quinta-feira, 15 de maio de 2014

P490: A ALEGRIA DE MAIS UM REENCONTRO



A  MINHA QUERIDA C.Cav. 8351...
E... A NUDEZ DA PEDRA
O frenesim que de mim se apodera com a chegada do dia da reunião anual da minha Companhia parece que cresce todos os anos, apesar de saber que por cada comemoração que passa, menos uma nos resta para o fim do percurso.
Desta feita foi em Portalegre que se seguiu à reunião de Sever do Vouga e que antecede a de Torres Novas.
Portalegre, “cidade do Alto Alentejo, cercada de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros”, que José Régio imortalizou na sua Toada, viu-nos partir, há quarenta e dois redondos anos,  com destino à Guiné.
Aqui permanecemos por três ou quatro semanas, vindos de Estremoz,  aguardando embarque para a guerra! A pátria, que por vezes não sabemos bem o que é, chamara por nós e nós ali estávamos prontos a cumprir com a obrigação (que não dever?) já que outra saída não descortinávamos para o nosso futuro! Até de França, Camarada nosso então se apresentou para que sobre ele não caísse o anátema de refractário ou de desertor, anátema que alguns, nos dias que correm, (como é fácil hoje em dia fazê-lo) transformaram em elogio, vá-se lá saber porquê! Falo nele, no “Francês”, pois desta feita e pela primeira vez veio abraçar os seus Camaradas, que não via há quarenta anos!
O B. C. 1 de onde saímos em 1972 é hoje um Centro de Formação da G.N.R.
Em finais de Março solicitámos autorização ao Comando para que pudéssemos visitar as instalações e colocar uma lápide em honra dos Camaradas mortos na Guiné.
O tempo ia passando e a resposta não vinha! O meu Camarada Parola, o organizador do convívio, alertou-me e eu, sem demora, liguei para o Centro no dia 20 de Abril. Depois de vários “não se encontra” tive de dizer ao meu interlocutor que não desligava enquanto não fosse atendido por quem quer que fosse, pois a minha pergunta não ficaria sem reposta.
Lá veio um senhor sargento, muito simpático e solícito que, admirado, me disse:
O senhor Comandante já fez o despacho no dia 2 de Abril, a autorizar a vossa visita” Prometeu falar com o senhor Capitão para que cópia do despacho nos fosse enviada, ao meu Camarada Parola e a mim mesmo. Tal veio a verificar-se a 23 de Abril.
Porventura esta demora terá a ver com a programação de alguma operação, quiçá a da perseguição ao senhor Manuel Baltazar, um tuga conhecido por Manuel Palito, lá para as bandas de São João da Pesqueira, que, ao que sei, ainda não teve resultados práticos.
Demorássemos nós, C.Cav. 8351, enquanto  na Guiné, todo este tempo a encontrarmos a base de onde o IN nos atacava e, por certo, ainda a esta hora por lá andávamos à procura de Nhacobá, de Lenguel do rio Habi ou de Samenau. Outros tempos....outra gentes...
O nosso encontro estava marcado para 3 de Maio, e no dia primeiro, portador que fui da lápide, lá me apresentei para a colocar no local indicado. O oficial de dia, um jovem alferes, recebeu-nos com simpatia e a meu pedido prometeu-me que a lápide, no dia da visita, estaria coberta pela bandeira nacional para que o seu descerramento tivesse o mínimo de dignidade. Perante a minha insistência mandou-me ir descansado, pois a bandeira de Portugal estaria em seu devido sítio!
A malta começou a chegar logo pela manhãzinha do dia três de Maio. O encontro foi no largo fronteiriço ao do antigo B.C.1. Abraços, gargalhadas, uma ou outra lágrima furtiva, o relembrar da emboscada do dia xis ou os ataques ao arame no Cumbijã, mais o assalto a Nhacobá, fazem sempre parte do primeiro contacto.
Subimos então a rampa de acesso à entrada do Centro e, antes que fosse transporta a porta de armas, avistava-se lá ao fundo a lápide,  tal qual eu a deixara dois dias antes. Não avancei mais! O meu Camarada Parola lá foi falar com o oficial de dia, um capitão, que de pronto lhe disse não haver bandeira disponível para a cerimónia e que a fôssemos comprar a uma loja dos “chineses”.
O meu Camarada lá foi comprar a bandeira com que se cobriu a nudez da Pedra.
Este lavar de mãos do cavalheiro e oficial senti-o como se de ofensa se tratasse à memória dos meus Camaradas mortos em combate e logo ali, no discurso que fiz, tive de expressar, para que dúvidas não restassem, o meu repúdio perante tamanha indiferença.
Porventura se tivesse ido ao beija-mão talvez me tivessem dado fanfarra e me prestassem tributo, mas eu não vou por aí e cito outra vez Régio:
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"! 
A minha vida é um vendaval que se soltou. 
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou... 
Não sei por onde vou, 
Não sei para onde vou 
Sei que não vou por aí! 

Cerimónia finda, ala que se faz tarde e lá foram os cinquenta e um Combatentes acompanhados pelos familiares para a missa da praxe, celebrada na sé de Portalegre por um padre simpatiquíssimo. Foram lidos os nomes dos vinte e dois mortos que são do nosso conhecimento e à medida que cada nome era referido ecoava na vastidão dos claustros um arrepiante PRESENTE a provocar um estremeção de emoção.
Os arredores de Castelo de Vide acolheram-nos num local perfeito para o almoço e lanche!
Esquecidos os contratempos, em vivência íntima e familiar de novo o recordar dos momentos mais difíceis nos vinte e dois meses que passámos juntos.
Vinte e dois meses que nos marcaram de tal forma, que ninguém, mas mesmo ninguém, será capaz de destruir.

Vasco Augusto Rodrigues da Gama

8 comentários:

Joaquim Mexia Alves disse...

Meu caro camarigo Vasco e camarigos da C. Cav. 8351, alguns deles, aliás, "useiros e vezeiros" na Tabanca do Centro.

Quem me conhece bem sabe que eu sou um sentimentalão e por isso mesmo estas palavras do Vasco tocam-me profundamente e transportam-se para o convívio que relatam.

Escreve o Vasco, referindo-se ao tal "capitão", (entre aspas porque Capitão no nosso tempo era pessoa de respeito), apelidando-o de "cavalheiro e oficial".
Julgo que será o fino humor do Vasco a "falar" porque nada se descortina de cavalheiro no sujeito e muito menos de oficial, que deve ser pessoa que sempre homenageia aqueles que combateram pela Pátria, e os respeita com toda a dignidade que merecem.

Mais uma "ofensa" aos combatentes a juntar a outras tantas!
E arroga-se esta gente de militares das Forças Armadas!?

Em bom português: vão à m..., que é aquilo que sabem fazer!

Ufa, passei-me!!!

Grande Vasco, grandes homens da C. Cav. 8351, o meu maior e forte abraço de camarigo que vos respeita e se orgulha de vós.

Hélder Valério disse...

Ora, ora... o meu amigo Joaquim a "exceder-se"!
Também quem é que não se "excede", sentindo 'estas coisas' das vivências do passado, das amizades forjadas no seio das dificuldades, perante tanta e tamanha insensibilidade, a roçar o desprezo!

Será que também esses senhores acham que esta coisa dos ex-combatentes é típico dos 'velhos', daqueles que andam a gastar o dinheiro do Estado com reformas e remédios, que deviam era 'desaparecer' para que não lhe vá faltar o seu pedacinho?

Um abraço ao Vasco por mais um relato emotivo.

Hélder Sousa

Anónimo disse...

Obrigado Vasco,

Gostei, gostei muito do que li.
BS

Anónimo disse...

Amigo Vasco da Gama. Gostei muito do que li. Realmente lá diz o velho ditado, "Quem não se sente não é filho de boa gente".!.. Infelizmente alguns novos protagonistas das "Velhas F. Armadas", se calhar até acham um desperdício de tempo estes eventos, dos outros, que sois vós e muitos mais, que sofreram e suaram e alguns por lá tombaram nessas terras distantes, que um dia estiveram sob a nossa bandeira. O Mexia Alves tem razão, em os mandar dar uma volta!.. E o que o Hélder diz, se calhar também é verdade. Será que o passado é para esquecer?. Então de que é feita a história de um país?. Só presente?!..Honrrar os seus mortos, é um dever dos que ainda estão vivos. Um abraço Mª Arminda

manuel maia disse...

Caro Vasco,

Tal como refere o Joaquim,a palavra capitão do nosso tempo expressava pessoa de bem.

Quem não se "excede" como diz o Hélder,perante "tanta e tamanha insensibilidade",a roçar o desprezo?

"Quem não se sente não é filho de boa gente" relembra o ditado a
Maria Armindae bem.

Hoje é o que se vê com um alarve vestido de militar ostentando três galões nos ombros,que não sabe honrar os portugueses que tombaram nos campos de batalha !

Gostei do protesto via Régio só que provavelmente a alimária não o terá entendido.

Um grande abraço.

Anónimo disse...

Boa noite, meu Capitão
Faço minhas as palavras dos oradores anteriores.
Obrigado, muito obrigado.
Abraço GRANDE,
JERO

Anónimo disse...

Meu Caríssimo Amigo Vasco.
Ao acabar de "ler-te",vieram-me à memória diálogos de jovem adolescente com o meu Avô,Oficial do Exército e ex-combatente da Primeira Grande Guerra.
Amargurado, recordava a maneira como tinham sido "recebidos" pelos governos sucessivos de entäo.
Quando os meus 40 anos de "exigrado"
,por vezes quase fazem doer,säo as descricöes como a tua(quanto à näo disponibilidade,num Quartel, de uma Bandeira Nacional para cobrir lápide dedicada aos militares mortos)que me fazem aceitar as .....saudades.
Eca de Queiroz ,nas suas geniais críticas sociais,descrevia esse tipo de senhoritos como uma CHOLDRA!
Um grande abraco do José Belo.

Juvenal Amado disse...

Vasco nas picadas desta vida temos apanhado de tudo.
Doí a falta de respeito para quem deu o corpo ao manifesto, mas ainda doí mais que a nossa Bandeira seja objecto de piada de mau gosto, na boca de quem a devia venerar.

Haja paciência