEMBRANÇAS DE ÁFRICA


O “CALDAS”

“O “Guimarães” levava a bazuca e eu ajudava-o a levar as granadas.
Quando saímos da bolanha para entrar na mata mudámos para o “quadrado”. Sabíamos que “os gajos” estavam perto. Já tínhamos ouvido vozes...

Ouvi uma rajada e pareceu que o capim à minha frente era “cortado”...
Senti que tinha “levado”...
O tiroteio era agora por todo o lado. 

Deixei cair a arma... Não tinha força no braço... Aguentei-me de pé mas sabia que... ”me tinha calhado”...
Não sentia dores mas estava “estonteado”...

O cabo enfermeiro – o "Rato" – ajudou-me a sentar. Os tiros eram agora só dos nossos... Alguma malta estava à minha volta e lembra-me do nosso Alferes Tavares se chegar ao pé de mim com “cara de caso”. 

Mostraram-me a minha arma. A rajada tinha acertado no carregador – 4 tiros –. E havia mais uma marca de bala entre a mola do gatinho e o cano.
Quantas levei? Não sei! 

Disseram-me que já tinham chamado o helicóptero. Consegui levantar-me e amparado pelo enfermeiro e com a malta a animar-me andámos mais um bocado para sair da mata. No local em que eu tinha sido ferido o helicóptero não podia aterrar. 

Lá chegamos ao sítio que “devia ser” e... encostei-me para esperar sentado.
Lembro-me que foram duas horas compridas. Ou, se calhar, quase umas três… 

Finalmente lá chegou o helicóptero. 
Lembro-me do meu Alferes ter a lágrima ao canto do olho. 
«Olha o nosso Alferes! Isto não é nada. Só acontece a quem cá anda!».

Julgo que chegámos ao Hospital de Bissau por volta das 3 da tarde. Nessa altura já estava cheio de dores. O garrote que levava no braço doía-me “comó caraças”! 

As caras dos médicos que me viram fizeram-me algum “cagaço”. Ia ser operado logo a seguir. Depois - não sei quanto tempo depois - acordei amarrado a uma cama do Hospital. 

Lembro-me de ter os pés amarrados e... o braço ferido estar todo “entrapado”. Só me apetecia dar pontapés... E doía-me. Muito... Estive 3 dias a leite. Que fome eu passei!”

O Joaquim Lopes Henriques, que nasceu nas Caldas da Rainha em 16 de Abril de 1942 e trabalhava na cerâmica até ir para o serviço militar, falou desta fase “complicada” da sua vida sem dramatizar. Tinha acontecido e... ”prontos”!

Comoveu-se e ficou momentaneamente sem fala, quando se lembrou da visita que o condutor, o Padre Eterno, lhe fez ao Hospital de Bissau.

“Devo-lhe muitos favores! Levou-me uma ventoinha (fazia um calor do caraças no Hospital). Depois... ”à sorrelfa” foi lá fora buscar uma lata de atum e um pão. Nunca nada me soube tão bem! Que gajo porreiro! Devo-lhe muitos favores!

Depois... estive uns vinte dias no Hospital. Nessa fase fui só operado uma vez. Aproximava-se o Natal e soube que ia ser evacuado para “casa”.

Sei que cheguei a Lisboa de avião em 17 de Dezembro de 1965. Fui para o “Anexo” da Rua de Artilharia Um… e deixaram-se ir passar o Natal às Caldas da Rainha, com a obrigação de fazer o “penso” na Enfermaria do R.I. 5. O que eu fiz. 

Depois... regressei a Lisboa e... foram mais dois anos... de "boa vida"! 
Dois anos e... sete operações. Sete! 

Tive um ferro no braço. Depois... chegaram a tirar-me um bocado de osso da perna para me pôr no braço. Não correu bem. Ficou uma ”papeleta” no Hospital Principal e no “Anexo” estive uma semana sem me fazerem o penso(!?). Doía-me mas... tenho a mania de não me queixar!

Foi o Sargento Zé, do Anexo, que me safou.
Voltei “de urgência” ao Hospital da Estrela e... mais uma operação. 
Nestes “entretantos” com quem é que me havia? Com a minha namorada – a Maria da Conceição. Já namorávamos há 4 anos e... com muito tempo livre... engravidei-a! Casámos em 14 de Maio de 1966. 
Uns meses depois fui chamado a uma “Junta” de 7 médicos que me disseram: Já foste submetido a 7 operações. Podemos tentar fazer mais alguma coisa, mas... as diferenças para melhor podem não ser muitas... 

- Não quero mais operações. Já chega! 

Foi-me atribuída então uma incapacidade de 46% e fiquei com uma “pensão” da Associação dos Deficientes das Forças Armadas.
Regressei às Caldas da Rainha e voltei a trabalhar na cerâmica, na SECLA. Tinha limitações mas foram uns gajos porreiros para mim. Também “ajudou” o facto de o meu irmão ser encarregado da Fábrica!

Nessa “fase do campeonato” (já com um filho e “teso que nem um carapau”...) valeu-me a “Cruz Vermelha Portuguesa”, que me ajudou a pagar a renda da casa durante 6 meses!
A vida estabilizou e passados alguns anos resolvi ir com o meu irmão para Angola para montarmos uma pequena fábrica de cerâmica.

Por acaso... escolhemos bem a altura… Chegámos a Luanda em 18 de Abril de 1974. Uma semana depois dava-se a ”Revolução” e... regressámos às Caldas da Raínha em Dezembro de 1975! Mais uma vez tesos!

Mas aconteceu-me mais uma mudança na vida. Empreguei-me na “Molde”. Trabalhei até 2003. Agora estou reformado.Com filhos e netos.
Habituei-me ao meu “braço da Guiné”!

Tenho, apesar de tudo, boas recordações da “guerra”. E a “675” é a minha segunda família. Está claro que todos os anos vou aos “convívios”.
Nos intervalos... tenho tempo e uma “horta” para onde vou sempre que posso. Agriculto alguma coisa e aparecem sempre uns amigos para um petisco! 
Mas como aquela “sandes” de atum que o Padre Eterno me deu em Bissau é que nunca mais como!”

JERO

3 comentários:

Carlos Pinheiro disse...

Recordatórias do caraças. Podia ter sido pior. Mas para mal já basta assim.
Um abraço
Carlos Pinheiro

Anónimo disse...

Caros Editores
Muito sensibilizado pela distinção - que considero uma condecoração - manifesto-vos o meu reconhecimento e a minha disponibilidade para estar sempre por perto dos meus Camarigos.
Obrigado e até 4ª. feira, se Deus quiser, em Monte Real.
JERO

joaquim disse...

Grande história e grande relato, José Eduardo.

Realista, verdadeiro, com as palavras certas, como só o relato de uma história de guerra deve ter.

Nem mais uma virgula, nem menos um acento.

Está lá tudo para nos fazer compreender o que se passou e passa, e para nos orgulharmos da alma portuguesa.

Grande abraço ao Joaquim Lopes Henriques e a ti amigo do coração
Joaquim