UM DIA NEGRO
Guiné, 15 de Novembro de 1972
Juvenal Amado |
Tinha as virilhas e a parte interna das coxas
cheias de bolhas, provocadas pela micose que me afligia praticamente desde que
desembarcara na Guiné. A comichão era intensa, e já a fórmula 8 LM usada nestes
casos pouco efeito sortia para além do momento em que se aplicava e da dor que
provocava.
A coluna militar em direcção ao Saltinho tinha partido de Galomaro ainda o céu estava escuro para efectuar a recolha de Páras, que tinham sido largados na zona, se não estou em erro dois dias antes. Faziam segurança à coluna o pelotão do PEL REC (Pelotão de Reconhecimento e Informação), reforçado por milícias africanas.
A picada tinha sido abandonada já algum tempo,
pois era mais seguro, embora muito mais longe, abastecer a Companhia do
Saltinho, através de picadas onde beneficiávamos do apoio das Companhias que
faziam parte do Batalhão de Bambadinca, aquarteladas ao
longo do percurso. Normalmente o Esquadrão de Cavalaria de Bafatá também
participava com as Chaimites.
Como era uso, uma Berliet, carregada de sacos de areia e os pneus cheios de água por causa das minas, seguia à frente e as ordens eram para se manter distância, desde que não se perdesse o contacto visual com a viatura que seguia na frente.
A picada estava em mau estado pois não era usada há bastante tempo, mas o pior era o capim que tinha crescido de tal forma que nos encharcava com o cacimbo abundante nessa altura do ano. Embora normalmente com um clima escaldante, não era nada agradável aquela hora.
A coluna parou numa aldeia abandonada. Mais
parecia que os seus habitantes tinham desaparecido por artes mágicas, pois o
povoado estava em perfeitas condições e as palhotas não estavam degradadas pelo
abandono.
Após um breve descanso veio a ordem de que o Pelotão de
Reconhecimento e Informação (PEL REC) devia formar em duas filas indianas, uma
de cada lado da picada, mas de forma a que uma começava onde a outra acabava e
guardando uma distância de segurança entre cada uma, de modo a que, caso
houvesse um rebentamento de mina, não fosse atingido mais ninguém para além do
infeliz que a pisasse.
A minha Berliet, que até a essa altura tinha funcionado como rebenta-minas, passou para trás dessa coluna apeada, onde os soldados passariam a ter as funções de proceder à picagem à frente dos próprios pés do terreno que todos iriam pisar.
Não eram funções para as quais o Pelotão estivesse bem treinado. Na verdade tinham feito alguns ensaios, mas a prática era quase nula. Acrescento que os milícias se recusaram a fazer semelhante serviço.
Eram na grande maioria meus amigos chegados os homens daquele pelotão, não será demais afirmar o risco que eles iam correr, era uma realidade atroz.
A coluna começou a progredir na direcção do
nosso objectivo. O Aljustrel, soldado mecânico, tinha-se oferecido
para esta missão, talvez por solidariedade ou talvez porque lhe tivesse apetecido
pisar o risco. Na verdade, como meu companheiro da cama ao lado da minha, havia
entre nós uma grande amizade, talvez as minhas conversas sobre este tipo de
viagens e o facto de ele nunca ter ido ao Saltinho tenham influenciado esta sua
decisão.
A velocidade de progressão da coluna seguia ao ritmo dos homens que iam espetando uma vara com uma ponta de ferro no chão, pois no caso de lá haver uma mina a terra fofa facilmente seria ultrapassada pela ponta e esta, ao embater num objecto enterrado, transmite ao seu utilizador o que facilmente é de prever.
O Aljustrel é que ia a guiar, utilizando o acelerador de mão e eu sentado no extremo oposto. Agradecia o favor, pois era muito chato e requeria muita atenção fazer aquele tipo de condução, pois à nossa frente, nunca é de mais lembrar, seguiam homens a pé.
Quarenta e oito anos passados, a certeza sobre o tempo em que a coluna progrediu não está já muito presente na minha memória, mas penso que nem uma hora foi, até que um forte rebentamento se fez ouvir, e o que vi foi tudo negro, terra e fumo no ar.
Atirei-me da viatura e procurei abrigar-me
longe dela. Deitado no chão junto do Ivo, e sem saber o que tinha acontecido,
logo começámos a ouvir os gritos lancinantes e tivemos a certeza que alguém
estava gravemente ferido.
À nossa frente, as folhas rasteiras estavam
todas salpicadas de sangue, e à minha esquerda, metro e meio recuado, estava um
pé descalço, amputado, com um pedaço de perna, era branco e estava
estranhamente limpo.
Os gritos e o choque entravam fundo em nós, e foi o Aljustrel ou o Silva que disse que tinha sido o Teixeira a pisar uma mina antipessoal.
Junto dele estava o maqueiro (o Russo, assim chamado devido à cor do cabelo), o qual tentava minimizar o sofrimento e estancar o sangue das feridas do camarada. Este tinha as duas pernas decepadas, e o que restava era uma mistura de tecidos, com restos de farda; o preto da explosão era a cor dominante.
Foi de imediato pedida evacuação. Todos esperávamos talvez um milagre e, ao vermos o nosso camarada, o terror em mexermos os pés do sítio em que estávamos era enorme.
Os gritos foram abrandando, a vida escapava
daquele jovem de 22 anos que nem uma hora antes estava pleno de vida, - na
terra tinha deixado namorada, pais, talvez irmãos como a maioria de nós.
O rosto ficou sereno e a luz que iluminava os
seus olhos apagou-se, deixando-os baços e opacos a olhar para nós sem nos ver.
Ali ficou deitado junto ao buraco que a explosão havia aberto, até que o heli
passou por cima de nós. Foi a última vez que o vi quando o levaram para um local
mais aberto, onde foi enfim recolhido.
Foi necessário retomar a marcha, da mesma forma que tinha sido feito antes - os nossos camaradas do PEL REC a pé, picando à frente dos seus pés, pois podia haver mais minas. Era uma visão da verdadeira coragem vê-los a caminhar à minha frente depois do que tínhamos acabado de presenciar, situação que podia acontecer novamente a qualquer momento.
O regresso foi feito em silêncio pesado,
voltámos a passar no sítio e não pude evitar olhar para o buraco, que tinha a
dimensão de meio bidão de duzentos litros, e nos obrigava a sair da picada para
o contornarmos.
Segui para Nova Lamego (Gabu) com os Pára-quedistas, e nesse mesmo dia regressei a Bafatá, desejoso de estar junto dos meus camaradas, facto que só se veio verificar no outro dia.
Nessa noite bebi até ficar dormente mas não consegui dormir. Na minha cabeça a recordação do acontecido era demasiado presente, via a coluna de fumo, e ainda sentia o cheiro. A explosão e os gritos martelavam-me sem parar.
Este foi um dia como outros na Guiné-Bissau. Para este camarada como para centenas de outros, a guerra acabou tarde de mais.
Dedico este relato aos meus camaradas do BCAÇ 3872, e mais precisamente aos que viveram aquele dia comigo, pois vamos para a guerra e nunca retornamos dela.
Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
(Galomaro,
1972/74)
Algumas imagens reproduzidas do Blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné, com a devida vénia.
4 comentários:
Juvenal, dizem que "recordar é viver", só que recordações destas ou servem para exorcizar as memórias ou podem aumentar o sofrimento, tudo depende do estado mental de cada um.
Por outro lado serve também como testemunho do que muitos viveram para que as novas gerações possam tomar conhecimento e não possam dizer que "nunca ninguém nos disse nada".
Abraço
Hélder Sousa
Pois... relatos destes deviam ser lidos por gente que não sabe que o país esteve em guerra durante 14 longos anos... nunca é tarde para essa gente aprender...mas não querem... Querem antes continuar ignorantes.
Um abraço
Carlos Pinheiro
A ignoräncia,ou desinteresse,por parte das geracöes mais jovens de factos importantes da História recente está longe de ser um fenómeno típico português.
Alguns afirmam serem estas ignoräncias que levam a erros futuros "repetitivos".
Outros afirmam ser esta "falta de consciência" que torna possível a criatividade,as solucöes originais e inovadoras.
As raízes culturais,a prazos mais longos, acabam sempre por corrigir "rumos".
Um abraco do J.Belo
Em comentário anterior procurei ir ao encontro do que o Camarada Carlos Pinheiro täo bem soube "desabafar".
Este segundo comentário mais näo é que busca de uma "linha do tempo" quanto à nossa História recente.
Opiniäo pouco "iluminada",por unicamente ser resultante de uma longa vida de experiëncias pessoais feita sob...3(!) bandeiras.
O Soldado portuguës com coragem,dignidade e honra, criou tempo e oportunidades para os políticos encontrarem solucöes válidas e possíveis dentro das nossas capacidades de entäo.
Os governantes näo estiveram à altura de situacöes que em tudo os ultrapassavam nas suas experiëncias muito...locais.
Todo o "momento" internacional envolvente era escamoteado em manifestacöes caseiras, de apoio a uma política estática e isolada dos aliados tradicionais.
Como os extremos acabam sempre por se tocar,os governos da pseudo-revolucäo excederam-se em servicos convenientes aos interesses das mesmas realidades internacionais.... antes ignorados com a soberba do "orgulhosamente" sós.
Um "sós"que,a näo ser criminoso seria ingénuo na sua "rusticidade", tendo em conta as realidades portuguesas de entäo.
Desde a ocupacäo de Goa, em tempos e responsabilidades do governo da ditadura,à tal descolonizacäo "exemplar"em tempos e responsabilidades dos governos da pseudo-revolucäo, o período foi longo e os sacrifícios por parte dos militares inúmeros.
As responsabilidades políticas destes extremos täo opostos tiveram no entanto algo em comum:
-A incompetëncia de servir os futuros e verdadeiros interesses nacionais.
O resto é...tragédia!
Um abraco do J.Belo
(O meu pedido de desculpa pelo teclado sueco com a inerente ortografia...assuecada.)
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