Um texto escrito já há uns anos pelo nosso camarada Juvenal Amado e publicado então no blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné", que aqui reproduzimos com a devida vénia à Tabanca Grande e ao seu autor.
FILHOS DO VENTO… OU DA VENTANIA
Os jornais todos os dias mostram situações de pais que abandonam os filhos ou os matam. Há mesmo uns jornais especializados nessas notícias e que as desencantam em todo o lado. Chama-se a isso jornalismo do terror, desgraças e dos maus costumes.
Estamos num país dito civilizado com
obrigatoriedade escolar bem longe da média escolar de há 40/50 anos atrás. No
entanto estes casos continuam.
Naquele tempo, fizeram o que era mais fácil, que
foi abandonar à sua sorte filhos que seriam mal olhados numa sociedade onde o preconceito
social condenava os responsáveis por estas situações a algum estigma,
especialmente no Portugal profundo das pequenas vilas e aldeias, dominadas por
conceitos morais, raciais e éticos a roçar em muitos casos tempos bem
anteriores ao Século XX. E lá diz o ditado que pena que não se vê, não
se sente!
O que era perfeitamente aceitável lá,
mergulhados que estávamos numa guerra em que se vivia grande parte da comissão,
numa lógica de um dia de cada vez, tornava-se intolerável junto das namoradas
ou esposas após o regresso e na moral de então.
As preocupações começavam a partir do momento
em que pensávamos que íamos finalmente regressar. Esses e outros medos passavam
assim a ser uma constante no nosso dia-a-dia. Como não correr riscos e como
fugir dos resultados de uma convivência amorosa, que agora resultava numa
trágica fotografia e na indecisão quanto ao caminho a seguir? Aparecer à
namorada - quando não esposa - com um filho mestiço até fazia ganhar suores
frios, porque aventura é aventura, champanhe é champanhe, mas um filho assim
caído de repente era o diacho.
Conheci um caso de um militar que mentiu
quanto ao à data do seu regresso à Metrópole e quando a pobre foi à procura
dele com trouxa e tudo, já ele estava em casa. Felizmente desse caso não tinham
resultado filhos, mas também conheci outra situação em que o militar avisou a
família bem como namorada, que ia ser pai e que era sua intenção levar o bebé
para casa quando regressasse. Na altura disse-me que a situação tinha sido
aceite senão com alegria, com conformismo e que estariam à espera do filho
dele. Infelizmente o bebé uma menina por sinal, acabou por falecer no parto,
dado que sendo a mãe de Bangacia, só recorreu aos serviços médicos já tarde
para salvar a filha. Vi então o militar com lágrimas nos olhos, que se
compreendiam perfeitamente em função ao seu envolvimento emocional.
Sabemos que nem todos militares ou
ex-militares que ficaram no território agiram como este meu camarada. Está à
vista que a grande maioria não lhe seguiu o exemplo - e com a independência,
resolveram vir embora e deixar filhos para trás.
Talvez até nem tivessem consciência do muito
sofrimento que acarretava a sua resolução.
Essas crianças deixaram ser guineenses e
muito menos portuguesas. Ficaram sem estatuto, por isso apátridas. Ninguém os
queria.
Aos mestiços trataram de os mandar ter com os
pais à Metrópole, pois já não eram puros para serem naturais da sociedade que
os viu nascer.
“Vai para a terra do teu pai, “cutima” (*) filho
di puta” (Também me mandaram a mim para esses sítios muitas vezes)!
Em Angola, por exemplo, fizeram-se cartoons com os aviões carregados de
retornados e os mestiços pendurados nas asas do avião, do lado fora.
As ameaças eram muitas. A razão era abafada
pela violência latente, nós sabemos que nas sociedades em ebulição os novos
aderentes ou de fresca data às causas, são muitas vezes mais perigosos e menos
racionais.
Filhos diferentes abandonados pelos pais,
sujeitos a uma sociedade que se radicalizou, foram rejeitados e excluídos como
um tumor que denunciava as mães e as famílias de colaboracionismo com as tropas
colonialistas, que se tinham tornado peçonha.
Nas campanhas de reeducação que se seguiram,
quem é que aceitava de bom modo o ser apontado por ter privado tão de perto com
as tropas tugas, que se tinham ido com malas e bagagens embora ao fim de 11 ou
13 anos de guerra?
Hoje quantos se esqueceram do que deixaram
para trás? Dificilmente temos os resultados imediatos dos nossos actos, porque
se tivéssemos, muito das decisões que tomamos ficariam por tomar.
Quem corta uma linha de água com uma
construção, pensa que se viu livre do inconveniente mas, mais tarde ou mais
cedo, a água forçará a passagem com resultados funestos. Nessa altura desejamos
não ter feito a parede ou lá o que seja - e já é tarde. Ficamos felizes quando
os resultados não são irremediáveis.
Por vezes ainda vale a pena tentar remediar,
fazer as pazes com a sua consciência e o passado, certo de que a juventude de
então, não justifica a omissão de hoje.
Juvenal Amado
(*) Nota: Em
devido tempo, um comentário feito posteriormente pelo Cherno Baldé sobre esta frase, que aqui
deixamos com a devida vénia ao autor:
O palavrão
em língua fula não é mais nem menos que um insulto quase que vulgarizado, mas
que e preciso saber utilizar correctamente (como sempre na vida).
“Koto-inama”é
uma palava composta por “koto” = orgão sexual feminino e “Inama” (literalmente
significa: da tua) da mãe de quem se dirige o insulto.
Mas atenção,
esta forma de insulto só é permitida de cima para baixo e nunca o contrário. Nunca
se diz a uma pessoa mais velha: “C… da-tua-mãe”…
Diz-se Koto
quando se expressa de forma e tamanhos normais. Diz-se Kotiou kotal para
expressar tamanho maior, grau superlativo absoluto sintético.
Cherno Baldé
2 comentários:
Caro Juvenal
Sendo certo que se trata de "questão velha", e "velha" quanto ao tempo passado em relação à sua publicação inicial mas "velha" como o mundo, em relação à "matéria de facto", a questão que se põe, hoje por hoje, é saber se essas questões de consciência e de ética são agora mais importantes do que nos tempos e lugares a que disseram respeito.
Costuma-se dizer que "o que não tem remédio, remediado está"!
Mas... não terá remédio?
Estará "remediado?
É sempre difícil (e errado) avaliar, comentar, valorizar, julgar, situações do passado à luz dos (pre)conceitos atuais mas parece que isso é também inevitável, dada a dificuldade que o excesso de "informação" com que as pessoas são "metralhadas" torna muito mais difícil colocarem-se "na pele do outro" e muito mais fácil produzir julgamentos e "sentenças" de modo impulsivo mas bastante induzidos pelo que vão consumindo sem digerir.
Portanto, estas tuas reflexões e considerações são úteis, na medida em que se pode, a partir delas, falar, pensar, refletir (os que quiserem e conseguirem...) embora tenha a sensação que "fazem efeito" a muitos poucos.
Em todo o caso, parabéns pela abordagem.
Hélder Sousa
Espero que tudo esteja bem com Miguel e família. Eu cá estou em covidario mais a minha mulher depois do meu neto e filha. um abraço para todos camaradas
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