quarta-feira, 4 de novembro de 2020

P1257: UM OUTUBRO JÁ DISTANTE...

           23 DE OUTUBRO DE 1968

Desde meados de Agosto, quando no Destacamento do STM, no Quartel General em Tomar, recebi por teleimpressor a mensagem dirigida ao Chefe do Estado Maior do QG da II Região Militar, a solicitar a minha apresentação na minha Unidade, o Batalhão de Telegrafistas em Lisboa, tinha ficado logo a saber que estava mobilizado, só não sabia ainda para onde era.

Era a carta de chamada como alcunhávamos aquelas mensagens diárias e constantes, Só que as outras eram para outros e este era para mim mesmo em pessoa.

Claro que no dia seguinte lá fui para Lisboa e, depois de me apresentar na Companhia a que pertencia - a RE, Radiogoniometria e Escuta - recebi a guia de marcha para o RI 15 de Tomar para aguardar embarque.

E assim foi. No outro dia lá estava no RI 15 que nesse mesmo dia entrou – estávamos a 11 de Setembro – de prevenção rigorosa devido ao estado de saúde do Presidente do Conselho.

Para evitar grandes pensamentos calhou-me logo entrar de serviço numa Companhia de Ordem Pública, pronta a sair para a rua caso acontecessem alterações à ordem pública. Mas como a maioria do pessoal estava habituado a comer e a calar, não houve necessidade da força sair do quartel, Ainda bem, porque a companhia era constituída maioritariamente por cozinheiros e corneteiros - que deveriam saber muito pouco das funções duma Companhia de Ordem Pública - e alguns nem saberiam bem o que era uma espingarda. Mas passemos à frente…

No outro dia consegui ficar como impedido na Secretaria da Companhia a aguardar notícias acerca da data do embarque e, entretanto, também consegui desenfiar-me uns dias e lá fui até Alcanena para fazer as despedidas da praxe e aliviar o espírito com algum tempo.

Mas regressei a tempo e horas ao RI 15. Estavam dois Batalhões a fazer o IAO e começou a constar que um iria para a Guiné (por acaso acabou por ser o 2856), o outro (de que nunca cheguei a saber o número) deve ter ido para Angola ou Moçambique.

Mas ainda tive uns 10 dias de férias oficiais porque desta vez já havia data marcada para a partida – 23 de Outubro, e assim aconteceu. Foram mais umas despedidas até porque nada mais havia a fazer.

Na véspera do embarque fui com um amigo no seu carro, onde ia também um filho dele, mobilizado para Angola, mas que não chegou a embarcar - sabe-se lá porquê. Foi uma noite mal dormida e de manhã cedinho lá formámos algumas dezenas de rendição individual como eu, e lá fomos numa GMC para o Cais. Ainda tivemos oportunidade de nos voltarmos a despedir das famílias, já que não desfilámos.

Entretanto o tal BCaç 2856 tinha começado a embarcar, assim também um Pelotão da PM e finalmente a malta de rendição individual.

Tudo a bombordo do UÍGE para dizer o último adeus. Ao meio dia em ponto o navio deu alguns toques prolongados e anunciar que estava pronto para começar mais uma viagem. Os cumprimentos oficiais da praxe já tinham sido feitos, as senhoras do MNF já tinham descido as escadas depois de nos terem oferecido uns aerogramas, um maço de tabaco e um isqueiro. As escadas foram retiradas e o cordame recolhido, os rebocadores já estavam a postos para levarem o UÍGE até ao meio do Tejo.

No cais a multidão ainda era imensa. Os lenços brancos acenavam das varandas da Gare da Rocha a corresponder aos lenços que das amuradas do navio também acenavam. Eram as despedidas.

A banda militar estava a acabar os seus acordes e o UÍGE, com a ajuda dos rebocadores, lá se encaminhou para o melhor local do Tejo para iniciar mais uma viagem de 5 dias até às terras da Guiné. Depois foi o passar sob a Ponte Salazar a caminho do Atlântico e tudo pareceu muito rápido.

Seguiram-se cinco dias de mar e céu, com mais ou menos acompanhamento de peixes voadores, a passagem relativamente perto das Canárias e a chegada ao largo de Bissau a 28 de Outubro - onde as águas já não eram azuis mas amareladas, para não dizer acastanhadas.

Foram só cinco dias de viagem, mas cinco dias inesquecíveis. E como a maioria do pessoal, os soldados e cabos, viajou nos porões, nesses grandes buracos fechados de onde só se via a luz do dia pelo buraco por onde tínhamos entrado e descido aquelas imensas escadas de madeira, nem vale a pena dizer nada aquelas maravilhosas acomodações. Os cheiros acumulados ao longo de anos - já que era nos porões que eram transportadas todas as mercadorias de e para África no tempo em que o navio fazia carreira para Angola - mais os cheiros de milhares de soldados que por ali já tinham passado ao longo dos últimos anos, eram de facto horrorosos. Mas não havia alternativa…

Foi um bom princípio, sem dúvida, para o que nos estava guardado. Depois, bem depois, foram vinte e cinco meses e dez dias, passados todos naquela terra quente e húmida, que ao fim deste tempo todo nunca mais consegue encontrar a paz a que tem direito e de que tanto precisa.

E assim já lá vão cinquenta e dois anos desde aquele 23 de Outubro de 1968.

Carlos Pinheiro

 

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro amigo Carlos

Pelo que contas, andaste a "fazer piscinas" entre Tomar-Lisboa-Tomar.
Já estavas habituado à cidade, foi só mudar de quartel...

Olha, afinal temos mais coisas em comum... Santarém, Lisboa (BT), Guiné (Bissau, STM)... e só não foi Tomar (para o estágio) porque esse foi feito em Tancos.
E agora a questão do embarque.
Não, não fui em 68. Fui em 70. E "quase" que acertávamos no mês de Outubro. Não a 23 mas a 26.
Também "embarquei", oficialmente, a 26 de Outubro mas de 1970, embora só tenha "partido" realmente a 3 de Novembro, fez ontem exactamente 50 anos.

Claro que a minha viagem foi diferente da tua.
Nada de "molhadas".... um cargueiro, com 6 cabinas duplas, doze passageiros, 6 civis e 6 militares, privacidade, instalações razoáveis (para a época e para as condições do transporte), boa comida, mas calmo. Nada a reclamar!

Olha, como dizia "o outro"... "é a vida!".

Hélder Sousa

Carlos Pinheiro disse...

Caro camarigo Helder
Eu não disse aí que tirei a especialidade no RTM, na Arca d'Agua/Porto mas foi verdade. Andei a fazer rali entre Tomar e Lisboa isso foi verdade. Só fui a Lisboa, ao BT, levantar uma gabardine que devia estar a fazer falta em Tomar, Não imaginas como era aquele RI 15 com dois Batalhões a fazerem o iao. Uma confusão do caraças e quem ganhava com isso era o vaguemestre e seus comparsas. Parecia comida para porcos, mas um dia encontrei lá um conterrâneo que me disse que em Castelo Branco ainda era pior. Arre pora, que para mal já bastava assim. Mas quanto a viagem nem imaginas o que eram as camaratas nos porões. Penso que durante aqueles treze anos nunca foram limpas, mas todos sujavam com fartura em todos os apectos inimagináveis. Ficamos assim. Um grande abraço.

Valdemar Silva disse...

Carlos Pinheiro.
Como já sabes, eu "comecei", também, na EPC - Destacamento (Santarém) em 10-07-1967, depois EPA (Vendas Novas) e RAP3 (Figueira da Foz).
Comigo não se tratou de receber a mensagem, comigo aconteceu ser eu próprio a fazer a Ordem de Serviço com minha mobilização, que tinha sabido meia hora antes. Passou-se no início de Dezembro de 1968, quando estava colocado no RAP3 e faltavam dois meses para passar a Furriel. Já tinha dado várias Instrução a Recrutas e fui colocado na Secretaria a substituir o Furriel Amanuense que tinha ido prá peluda, embora eu fosse Atirador.
Depois mobilizado segui para Espinho (IAO) e chegada à Guiné 23 de Fevereiro de 1969.
Nesse célebre dia de 11 Setembro 1968, com prevenção rigorosa, estava destacado em Aveiro a dar Instrução a Recrutas, e aconteceu uma situação com a senha e contra senha da prevenção que eu nunca mais me esqueci. Normalmente a senha e contra senha é formada por uma/duas palavras sem lógica e completamente antagónicas ex: caserna / cavalo branco, mas naquela dia/noite a senha era Algarve e a contra senha Praia da Rocha, nada antagónica e até com lógica.
E cá estamos a contar estas histórias da tropa, que se passaram há mais de 50 anos. Mas recordar é viver.

Abracelo e saúde da boa
Valdemar Queiroz